sábado, 29 de janeiro de 2011





Quando se olhou no espelho, viu uma mulher em prantos, olhos vermelhos, maquiagem borrada, cabelos fora de ordem e um arranhão de mais ou menos dez centímetros no lado direito do seu pescoço. Camila não se reconheceu. Aquela mulher definitivamente não era ela, não!, não a Camila forte e linda que há quatro horas havia saído de casa... Passou as mãos no rosto, enxugou as lágrimas e saiu da frente do espelho com uma terrível expressão de ódio na face. Poucas vezes Camila havia encontrado motivos para ficar assim tão nervosa, tão descontrolada; normalmente era uma mulher calma, serena, segura e que dificilmente perdia o controle. Mas naquela noite o mundo todo parecia conspirar contra ela. De uma hora para outra uma serie de acontecimentos inusitados atravessaram o seu caminho, e toda a arquitetura montada aos poucos e com muito cuidado desde a sua adolescência ruiu em questão de minutos... Camila andava de um lado ao outro da sala totalmente desorientada, sua cabeça parecia em chamas, não conseguia formar um único pensamento lógico, era tudo tão drástico, tão sem sentido que ela não encontrava uma maneira sensata ou pelo menos razoável de aceitar e entender o que lhe havia acontecido. Contudo, deitou-se no sofá que ficava na biblioteca do seu enorme e muito confortável apartamento e começou a relembrar...

A campainha tocou às oito da noite em ponto. Era Cláudio seu namorado quem estava à porta. Camila abriu a porta, beijou Cláudio rapidamente na boca e disse:
- senta meu amor! Estou quase pronta. Em seguida foi sumindo em um longo e muito bem iluminado corredor.
_ ta bom! Mas por favor, vê se não demora Camila. Disse Cláudio, rindo um riso totalmente sem graça enquanto sentava-se no sofá da sala.

No fundo todos os homens sabem que quando uma mulher diz: “estou
quase pronta” é porque vai demorar no mínimo meia hora. Meia hora depois, o casal entrou no Vectra modelo 2007 que Cláudio havia comprado fazia dois meses. Chegaram à Avenida Afonso Pena dez minutos depois, estacionaram o caro a cem metros do parque municipal, desceram e foram a pé até o palácio das artes onde assistiriam à peça “Acredite, um espírito baixou em mim”, uma comédia que conta a história de um homossexual assumido e que fazia o maior sucesso na cidade há dois meses. Dentro do teatro, como já havia acontecido durante quase todo o percurso desde o apartamento, pouco conversaram; preferiram concentrar os olhos e os pensamentos na peça que, pelo o entretenimento e as longas gargalhadas dos dois, muito lhes agradava. Todavia, Camila vinha percebendo um distanciamento
gradativo por parte de Cláudio nas últimas semanas. Estavam juntos havia cinco anos. O namoro começou exatamente no mês em que Camila completava dezessete anos, e, desde então, para ela esse namoro havia tomado proporções muito além do desejo e da imaginação de forma que tornara-se tão necessário quanto o ar que se respira. Logo que acabou a peça, deixaram imediatamente o teatro e foram para o apartamento de Cláudio. Lá: ela no banheiro ajeitando os cabelos e a maquiagem, ele servindo-se uma dose dupla de Chivas. Quando ela voltou, ele lhe ofereceu uma dose:
- pra você meu bem!
- uísque amor?
- pega?
- sabe que eu não gosto, detesto bebidas forte – Camila franziu a testa e deixou aflorar um bico enorme. No entanto, ele insistiu:
- Acho melhor você beber, pois preciso ter uma conversa muito seria contigo.

Nessa hora, Cláudio tomou tudo que estava no seu copo de uma só vez e foi novamente de encontro à garrafa... Camila sem saber qual rumo exatamente àquela conversa tomaria, começou a tremer e as suas mãos começaram a suar, pressentia uma situação para a qual jamais havia se preparado. Começou a andar pela sala de um lado para o outro. Passou as mãos pelos cabelos, olhou para Cláudio, que enchia novamente o copo de uísque, ainda de costas para ela no balcão do bar. De repente Camila parou de andar e, quase que por impulso, bebeu seu uísque num único gole; fez uma cara tão estranha e desconcertante que lhe ofuscou completamente a beleza, e o gosto forte do uísque quase que a fez vomitar. Nessa hora Cláudio voltou-se para ela e disse:

- Parto amanha às 10 horas para Portugal.

