domingo, 13 de março de 2011

Jô Oliveira - Recomeço





Beatriz entra em seu apartamento, como todos os dias, às 18:38. Dessa vez encontra móveis quebrados, livros jogados no chão, vasos estilhaçados. Pensa se tratar de um assalto e procura, nervosa, seu celular dentro da bolsa. Liga 19...
- Desliga! Diz um homem do qual ela só consegue ver a silhueta.
- O que você quer?
- Desliga!
- Ok, ok... estou desligando... Ela coloca o aparelho sobre o sofá.
- Senta!
- Essa voz... não acredito!
- Cala a boca, sua vadia!
O homem sai da penumbra e ela confirma suas suspeitas. O olhar de medo dela é recebido com um tapa que ecoa pelo pequeno apartamento. Beatriz põe a mão no rosto e lança um olhar de ódio para o homem a sua frente. Ele, com um sorriso no canto dos lábios e uma pistola na mão esquerda, a olha com ar superior.
- Você achou mesmo que a humilhação que me fez passar não teria volta?
- Maurício, isso já faz dois anos! Você disse que tinha me perdoado...
- Perdoar? Você é mesmo muito cínica.
- Ah, quer saber? Se vai atirar, atira logo e acaba com esse papo de marido traído, que de coitadinho nessa história você não tem nada... Disse Beatriz se levantando e indo à cozinha pegar uma cerveja.
- Então o culpado da sua safadeza sou eu agora?
- Safadeza? Eu só transei com meu chefe e com dois amigos seus, meu querido. Podia ser pior. Ou melhor, depende do ponto de vista.
- Eu sempre odiei essa sua ironia.
- E eu sempre odiei o seu cheiro, a sua voz, a sua barba sempre bem feita. Não sei nem por que me casei com você.
- Eu sei, porque você queria uma pessoa que lhe apoiasse quando seus pais morreram. Foi só pra isso que eu servi.
- Serviu? Nem isso você consegui, seu verme! Anos de terapia... Eu era uma menina... Sabe que aquela terapia era muito mais pra agüentar aquele casamento morno que a gente tinha do que pra lidar com a morte dos meus pais? Cinco anos da minha vida... Que desperdício!
Maurício apontou a arma para Beatriz. E olhou-a de cima a baixo. Aproximou-se abrindo o zíper das calças. Ela corre para trás do sofá e olha-o:
- Como você é patético... nunca me fez gozar em cinco anos que ficamos casados e agora me vem com esse ar de grande amante... Pois fique sabendo que eu dou pra qualquer homem, menos pra você.
Ele a agarrou pelos cabelos, jogou-a no chão. E enquanto carregava a arma, disse:
- Ou você transa comigo ou meto uma bala no meio dessa sua carinha linda.
- Bem... até que pode ser bom... de repente a raiva, o orgulho ferido te aqueceram... Mas deixa que eu te mostro como eu fazia com os homens com os quais te traí.
Tirando a arma da mão dele, Beatriz tira sua roupa e as calças do ex-marido. Exibe-se para ele. Domina-o. Enlouquece-o. Mordidas, arranhões, risadas, suspiros, murmúrios, gemidos... Horas a fio os dois se confundem na sombra que projetam na parede.
Exausto, Maurício se atira à cama ofegante e sonolento. Fecha os olhos. Ela, então, espera a respiração ficar mais profunda, levanta-se, olha-se no espelho... os cabelos estão desgrenhados e a maquiagem dos olhos escorrendo. Vai ao banheiro, lava o rosto e ajeita os cabelos. Veste-se. Vê a pistola em cima da cama. Pega. Olha o revólver e o ex-marido. Ali está a solução dos seus problemas. Em dois anos de separação, ela já havia se mudado três vezes. Ele sempre a encontrava. Ele e aquele maldito sentimento masculino de posse. Beatriz não agüentava mais olhar para aquele homem. Os telefonemas de madrugada, os xingamentos, os empregos que ele a fez perder.
- Acorda! Acorda, seu bosta!
