quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Vida De Clarice Lispector e Alguns Textos.


A Vida De Clarice Lispector

Seu nome de batismo: Haia Lispector, mundialmente conhecida como Clarice
Lispector, nascida numa aldeia chamada Tchetchelnilk, na Ucrânia no dia 10 de Dezembro de
1920. No entanto, há controvérsias com relação à data exata, em seu livro: Uma Vida que se
Conta, Nádia Batella Gotlib apresenta duas certidões de nascimento, uma com a data de 10 de
Outubro e a outra de 10 de Dezembro de 1920 (GOTLIB, 1995, p. 20-21). Em uma entrevista
concedida à TV Cultura em 2007, Nádia afirma que pôde verificar através de documentos que
a data correta é realmente 10 de dezembro de 1920:

Clarice era de origem judaica, a terceira filha do casal Pinkouss e Mania Lispector. Ela
veio para o Brasil com dois meses de idade, juntamente com sua família para fugir da
perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa. A família chegou ao Brasil e aportaram
em Maceió, em Fevereiro de 1921 para ficarem na casa da irmã de Mania, Zaina,
permanecendo por uma período de três anos e meio. Eles mudaram seus nomes para facilitar
suas vidas no Brasil: seu pai passou a se chamar Pedro, sua mãe Marieta, sua irmã Elisa, com
exceção de Tania que não alterou o seu nome, e Haia passou a se chamar Clarice. Após este
período a família mudou-se para o Recife no ano de 1924.

De acordo com o escritor americano Benjamin Moser, escritor de uma biografia sobre
Clarice, a mãe dela teve paralisia progressiva devido a uma doença venérea em decorrência de
um provável estupro que teria sofrido pelos soldados russos. Esta suposição foi feita baseada
em duas circunstâncias: a primeira, no momento histórico no qual o país encontrava-se: os
estupros eram comuns durante as perseguições aos judeus na Ucrânia. A segunda vem da
ficção de Elisa Lispector.

A autora revela que, em 1915, sua casa havia sido transformado em refúgio de
mulheres e crianças. No meio da noite, ouviram-se tiros, e sua mãe resolveu sair,
sozinha, para ver o que estava acontecendo. “Ela decidiu salvar suas filhas e as
outras pessoas que buscaram abrigo em nossa casa”, escreveu Elisa, para depois
contar que Mania voltou exausta e afundou-se, muda, numa cadeira.”

De acordo com a crença local, uma gravidez teria o poder de curar doenças nas
mulheres, por isso sua mãe tentou a terceira gestação, porém a cura não aconteceu e ela morre
em 1930. Fato este que marcaria toda a vida de Clarice.
Se estas suposições se confirmam ou não, não podemos afirmar, bem como o faz
Nádia Gotlib, no livro Clarice uma vida que se conta. No entanto, se for verdade, o fracasso
de não ter ajudado sua mãe, marcaria traumaticamente para sempre Clarice Lispector. Em
uma crônica publicada em 1968, Clarice faz o seguinte comentário a respeito do seu
nascimento: “Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na
grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo.”

Seu pai era um mascate e vendia tecidos para roupas e as meninas estudavam em um
colégio da cidade. Sua família sempre passou por dificuldades financeiras. Clarice perde sua
mãe aos 9 anos e aos 12 anos de idade Clarice entrou para o Ginásio Pernambuco, juntamente
com sua irmã e sua prima Bertha. Nesta época Clarice conhece Reveca, amiga de ginásio,
cujo pai possuía uma livraria em sua casa. O professor então pede para fazerem um trabalho,
mas Clarice não tinha o livro e ela vai várias vezes até a casa da amiga, mas Reveca sempre
arranjava uma desculpa para não emprestar o livro Reinações de Narizinho (1931), de
Monteiro Lobato. Depois de descoberta a verdade o pai da amiga acaba por lhe presentear
com livro. Este fato é muito parecido com o contado em seu livro Felicidade Clandestina
(1971), no conto de mesmo nome. Seu pai prospera e eles se mudam para a cidade do Rio de
Janeiro.

