quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Clarice Lispector "Livro / Perto do Coração Selvagem"



Clarice Lispector "Perto do Coração Selvagem"

Editora Nova Fronteira
9ª Edição - 1980


"Ele estava só. Estava abandonado,
feliz, perto do selvagem coração da
vida.”


Este é o primeiro romance de Clarice Lispector, e talvez
o que se tenha tornado mais famoso. Publicou-o, em 1944,
pela Editora A Noite, quando não tinha mais que dezessete
anos. Álvaro Lins, então o melhor crítico literário do país,
manifestou-se imediatamente, não se furtando a escrever:
"Nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de
Joyce e Virgínia Woolf" — autores que, de resto, Clarice ainda
não lera e, segundo ela própria declarou depois, jamais viria a
ler...

Pode-se dizer que, desde Perto do Coração Selvagem até
Um Sopro de Vida, os contos e romances de Clarice são
momentos privilegiados — que se cristalizam, através das
palavras, em obras — de uma 'inspiração' ininterrupta.
Sobretudo porque, para ela, esta palavra não tinha nada a ver
com o sentido meio esotérico de estado de alma abstrato em
que a pessoa se deixa mergulhar e não é conscientemente
responsável pelo que faz.

Para Clarice, inspiração era o conjunto inextrincável de
situações existenciais e sociais em que ela se movia ora com
amor, ora com ódio, ora com esperança, ora em desconsolo, e
de onde, em permanente confronto consigo mesma, arrancava
suas palavras, inventava suas ficções. Inspiração, portanto,
não lhe aparecia como a fonte onde o poeta, ao beber, se
aliena de si e do mundo.

Inspiração era-lhe, ao contrário, o chão seco em que
'lavrava', à custa de muito suor, os seus textos. Sua técnica,
embora (ou por isso mesmo...) toda intuitiva, já neste
primeiro romance, é de um rigor implacável. Nada é 'contado',
no sentido tradicional do termo, mas escrito: as situações e os
personagens surgem através de metáforas, que se articulam
ficcionalmente através do chamado fluxo da consciência. O
enredo, a história provável, constrói-a quem lê; ou seja, a
elaboração do 'romance' escapa do texto concreto para
desafiar a imaginação do leitor, que se torna co-autor. Assim,
aqui se põe em crise a representação do mundo com seus

códigos unívocos; desmitifica-se a relação do homem com este
mundo através destes códigos; desmonta-se a das pessoas
entre si; repele todos os cânones da linguagem que abala as
estruturas em que tais comportamentos se ossificam;
dilacera-se talvez o leitor, mas ao preço de abandonar a
contemplação medíocre do espetáculo da vida apenas possível
e transformar-se, coração selvagem tomado de alegria, num
arquiteto do impossível...



PRIMEIRA PARTE


O PAI...


A MÁQUINA DO PAPAI batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio
acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se
zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa.
Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma
orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons
estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da
árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava
para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhasque-
não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se
estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada,
tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra
minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha
que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro.
Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente
num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a
funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o
silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coi5
sas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver.
Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os
olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e
ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de
dança bem leves, alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como
se tivesse comido demais daquela mistura. "Oi, oi, oi...",
gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer
agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha
nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia
acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil
distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho
de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de través para
o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio
porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de
pó.
— Papai, inventei uma poesia.
— Como é o nome?
— Eu e o sol. — Sem esperar muito recitou:
— "As galinhas que estão no quintal já comeram duas
minhocas mas eu não vi".
— Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?
Ela olhou-o um segundo. Ele não compreendera...
— O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a
poesia e não vi as minhocas... — Pausa.
— Posso inventar outra agora mesmo: "Ó sol, vem
brincar comigo". Outra maior:
"Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que
ela não viu".
— Lindas, pequena, lindas. Gomo é que se faz uma
poesia tão bonita?
— Não é difícil, é só ir dizendo.
Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a
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uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um
carro azul atravessava o corpo de Aríete, matava-a. Depois
vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro
azul não eram senão Joana, do contrário seria pau a
brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel
principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam
uma ou outra figura. Trabalhava séria, calada, os braços ao
longo do corpo. Não precisava aproximar-se de Aríete para
brincar com ela. De longe mesmo possuía as coisas.
Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e
cada papelão era um aluno. Joana era a professora. Um deles
bom e outro mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E
sempre nada vinha se ela... pronto.
Inventou um homenzinho do tamanho do fura-bolos, de
calça comprida e laço de gravata. Ela usava-o no bolso da
farda de colégio. O homenzinho era uma pérola de bom, uma
pérola de gravata, tinha a voz grossa e dizia de dentro do
bolso: "Majestade Joana, podeis me escutardes um minuto,
só um minuto podereis interromperdes vossa sempre ocupação?"
E declarava depois: "Sou vosso servo, princesa. É só
mandar que eu faço".
— Papai, que é que eu faço?
— Vá estudar.
— Já estudei.
— Vá brincar.— Já brinquei.
— Então não amole.
Deu um corrupio e parou, espiando sem curiosidade as
paredes e o teto que rodavam e se desmanchavam. Andou na
ponta dos pés só pisando as tábuas escuras. Fechou os olhos
e caminhou, as mãos estendidas, até encontrar um móvel.
Entre ela e os objetos havia alguma coisa, mas quando
agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois espiava
— mesmo tomando cuidado para que nada escapasse
— só encontrava a própria mão, rósea e desapontada. Sim, eu
sei o ar, o ar! Mas não adiantava, não explicava. Esse era um
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de seus segredos. Nunca se permitiria contar, mesmo a papai,
que não conseguia pegar "a coisa". Tudo o que mais valia
exatamente ela não podia contar. Só falava tolices com as
pessoas. Quando dizia a Rute, por exemplo, alguns segredos,
ficava depois com raiva de Rute. O melhor era mesmo calar.
Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela
olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos
contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo.
Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se ficava
defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentindo
também era maior que os minutos contados no relógio. Agora,
quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o
relógio e observava os segundos em vão.
Foi à janela, riscou uma cruz no parapeito e cuspiu fora
em linha reta. Se cuspisse mais uma vez — agora só poderia
à noite — o desastre não aconteceria e Deus seria tão amigo
dela, mas tão amigo que... que o quê?
— Papai, que é que eu faço?
— Eu já lhe disse: vá brincar e me deixe!
— Mas eu já brinquei, juro. Papai riu:
— Mas brincar não termina...
— Termina sim.
— Invente outro brinquedo.
— Não quero brincar nem estudar.
— Quer fazer o quê então? Joana meditou:
— Nada do que sei...
— Quer voar?, pergunta papai distraído.
— Não, responde Joana. — Pausa. — Que é que eu
faço?
Papai troveja dessa vez:
— Bata com a cabeça na parede!
Ela se afasta fazendo uma trancinha nos cabelos
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escorridos. Nunca nunca nunca sim sim, canta baixinho.
Aprendeu a trançar um dia desses. Vai para a mesinha dos
livros, brinca com eles olhando-os a distância. Dona de casa
marido filhos, verde é homem, branco é mulher, encarnado
pode ser filho ou filha. "Nunca" é homem ou mulher? Por que
"nunca" não é filho nem filha? E "sim"? Oh, tinha muitas
coisas inteiramente impossíveis. Podia-se ficar tardes inteiras
pensando. Por exemplo: quem disse pela primeira vez assim:
nunca?
Papai termina o trabalho e vai encontrá-la sentada
chorando.
— Mas que é isso, menininha? — pega-a nos braços,
olha sem susto o rostinho ardente e triste. — O que é isso?
— Não tenho nada o que fazer.Nunca nunca sim sim.
Tudo era como o barulho do bonde antes de adormecer, até
que se sente um pouco de medo e se dorme. A boca da
máquina fechara como uma boca de velha, mas vinha aquilo
apertando seu coração como o barulho do bonde; só que ela
não ia adormecer. Era o abraço do pai. O pai medita um
instante. Mas ninguém pode fazer alguma coisa pelos outros,
ajuda-se. Anda tão solta a criança, tão magrinha e precoce...
Respira apressado, balança a cabeça. Um ovinho, é isso, um
ovinho vivo. O que vai ser de Joana?