Camila bambeou as penas e, se não fosse pelo fato de estar bem próxima da parede e com isso ter no que se segurar, teria mesmo se esborrachado toda no chão da sala. Em seguida, recuperou o fôlego, respirou bem fundo, foi até a janela e, como quem buscasse ali uma ajuda sobrenatural, respirou ainda mais profundamente... Voltou para o centro da sala, olhou bem dentro dos olhos azuis de Cláudio e perguntou:

- será que eu ouvi direito?
- sim eu vou amanhã...
- mas, e eu como fico?
- você? Uai! Você fica eu é quem vou! - dito isso, pôs se a mexer o gelo dentro do copo com os dedos.
- quanto tempo você pretende ficar por lá?, perguntou Camila agora com as bochechas bem rosadas e a voz alterada.
- por tempo indeterminado, me tornei sócio de uma cadeia de restaurantes e, por causa disso, para estar mais próximo dos negócios, pretendo ir morar lá de vez.
- e você espera que eu vá morar lá com você um dia é isso?
- não!

Nesse momento, Camila empalideceu-se completamente e, tropeçando na própria perna, dirigiu-se novamente ao bar, serviu-se meio copo de Chivas e bebeu tudo de uma só vez como alguém que estivesse morrendo de sede. Voltou a encher novamente o copo, virou-se para Cláudio, olhou-o como jamais havia olhado e, de repente, tudo com que até então ela havia sonhado, tudo o que havia planejado e desejado parecia lhe escapar por entre as mãos: o casamento, a festa, a alegria no âmbito da família, a casa, os filhos as reuniões nas casas dos casais amigos, tudo, exatamente tudo, estava se consumindo no exato momento em que Cláudio, com toda naturalidade do mundo, havia lhe atirado bem no meio da cara aquele fatídico “NÃO”. E o fez de uma maneira tão inesperada e fria, que para ela teria sido melhor que ele tivesse usado uma arma...

Camila levantou assustada! Olhou para o relógio e viu que já eram duas horas da madrugada, achou então que devia ter apagado, sentia-se tão cansada. Sentou-se no sofá, colocou as duas mãos sobre a cabeça e alisou o rosto, em seguida, juntando os cabelos de uma maneira espontânea e uniforme para trás da cabeça suspirou e
bocejou. Depois, colocou os dois pés sobre a mesinha de centro, e foi nesse exato momento que sua alma quase saltou para fora. Camila tinha os pés e as barras da calça manchadas de sangue. O sangue estava entre os seus dedos e por cima das suas unhas, também havia sangue no peito do pé, nos calcanhares e desde a barra da calça até bem próximo dos joelhos. Camila pulou para fora daquele sofá, com a destreza e a rapidez com que um coelho foge de uma águia. Correu para o banheiro, arrancou as roupas do corpo atirando-as contra a parede como se nelas existisse um bicho muito nojento. Finalmente abriu o chuveiro e, pôs-se a lavar-se mergulhada em lágrimas e desespero. Esfregava a pele com uma força descomunal, parecia querer arrancar-lhe o próprio couro a todo custo; ajoelhou-se no piso encharcado de sabão, sangue e lágrimas. E ali, como alguém que estivesse a rezar e que de tão envolvida em sua fé estivesse em transe profundo, transportou-se novamente para algumas horas atrás...