Em 1940, Clarice perde seu pai, companheiro sensível e dedicado, por quem ela tinha
um imenso carinho. Em suas crônicas futuras ela há de se lembrar dele, com mistos de
piedade e ternura. Segundo Nádia, ela perde o companheiro que lhe havia ensinado a mais
preciosa lição: o de como era importante ser “pessoa”. Sua irmã Elisa, a mais velha, noivou e
casou com Ulak e Tania casou-se com William Kaufmann.
Clarice falava vários idiomas, entre eles inglês e francês. Formou-se em Direito e
trabalhou como redatora na Agência Nacional e no jornal A Noite em 1941, naturalizando-se
brasileira, é nesta época que ela então conhece os escritores Antonio Callado, Francisco de
Assis Barbosa, José Condé e Lúcio Cardoso, por quem Clarice nutre um amor intenso, mas
nunca foi correspondido.
Em 1942 escreve seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, e no mesmo ano
conhece e começa a namorar Maury Gurgel Valente. Em 1943 casou-se com o diplomata, e
em vista da profissão do marido, viveu 16 anos fora do país. Em plena Guerra Mundial, eles
se mudam para a cidade de Nápoles, onde Clarice dá assistência aos brasileiros feridos na
guerra trabalhando em um hospital americano. Ainda no aeroporto Clarice encontra-se
dividida entre acompanhar o marido ou deixar a família e seus amigos. Através de cartas
Clarice não esconde sua tristeza e sua inadaptação. Retornando ao Brasil como correio
diplomático do Ministério das Relações Exteriores. No tempo em que ficou no país ela pôde
conhecer os escritores Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e por fim
Hélio Pellegrino.
Em 1948, Clarice engravida do seu primeiro filho. Durante este tempo ela escreve A
Cidade Sitiada e terminado o último capítulo, seu filho nasce. Em sua crônica “Lembrança de
uma fonte, de uma cidade” ela diz que o que a salvou foi o nascimento do seu filho Pedro. Em
1949 a família volta ao Rio de Janeiro, porém no ano de 1950 eles retornam à Europa. Em
1953 nasce seu segundo filho, Paulo. A escritora divide agora seu tempo em escrever A Maçã
no Escuro, os contos de Laços de Família e seus filhos. Em 1956 antes de voltar para o Brasil
Clarice e o marido convidam o escritor Érico Veríssimo e esposa para serem padrinhos dos
seus dois filhos. No ano de 1959, após a separação, ela e seus filhos voltam para o Brasil.
Fixou-se até o final da vida no Rio de Janeiro em seu apartamento, onde “solitária”, teve
inspiração para suas grandes obras. Em maio de 1965 muda-se para o seu novo apartamento
com seus filhos Pedro, que sofre de esquizofrenia, e Paulo.
Clarice trabalhava no Jornal do Brasil, mas foi demitida, por ser judia, assim que o
general Geisel assumiu a presidência. Sua situação econômica não era boa naquela época, e
para curar a depressão, segundo Norma Couri, cigarros Hollywood e comprimidos para
insônia Bellergal, foi a combinação fatal que no dia 14 de setembro de 1966, ao dormir com
um cigarro aceso provocou um incêndio em seu apartamento, queimando boa parte do seu
corpo, quase tendo a sua mão direita amputada. Passou três dias correndo risco de vida e dois
meses hospitalizada. Devido às inúmeras e profundas cicatrizes a escritora cai, ainda mais, em
depressão.
Em 1971 publica a coletânea de contos Felicidade Clandestina. Clarice não gostava
do termo solitária. Dizia que não era solitária, que tinha muitos amigos e que era feliz. Em 9
de dezembro de 1977, após uma hemorragia, morre de câncer, um dia antes de seu
aniversário. Por ser judia, Clarice não pode ser enterrada no sábado, onde são proibidos os
funerais de acordo os princípios religiosos. Foi sepultada no domingo, dia 11 de dezembro
num cemitério israelita do Rio de Janeiro.
O escritor Carlos Drummond de Andrade homenageou Clarice com o poema “Visão
de Clarice Lispector” (1978), que mostra quão misteriosa era essa escritora que se
considerava, tímida e ousada ao mesmo tempo. Como ela mesma disse: “Sou um ser humano.
Não sou uma intelectual; sou mais saudável do que muita gente pensa. Sou uma intuitiva,
uma sentidora, e, também uma amadora. Só escrevo quando impulsionada pela vontade.”
(LISPECTOR, 1994. p. 7)