- O que você vai fazer?
- Um favor à humanidade.
- Por favor, Beatriz, pelos anos que nós vivemos juntos...
- Os piores da minha vida. Tenta outra coisa, seu idiota!
- Eu imploro, não atira. Maurício se ajoelha aos pés da ex-esposa.
- Essa imagem é a que mais combina com você. Submisso, suplicante, decadente. Eu sempre tive vergonha de apresentar você pras minhas amigas... Sempre com essa cara de homem correto, chefe de família, bom marido... Sem novidades, sem emoção. Eu dormia fazendo sexo com você.
- Beatriz... por favor...
- Abre a boca!
O disparo foi seco. A parede cinza ficou manchada de vermelho.
- Droga, vou ter que pintar de novo...
Contemplou o corpo caído, inerte, com um olhar de pânico. Empurrou o cadáver com o pé, para ter certeza de que não havia possibilidade de ter sobrevivido. Sentando no sofá, Beatriz colocou as mãos atrás da cabeça e ficou a pensar no que faria. Minutos depois, vai ao quarto, pega um lenço branco numa gaveta e esfrega-o na pistola. Em seguida, coloca a arma na mão direita de Maurício... Pára, pensa e corrige, ele era canhoto. Com o dedo dele aperta o gatilho e dispara a arma. Analisa: cena perfeita para um suicídio... o marido inconformado com a separação, vai à casa da ex-mulher e se mata, para afetá-la. Arma e pólvora na mão, digitais... tudo.
Voltando ao quarto, Beatriz coloca em uma bolsa duas ou três peças de roupa, dinheiro, chaves e um livro. Sai do apartamento, pega um táxi e pede ao motorista que a leve ao aeroporto. Lembra de um ex-namorado que trabalha numa companhia aérea.
- Nunca pensei que aquele imbecil me seria tão útil. Murmura consigo mesma.
Chegando ao aeroporto, dirige-se ao guichê e pergunta à recepcionista se ela poderia falar com Ricardo; ela informa que ele está em uma reunião com a presidência da empresa, mas que já deve estar no fim. Menos de cinco minutos depois, Beatriz está num café conversando com o ex-namorado.
- Quem diria, não? Você... gerente... Casou?
- E tive filhos.
- Jura?
- Você me abandonou, eu queria ter uma família, você sabe.
- Sei, sei sim... Hum... Ricardo, eu tenho um pouco de pressa, queria te pedir um favor.
- E o que eu ganho com isso?
- O que quiser, é só pedir. Respondeu Beatriz com um sorriso malicioso.
- Você não mudou nada... Que ótimo. Diga. Do que se trata?
- Eu preciso de uma passagem pra qualquer lugar, não importa. O importante é que a data de embarque seja alterada. Tem que constar que eu embarquei ontem. Você consegue isso?
- Consigo o que você quiser, meu bem. Mas o que você andou aprontando, hein?
- Nada que lhe interesse. Mas pago bem, você já teve chance de conhecer os meus serviços. Disse, sorrindo e piscando para Ricardo.
Dentro de duas horas, Beatriz estava sentada, num avião a caminho de qualquer lugar. Pediu água à comissária e olhou pela janela, pensativa. Esperaria a notícia da morte do ex-marido, que provavelmente só seria encontrado quando começasse a feder, não que ele não fedesse em vida. A intimação para depor deveria chegar em seguida. E ela já preparava sua melhor expressão de surpresa e horror.
Abriu a bolsa, tirou o livro que trouxera e recomeçou a lê-lo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Jô Oliveira - Uma Qualquer





Sentada numa cadeira de uma delegacia qualquer, Eulália passa a língua nos dentes pensativa. Estão quebrados. Ela lembra então do episódio da noite anterior. Um cliente. Fez de tudo e no fim da noite não quis pagar os serviços prestados. Devido a sua reação agressiva e indignada, deu-lhe um soco que lhe quebrou os dentes incisivos e a deixou desacordada. Quando despertou, sabe-se lá quanto tempo depois, estava sozinha naquele quarto que fedia a enxofre e mofo. Sua bolsa estava aberta e todo seu dinheiro havia sido levado. Aborrecida e desgrenhada, ela sai do quarto, conversa com o dono daquele lugar chinfrim, onde costumava ir com seus clientes, e acerta o pagamento do pernoite para mais tarde.