Claudio permanecia em silencio, apenas se dava o trabalho de uma vez ou outra olhar na direção de Camila, que agora, totalmente transtornada, movia-se enlouquecida a cada instante para uma direção diferente da sala. Ela esbravejava, chamando-o dos piores nomes e como se já não fosse o bastante, começou a ameaçá-lo:
_se você acha meu querido, que eu vou deixar impunemente, você jogar cinco anos da minha vida na privada! Está redondamente enganado! -, nessa hora, Claudio levantou-se assustado, chegou bem perto de Camila e disse:
_melhor a gente terminar essa conversa amanhã, você não esta em condições de...,
Naquele momento, uma raiva ainda maior tomou Camila por completo, definitivamente, ela já não era a mesma Camila de antes, dentro da sua mente pensamentos banhados em ódio multiplicavam-se aos montes como se fossem pragas irreversíveis, e de repente, toda aquela raiva, todo aquele desespero criaram dentro dela razões nunca antes imaginadas, e pela primeira vez na vida Camila sentiu o gosto do sangue em sua boca. E ao contrario do que se poderia imaginar esse sentimento de morte a deixou com uma calma predadora. Então, com um semblante aparentemente mais tranqüilo, mas, que na verdade camuflava uma mulher tomada por um sentimento ruim, e que, devido a isso a partir daquele momento tornava-se totalmente imprevisível. Camila dirigiu-se novamente ate o bar, serviu-se colocando no copo o resto do uísque que restava na garrafa e como o seu copo ainda não estava nem na metade, virou-se para Claudio que já estava novamente sentado no sofá e perguntou:
_ não tem mais uísque meu bem?
_ tem sim! Abra a porta a sua esquerda. Camila pegou a garrafa, abriu vagarosamente e terminou de encher o seu copo, em seguida ofereceu:
_quer mais meu bem?
_não, pra mim já foi o bastante e acho q você também já ta passando do...
_você acha mesmo meu amor! Dito isso, Camila deu uma gargalhada típica de uma pessoa em completo desespero. Depois, segurando o copo com a mão esquerda e a garrafa de uísque com a outra mão, Camila começou a caminhar pela sala, enquanto Claudio que demonstrando pouca paciência e muito cansaço deixou cair à cabeça sobre as próprias mãos como que para ampará-la. Camila aproximou-se, dando a volta por trás do sofá onde Claudio estava sentado, e, com todo o ódio do mundo em sua mente, segurou a garrafa pelo gargalho a levantou acima da sua cabeça (como se tivesse segurando na mão uma machada ao invés de uma garrafa) descendo-a em seguida com rapidez e muita força na direção da cabeça de Claudio. O impacto foi tão forte, que nas mãos de Camila, da garrafa, sobrou apenas o gargalo, o resto espatifou-se completamente ao atingir a cabeça de Claudio. Ele tombou vagarosamente sobre o sofá, não teve a menor chance de se defender e muito provavelmente essa era uma situação cuja qual ele jamais esperava que pudesse acontecer-lhe, visto que, havia abaixado completamente a guarda. Entretanto, não se ouviu por parte dele um único gemido, apenas tombou como se tombam as arvores após terem sido covardemente cerradas. Camila ainda estava em pé, olhava-o distanciando-se dele em pensamentos, mas, no entanto, paradoxalmente aproximando-se cada vez mais, e logo pode perceber que havia feito um estrago enorme na cabeça do seu amado... E conseqüentemente, ela gritou! E o seu gritou ressonou dentro dos ouvidas dela muito mais alto e pavoroso que no interior da sala. Em seguida, atirou-se sobre ele totalmente transtornada, abraçando-o, tomando-o em seus braços com a intensidade e a emoção que uma mãe desesperada seguraria um filho ferido. De repente! Sentiu a mão de Claudio, gritou de susto e dor ao sentir a as unhas de Claudio cravando-se em seu pescoço desesperadamente como alguém que pressentindo a morte seguraria a primeira coisa que aparecesse a seu alcance na intenção de salvasse. Camila arrancou a mão de Claudio do seu pescoço num ato de puro instinto. Nesse instante, Claudio olhou bem dentro dos olhos de Camila e movendo os lábios com extrema dificuldade tentou inutilmente falar alguma coisa, mas, não conseguiu, morreu naquele momento com os olhos abertos mirados na direção de Camila. Ela ajoelhou-se aos pés do amado e começou a chorar compulsivamente.