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
[...]
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.


A solidão, bem como a presença de animais, é um dos aspectos frequentes em sua
obra. Foi ao lado do cão Ulisses, seu companheiro inseparável, que Clarice Lispector viveu
seus últimos dias no Rio de Janeiro. O livro Quase de Verdade (1978), conta a história de
Ulisses. Apesar de ser uma história infantil, tem características muito introspectivas, que nos
faz viajar pela mente de Ulisses, suas dúvidas, seus pensamentos, seus sentimentos, conforme
percebe-se no excerto abaixo, (LISPECTOR, 1978 p. 4-22)
Era uma vez... Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou.
Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um
cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela
— que entende o significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto. Por
exemplo, eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma
história bem latida: daqui a pouco você vai saber dela: é o resultado de uma
observação minha sobre essa casa. [...]
Eu, que sou cachorro, não sei o que responder às aves. — Engole-se ou não se
engole o caroço? Você, criança, pergunte isso à gente grande. Enquanto isso, eu
digo: —Au, au, au! E Clarice entende que eu quero dizer: — Até logo, criança!
Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão.
Para alguns críticos Clarice Lispector se ficcionalizou tanto, a ponto de confundirmos
com um de seus personagens, se é que não o era. No hospital, sentindo que ia morrer, Clarice
gritou para a enfermeira que ela havia matado seu personagem. Para Paulo Francis, “Clarice
se tornou sua própria ficção” (COURI, 2009). É o que também propõe em seu livro Clarice
uma vida que se conta, Nádia Gotlib, pesquisadora da biografia de Clarice Lispector, quando
em entrevista em 1977, comenta:
Clarice vivia intensamente a arte que ela fazia. A tal ponto que, ela foi se
ficcionalizando. E chegou a se enxergar como personagem. E as coisas se
misturavam também. Quem sabe fazia parte do mesmo plano de vida ou de morte.
Sua trajetória de vida foi marcada por momentos difíceis. Porem as queimaduras
decorrentes do incêndio foi o que mais lhe abateu. Depois disso, amigos e familiares de
Clarice Lispector percebem que o seu interesse por escrever já não é mais o mesmo.
Apesar disto, nada pôde apagar o brilho e o talento de Clarice. Seu papel na literatura
brasileira é indispensável e se não houvesse Clarice, não haveria o que há de mais intimista e
subjetivo na prosa modernista.
Para COUTINHO (2004 p. 526), “o romance de que Clarice Lispector priva na
moderna literatura brasileira está sobretudo em relação com a raridade, entre nós, do
romance introspectivo que a autora segue.” Portanto, não há razão para questionar o valor
estético da obra clariceana, e sim, apreciar e destacar sua importância dentro de nossa
literatura, que a enrique e qualifica.


SUAS OBRAS:


Aos 19 anos, Clarice estreou sua vida literária com o lançamento do livro Perto do
Coração Selvagem (1944). Este romance causou estranheza aos críticos da época, pois trazia
uma novidade: a rarefação do enredo, ou seja, menos denso, compacto e conciso. E uma nova
abordagem da ação, que mergulhava nas profundezas do subconsciente sondando o mundo
interior.
Entre os romances, estão as obras O lustre (1946), A cidade sitiada (1949), A maçã no
escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
(1969), A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1977), obra terminada dias antes de sua
morte.
Clarice também escreveu contos, nas quais se destacam as coletâneas Laços de
Família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade clandestina (1971), A imitação da
rosa (1973), A via crucis do corpo (1974), Onde estivesse de noite? (1974), A bela e a fera ou
ferida (1941).
Além de romances e contos, Clarice Lispector é também autora de crônicas, como:
Visão de esplendor (1975) e Para não esquecer (1964). Quanto às obras infantis: O mistério
do coelhinho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1969), A vida íntima de Laura
(1974) e Quase de Verdade (1978).
Possui ainda, um conjunto de 16 pinturas abstratas sobre madeira. Algumas são
abstratas e outras sombrias, seus nomes: Medo, Explosão, Tentativa de Ser Alegre ou Caos da
Metamorfose Sem Sentido.