Ainda pensativa, lembra da morte da mãe. Assassinada pelo namorado que acreditava em uma possível, mas não confirmada, traição. Crimes passionais são sempre tão risíveis... Não há de ser à toa que está entre os pecados capitais, que são, diga-se, os melhores de se cometer.
Tais pensamentos levam-na ainda a outro acontecimento. Remete-se ao dia em que seu pai a acordou no meio da noite, não cheirava à bebida, como de costume, no entanto, chegou a sua cama cambaleante. Fingimento? Talvez. Disse que ela estava virando mocinha e que os rapazes em breve começariam a desejá-la. E que ele, como pai, tinha direito de tê-la antes de todos os outros. Aos dez anos, não compreendera muito bem o que ele quisera dizer com "direito de tê-la". Até que ele começou a passar a mão em suas coxas e tentar beijá-la. Oferecendo alguma resistência e tentando fazer algum barulho para que sua mãe, que dormia profundamente no quarto ao lado ouvisse, escutava ameaças sussurradas pelo pai.
É só do que consegue lembrar. Os demais detalhes foram apagados por sua memória seletiva. Lembra, porém, que depois foi a uma delegacia fazer corpo de delito, mas não antes de ir a um hospital com um forte sangramento. Recorda-se também que seu pai respondeu a um longo processo e passou um dia preso. Acabou solto por um habeas corpus impetrado por sua advogada.
Dispersa em seus pensamentos, Eulália estava totalmente alheia aos insultos e gracejos de dois policiais que tomavam café perto de onde ela se encontrava. Ainda imersa em reminiscências, ela pensava com que dinheiro ia pagar o aluguel miserável do cubículo ainda mais miserável que a abrigava. O maldito cliente da noite anterior não só não pagou o programa como roubou o dinheiro que ela separara para o aluguel. Teria que trabalhar dobrado. "Mulher de vida fácil?", pensou e fez um muxoxo.
Caindo em si, levantou-se e disse ao delegado que precisava ir embora, mas que a fiança ela pagaria a ele com a única coisa que ela sabia fazer profissionalmente, porque dinheiro, esse ela não tinha. Ele deu um sorriso com o canto dos lábios e disse: "Apareço no meu apartamento mais tarde. Se é que se pode chamar aquele muquifo de apartamento". Ela deu um sorriso triste e se retirou. Já na rua movimentada e barulhenta acendeu um cigarro e parou num boteco de esquina para tomar uma cerveja.
Eulália não era bonita, nem jovem, não tinha charme algum e elegância definitivamente não era o seu forte. Seu olhar trazia a sombra que traz o olhar das pessoas sofridas e resignadas. Nunca se imaginara em outra profissão, embora já sentisse a perda numerosa de clientes por conta da idade avançada. No entanto, se sentia igualmente velha para uma mudança de vida. Não tinha família nem amigos. Era uma solitária, mas não por opção. A vida que levava exigia isso dela.
Tomando sua cerveja pensou que quando morresse não haveria velório, enterro... provavelmente iria para o IML com um adesivo escrito "indigente" colocado em seu dedão do pé direito. Tal pensamento a angustiava. Quem choraria sua morte? Alguém sentiria sua falta? Talvez o dono do prédio suburbano em que morava, quando fosse cobrar o aluguel e a porta não fosse atendida. Talvez o dono do motel barato ao qual ela levava seus parcos clientes. Ou nem eles.
Ao terminar a cerveja, tira da bolsa seu batom vermelho, passa em seus lábios murchos, cochicha algo ao ouvido do dono do boteco e vai embora sem rumo. Certamente volta para a vida anônima e não sentida que a angustia mais que a morte com as mesmas características.