Saiu do banheiro enrolada em uma toalha rosa, tinha os olhos vermelhos e inchados por tanto chorar. Dirigiu-se para o quarto, e atirou-se na cama como uma pedra. Sua vida agora era o próprio inferno, dentro de si um turbilhão de pensamentos se formava, a levando uma hora para uma atitude radical outra hora para um lugar bem próximo a loucura. Nada mais para ela valeria à pena, nem mesmo a família poderia salva-la visto que, não conseguia sequer admitir a imagem da mãe vendo-a enjaulada e condenada como uma assassina. Olhou mais uma vez para o relógio e viu que a madrugava caminhava a passos largos; no entanto, com toda a tranqüilidade do mundo, abriu o guarda roupas e escolheu entre seus vários vestidos aquele do qual ela mais gostava e que por coincidência também era o mais caro... Enquanto se olhava no espelho e se arrumava com o cuidado com o qual se arruma uma mulher para uma festa de gala; Camila relembrava seus últimos momentos no apartamento do morto...



Quando por fim, acalmou-se, viu que tinha matado. Que matou o seu amado. Que Claudio estava morto e que para ela nada mais faria sentido nessa vida, e que ela havia se transformado em uma assassina, em um monstro. No entanto, o que mais lhe doía era o fato de em momento algum ter imaginado que aquele seu ato impensado poderia chegar a matá-lo. E começou a repetir para si mesma “eu não queria matar, não, eu juro! Que não queria matar” e todas aquelas vozes dentro da sua cabeça “eu não queria, não, não... Deus!”, ficou assim andando de um lado para o outro e falando de si para consigo por pelo menos meia hora. Muitas eram as razoes as quais levavam as pessoas a cometerem um assassinato, todavia, poucas eram as explicações que soariam convincente perante a si próprio ou um juri. Mesmo Camila tendo dentro de si a certeza que em nenhum momento pensou com clareza em matar; sabia que havia selado definitivamente o seu destino, e que aquela era uma situação da qual restava pouquíssimas opções ou saídas. Então, se deu conta que precisava sair dali, que precisava ir. E deixando sorrateiramente o apartamento de Claudio, subiu pela escada silenciosamente ate chegar ao seu apartamento que ficava a dois andares acima.


Camila usava um vestido vermelho que lhe dava formas sinuosas e a deixava uma linda mulher. No rosto, maquiagem bem desenhada realçando seus olhos negros e suas bochechas perfeitas e rosadas. Nos lábios, batom rosa fosco, no pescoço, um colar de esmeraldas que Claudio havia lhe dado na mesma noite em que lhe tirara a virgindade. Olhava-se e virava-se a fim de admirar-se em todos os ângulos possíveis em frente a um exuberante espelho que cobria uma parede inteira da sua enorme e luxuosa sala. Camila viu-se bela e ao mesmo tempo mórbida de uma maneira como nunca havia visto, acariciou seus cabelos louros, arrumou cuidadosamente o vestido fazendo com que lhe mostrasse melhor os seios e os ombros. Trazia nas mãos sua inseparável bolsa de couro rosa onde num tom de ironia sempre dizia caber mais coisas que no mercado central da cidade. Tirou de dentro da balsa varias embalagens de medicamentos entre os quais: loratadina para rinite, neosaldina para enxaqueca, lexotam e fluoxetina que tomava freqüentemente para combater a ansiedade e a insônia. Colocou sobre a palma das mãos alguma coisa entre quarenta e cinqüenta comprimidos de lexotam e fluoxetina quase na mesma proporção de cada. Em seguida, com a ajuda de um copo duplo de água começou a tomar em grupos de cinco o seu coquetel mortífero; após dois minutos não havia um único comprimido em suas mãos. Em seguida, Camila completamente grogue caminhou ate a janela e abriu a cortina na intenção de deixar entrar o sol que anunciava o inicio de um novo dia, depois, cambaleando sentou-se no sofá. Camila morreu meia hora depois, com uma espuma branca lhe cobrindo o batom e a boca e com os olhos abertos mirando o vazio como se estivesse tentando encontrar alguém. E os raios solares que nada tinham haver com isso, penetraram a sala por completo e sobre a pele mórbida de Camila indiferentemente deixaram a sua marca.