A Mensagem

A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se
surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para
disfarçar o aceleramento do coração.
Mas há muito tempo — desde que era jovem — ele passara
afoitamente do simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termos
de “coincidência”. Ou melhor — evoluindo muito e não acreditando nunca
mais — ele considerava a expressão “coincidência” um novo truque de
palavras e um renovado ludíbrio.
Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a
verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe
provocara — ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com
uma moça! ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe.
Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o
maravilhamento de enfim poder falar sobre coisas que realmente
importavam; e logo com uma moça! Conversavam também sobre livros,
mal podiam esconder a urgência que tinham de pôr em dia tudo em que
nunca antes haviam falado. Mesmo assim, jamais certas palavras eram
pronunciadas entre ambos. Dessa vez não porque a expressão fosse mais
uma armadilha de que os outros dispõem para enganar os moços. Mas por
vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de dizer, mesmo que ela, por
sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em missão ele falaria
jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por assim dizer criara,
lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita.
Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se
tratar uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la
como camarada.
Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a
própria angústia, como um novo sexo. Híbridos — ainda sem terem
escolhido um modo pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia
definitiva, cada dia a copiarem os pontos de aula com letra diferente —
híbridos eles se procuravam, mal disfarçando a gravidade. Uma vez ou
outra, ele ainda sentia aquela incrédula aceitação da coincidência: ele, tão
original, ter encontrado alguém que falava a sua língua! Aos poucos
compactuaram. Bastava ela dizer, como numa senha, “passei ontem uma
tarde ruim”, e ele sabia com austeridade que ela sofria como ele sofria.
Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.
Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a
linguagem falada mentia. (Eles queriam um dia escrever.) A palavra
angústia passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser
um motivo de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma
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gafe ela falar em angústia. “Eu já superei esta palavra”, ele sempre
superava tudo antes dela, só depois é que a moça o alcançava.
E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher
angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era
alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser
autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo a seu favor,
queria a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse
“por pior que fosse”. Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em
ser condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava
de... de ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um
pouco: era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por
não julgá-la capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela
ser mulher poderia de súbito vir à tona. Eles tomavam cuidado.
Mas, naturalmente, havia a confusão, a falta de possibilidade de
explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo.
E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais
intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se
impedir de se procurar. E isso porque — se na boca dos outros chamá-los
de “jovens” lhes era uma injúria — entre ambos “ser jovem” era o mútuo
segredo, e a mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se
procurar porque, embora hostis — com o repúdio que seres de sexo
diferente têm quando não se desejam —, embora hostis, eles acreditavam
na sinceridade que cada um tinha, versus a grande mentira alheia. O
coração ofendido de ambos não perdoava a mentira alheia. Eles eram
sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam por cima do fato de
terem muita facilidade para mentir — como se o que realmente importasse
fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram a se
procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros, tão
diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam
senão viver. Vagamente conscientes de que havia algo de falso em suas
relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados
de unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no
único ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de
que se eles não o salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se
amavam, era claro. Ela até já lhe falara de uma paixão que tivera
recentemente por um professor. Ele chegara a lhe dizer — já que ela era
como um homem para ele —, chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza
que inesperadamente se quebrara em horrível bater de coração, que um
rapaz é obrigado a resolver “certos problemas”, se quiser ter a cabeça livre
para pensar. Ele tinha dezesseis anos, e ela, dezessete. Que ele, com
severidade, resolvia de vez em quando certos problemas, nem seu pai sabia.
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O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles
mesmos, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo.
Que máximo?
Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como
quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a
difícil e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavamse
impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para que
enfim — cada um sozinho e liberto pudesse dar o grande vôo solitário que
também significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam
temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro
de não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se
desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o
quê? eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes
sem ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome; eles
comiam com fome e vergonha. Infelizes? Como? se na verdade tocavam,
sem nenhum motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o
mundo fosse sacudido e dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes?
se eram corpos com sangue como uma flor ao sol. Como? se estavam para
sempre sobre as próprias pernas fracas, conturbados, livres,
milagrosamente de pé, as pernas dela depiladas, as dele indecisas mas a
terminarem em sapatos número 44. Como poderiam jamais ser infelizes
seres assim?
Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes,
forçando, uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se
repetira — e sem nem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo
passava inútil, a urgência os chamava — eles não sabiam para o que
caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é
que ambos tinham a mesma carência, e jamais procurariam um par mais
velho que lhes ensinasse, porque não eram doidos de se entregarem sem
mais nem menos ao mundo feito.
Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca
chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra
constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por coincidência, caísse
uma chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um
refresco, olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua?
ou mesmo encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento?
Mas ambos haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior
despudor nos suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos
mais velhos. E a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em
quem o instinto avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por
demais enganados para poderem agora acreditar. E, para caçá-los, teria sido
preciso uma enorme cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda
4
mais cauteloso — um carinho que não os ofendesse — para, pegando-os
desprevenidos, poder capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para
não despertá-los, levá-los astuciosamente para o mundo dos viciados, para
o mundo já criado; pois esse era o papel dos adultos e dos espiões. De tão
longamente ludibriados, vaidosos da própria amargura, tinham repugnância
por palavras, sobretudo quando uma palavra — como poesia — era tão
esperta que quase exprimia, e aí então é que mostrava mesmo como
exprimia pouco. Ambos tinham, na verdade, repugnância pela maioria das
palavras, o que estava longe de facilitar-lhes uma comunicação, já que eles
ainda não haviam inventado palavras melhores: eles se desentendiam
constantemente, obstinados rivais. Poesia? Oh, como eles a detestavam.
Como se fosse sexo. Eles também achavam que os outros queriam caçá-los
não para o sexo, mas para a normalidade. Eles eram medrosos, científicos,
exaustos de experiência. Na palavra experiência, sim, eles falavam sem
pudor e sem explicá-la: a expressão ia mesmo variando sempre de significado.
Experiência às vezes também se confundia com mensagem. Eles
usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o sentido.
Aliás, não aprofundavam nada, como se não houvesse tempo, como
se existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo
que não trocavam nenhuma idéia.
Bem, mas não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era
apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto,
entrecortado, e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio
contra o mundo que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era
piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que
de repente podia se quebrar denunciando duas caras que se consternavam
porque eles não sabiam como se sentar com naturalidade numa sorveteria:
tudo então se quebrava, denunciando de repente dois impostores. O tempo
ia passando, nenhuma idéia se trocava, e nunca, nunca eles se
compreendiam com perfeição como na primeira vez em que ela dissera que
sentia angústia e, por milagre, também ele dissera que sentia, e formara-se
o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia alguma coisa que enfim
arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e que os tornasse
prontos para o destino que impaciente os esperava, e os fizesse enfim dizer
para sempre adeus.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como
uma gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse
a plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como
uma gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.
O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles
estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia.
Mas eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem
5
envelhecer, como se nada jamais lhes fosse suceder — e então a casa
tornou-se um acontecimento. Haviam voltado da última aula do período
escolar. Tinham tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre,
andavam entre depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o
passo, inquietos quanto à presença do outro. Era um dia ruim para ambos,
véspera de férias. A última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada
um desprezando o que na casa mútua de ambos as famílias lhes
asseguravam como futuro e amor e incompreensão. Sem um dia seguinte e
sem amarras, eles estavam pior que nunca, mudos, de olhos abertos.
Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com
rancor ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria
extrema pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.
E o rapaz, naquela rua da qual eles nem sabiam o nome, o rapaz
pouco tinha do homem da Criação. O dia estava pálido, e o menino mais
pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava
porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais
moço, ao contrário dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo
lhes era possível, inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se
tornava como um homem, e ele com uma doçura quase ignóbil de mulher.
Várias vezes ele quase se despedira, mas, vago e vazio como estava, não
saberia o que fazer quando voltasse para casa. como se o fim das aulas
tivesse cortado o último elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a
com a docilidade do desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima
escuta ao mundo o mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia
seguinte. Não, os dois não eram propriamente neuróticos e — apesar do
que eles pensavam um do outro vingativamente nos momentos de mal
contida hostilidade — parece que a psicanálise não os resolveria
totalmente. Ou talvez resolvesse.
Era uma das ruas que desembocam diante do Cemitério S. João
Batista, com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos
botequins.
Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão
estreita. Ela fez um movimento — ele pensou que ela ia atravessar a rua e
deu um passo para segui-la — ela se voltou sem saber de que lado ele
estava — ele recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se
buscaram inquietos, viraram-se ao mesmo tempo de costas para os ônibus
— e ficaram de pé diante da casa, tendo ainda a procura no rosto.
Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou
talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão
“perto”. Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam
na calçada estreita, entre o movimento ameaçador dos ônibus e a
imobilidade absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio:
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mas era uma casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e
alta como as casas ensobradadas do Rio antigo. Uma grande casa
enraizada.
Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no
rosto, eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa
estava tão perto como se, saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma
súbita parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa — não havia como não
estar ali. Se recuassem seriam atingidos pelos ônibus, se avançassem
esbarrariam na monstruosa casa. Tinham sido capturados.
A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar
infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e
transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse
estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a
cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas.
Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.
A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma
construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem
leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiúra
pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo
que se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento,
aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur
sem pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada aos ombros era a angústia.
Eles olharam a casa como crianças diante de uma escadaria.
Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam
diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e
da palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e
colocara-se diante deles — nem ao menos familiar como a palavra que eles
tinham se habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só
aquela potência antiga.
Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa
grande.
E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também
a grande casa.
A moça olhava adormecida. Quanto ao rapaz, seu sétimo sentido
enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do
fio um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de
espantar a própria atenção. A moça ancorara-se no espanto, com medo de
sair deste para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa
desabaria. O silêncio de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes
eles tinham sido forçados a olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que
o caminho estava livre para fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e
pelo horror. Fixando aquela coisa erguida tão antes deles nascerem, aquela
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coisa secular e já esvaziada de sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas
e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o nosso futuro! A casa sem olhos, com a
potência de um cego. E se tinha olhos, eram redondos olhos vazios de
estátua. Oh Deus, não nos deixeis ser filhos desse passado vazio, entregainos
ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não dessa endurecida carcaça
fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrai-nos do passado, deixainos
cumprir o nosso duro dever. Pois não era a liberdade o que as duas
crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e subjugadas e
conduzidas mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa que o grande
poder que lhes batia no peito.
A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz
que sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! — porque na sua avidez
ela era ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça
subitamente desviou o rosto com uma espécie de grunhido.
Quanto ao rapaz, ele rapidamente perdia pé na vaguidão como se
fosse ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da
tarde: era uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e
calmo, e ele agora não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros:
exatamente como temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não
contara com a miséria que havia em não poder exprimir.
Verdes e nauseados, eles não saberiam exprimir. A casa simbolizava
alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda uma
vida de procura de expressão. Procurar a expressão, por uma vida inteira
que fosse, seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas
divertimento, e seria uma divergência que pouco a pouco os afastaria da
perigosa verdade — e os salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza
de sobreviver, já tinham inventado para eles mesmos um futuro: ambos iam
ser escritores, e com uma determinação tão obstinada como se exprimir a
alma a suprimisse enfim. E se não suprimisse, seria um modo de só saber
que se mente na solidão do próprio coração.
Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar.
Agora, tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser
moço e doloroso e de dar a mensagem. Agora, espantados, tinham
finalmente o que haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois
jovens realmente perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, “eles
estavam tendo o que bem mereciam”. E eram tão culpados como crianças
culpadas, tão culpados como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda
pudessem apaziguar o mundo por eles exacerbado, assegurando-lhe:
“estávamos apenas brincando! somos dois impostores!” Mas era tarde.
“Rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado”
— dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de que poderia alguém
exigir que tivessem esperança de que o futuro seria deles? quem?! mas
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quem se interessava em esclarecer-lhes o mistério, e sem mentir? havia por
acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos como
estavam. nem lhes ocorreria acusar a sociedade.
A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma
espécie de soluço ou tosse.
“Meio que chorar nessa hora é bem de mulher”, pensou ele do fundo
de sua perdição, sem saber o que queria dizer com “essa hora”. Mas esta foi
a primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa
primeira tábua, pôde voltar cambaleante à tona, e como sempre antes da
moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de “Alugase”.
Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a
moça com um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já
acordado: ela procurava por algum motivo ocultar a cara.
Ainda vacilante, ele esperou com polidez que ela se recompusesse.
Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço,
sim, mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava
sempre. Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem.
Então, com mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele
fosse os outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos homens lhe
dava como apoio e caminho. E ela?
Mas a moça saiu de tudo isso pintada com batom, com o ruge meio
manchado, e enfeitada por um colar azul. Plumas que um momento antes
haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se
ela não tivesse lavado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas
impudicas de uma orgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher.
Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que
ela não passava de uma moça.
— Fico por aqui mesmo, disse-lhe então despedindo-se com altivez,
ele que nem sequer tinha mais hora certa de voltar para casa e sentia no
bolso a chave da porta.
Despediram-se e eles, que nunca se apertavam as mãos porque seria
convencional, apertaram-se as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má
hora ter seios e um colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato
das duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como
uma operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou
disfarçar a própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se
mil olhos a seguissem; esquiva na sua humildade de ter uma condição.
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse
divertido: “será possível que mulher possa realmente saber o que é
angústia?” E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte. “Não,
mulher servia mesmo era para outra coisa, isso não se podia negar.” E era
de um amigo que ele precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então
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limpo e franco, sem nada a esconder, leal como um homem. De qualquer
tremor de terra, ele saía com um movimento livre para a frente, com a
mesma orgulhosa inconseqüência que faz o cavalo relinchar. Enquanto ela
saiu costeando a parede como uma intrusa, já quase mãe dos filhos que um
dia teria, o corpo pressentindo a submissão, corpo sagrado e impuro a
carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido ludibriado pela moça tanto
tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de crescer. Sou
homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De cada luta ou repouso, ele
saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo daquele vento que
agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério S. João Batista. O mesmo
vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse
ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua nudez, esse
vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e
curiosos que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moça que
de súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida
para não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco
de saia curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...
Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento
de grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Urgentemente,
inquietantemente: o que era? Ele a vira correr toda ágil mesmo que o
coração da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia
de impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus —
e viu-a depois sentar-se quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto
esperava que o ônibus andasse... Seria isso? Mas o que poderia haver nisso
que o enchia de desconfiada atenção? Talvez o fato dela ter corrido à toa,
pois o ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo... Ela nem precisava ter
corrido... Mas o que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as
orelhas em escuta angustiada, numa surdez de quem jamais ouvirá a
explicação?
Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu
nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal
assumira a sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira
futura ruga. Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova
fome ávida nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora.
Estaria ele tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A
moça era um zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora
ele era, o rapaz de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para
aquela moça. E nem ao menos inclinar-se de igual para igual, nem ao
menos inclinar-se para conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele
precisava dela. Para quê? para lembrar-se de uma cláusula? para que ela ou
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outra qualquer não o deixasse ir longe demais e se perder? para que ele
sentisse em sobressalto, como estava sentindo, que havia a possibilidade de
erro? Ele precisava dela com fome para não esquecer que eram feitos da
mesma carne, essa carne pobre da qual, ao subir no ônibus como um
macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.
Que é! mas afinal que é que está me acontecendo? assustou-se ele.
Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de
fraqueza e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse
sistema de duro juízo final, que não permite nem um segundo de
incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua — e
tudo agora estava estragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de
poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da mentira
pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser um homem. Mas e a
mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as
grades do esgoto. Mamãe, disse ele.
LISPECTOR, CLARICE. A Mensagem. In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977 .





Amor


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de
tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a
andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de
meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez
mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos
pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo
horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão,
não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida
conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam
seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais
e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava
a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as
árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força,
inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo
engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os
meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo
vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível
de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa;
a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das
coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a
cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe
estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para
descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma
legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com
persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que
tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo
enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da
tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos,
seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia
lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a
mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então
para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da
família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças
vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila
vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava
os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos.
Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves
do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela
o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento
mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu
rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha
tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado.
De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?
Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos
viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o
cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da
mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar
de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse
teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada
vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a
desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no
chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber
do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava
pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando
inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da
rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu
a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia
nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal
estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido;
não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha
música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria
esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava
pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento
estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O
mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas
amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as
pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo
equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido
deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma
ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como
se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a
mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer
intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se
tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na
Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as
grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando
chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte
havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o
vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto.
Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no
filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra
numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa
das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se
escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se
seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E
através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a
boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida.
Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde
com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por
um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da
noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração
batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto
a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais
misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde
localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os
portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a
penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas
surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais
apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?
Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais,
grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida.
Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso
gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras
vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho
secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros
apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade
intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram
percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a
repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo,
e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A
moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos
primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias
boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe
pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela
via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais
fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava
que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve
medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou
na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o
Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os
portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu
espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um
desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o
que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o
mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era
grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela
brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um
instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente
louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas
compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com
força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela
amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo
modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento
de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o
filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego
ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de
tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo,
faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia
lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho
medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o
seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele
rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A
criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do
quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera.
Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De
que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não
olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só
piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O
homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado
para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e
alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do
mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria
obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego
me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida
porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais
fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a
piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma
piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a
como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego!
pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que
se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e
foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a
água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de
lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O
mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os
besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma
vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para
outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça,
em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em
que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o
suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o
jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no
tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava
um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a
primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a
família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver
defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças
cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana
prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam
deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava
adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?
Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e
pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia
aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no
escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do
café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu
entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado,
com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma
coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico,
triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas
que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar
para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante
do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se
deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998.







Escrever, Humildade, Técnica


Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por
instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa
ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias
coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca
tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de
concepção. Quando falo em "humildade" refiro-me à humildade no sentido
cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que
vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à
humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com
minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte:
só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente.
Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma
engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho
é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a
enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à
vida, faz perder muito tempo.
Texto extraído do livro "A Descoberta do Mundo", Editora Rocco - Rio de Janeiro,
1999.





Sobre a Escrita......


Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino
invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor
é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que
digo - é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei
porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente
uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto
não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa
palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca
fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por
toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que
existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a
verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho
que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da
palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que
nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal
também. Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao
mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor
acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de
um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.

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