O DIA DE JOANA


A CERTEZA DE QUE dou para o mal, pensava Joana.
O que seria então aquela sensação de força contida,
pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la
de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de
uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar
sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me
daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida.
Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de
inconseqüências, de egoísmo e vitalidade.
Lembrou-se do marido que possivelmente a des9
conheceria nessa idéia. Tentou relembrar a figura de Otávio.
Mal, porém, sentia que ele saíra de casa, ela se transformava,
concentrava-se em si mesma e, como se apenas tivesse sido
interrompida por ele, continuava lentamente a viver o fio da
infância, esquecia-o e movia-se pelos aposentos
profundamente só. Do bairro quieto, das casas afastadas, não
lhe chegavam ruídos. E, livre, nem ela mesma sabia o que
pensava.
Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito.
Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo
talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação...
Não, não, — repetia-se ela — é preciso não ter medo de criar.
No fundo de tudo possivelmente o animal repugnava-lhe
porque ainda havia nela o desejo de agradar e de ser amada
por alguém poderoso como a tia morta. Para depois no
entanto pisá-la, repudiá-la sem contemplações. Porque a melhor
frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá
ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a
carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer
inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-na de quando em
quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para
conservá-la um pedaço de carne morna e quieta.
Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira
um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados,
brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do
alimento. E as mãos, as mãos. Uma delas segurando o garfo
espetado num pedaço de carne sangrenta — não morna e
quieta, mas vivíssima, irônica, imoral —, a outra crispando-se
na toalha, arranhando-a nervosa na ânsia de já comer novo
bocado. As pernas sob a mesa marcavam compasso a uma
música inaudível, a música do diabo, de pura e incontida
violência. A ferocidade, a riqueza de sua cor... Avermelhada
nos lábios e na base do nariz, pálida e azulada sob os olhos
miúdos. Joana estremecera arrepiada diante de seu pobre
café. Mas não saberia depois se fora por repugnância ou por
fascínio e voluptuosidade. Por ambos certamente. Sabia que o
homem era uma força. Não se sentia capaz de comer como
ele, era naturalmente sóbria, mas a demonstração a
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perturbava. Emocionava-a também ler as histórias terríveis
dos dramas
onde a maldade era fria e intensa como um banho de
gelo. Como se visse alguém beber água e descobrisse que
tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta
de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que
sua sede pedisse inundações. Talvez apenas alguns goles...
Ah, eis uma lição, eis uma lição, diria a tia: nunca ir adiante,
nunca roubar antes de saber se o que você quer roubar existe
em alguma parte honestamente reservado para você. Ou não?
Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal — mastigar
vermelho, engolir fogo adocicado.
Não acusar-me. Buscar a base do egoísmo: tudo o que
não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser
além do que se é — no entanto eu me ultrapasso mesmo sem
o delírio, sou mais do que eu quase normalmente —; tenho
um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo;
se a civilização dos Maias não me interessa é porque nada
tenho dentro de mim que se possa unir aos seus baixosrelevos;
aceito tudo o que vem de mim porque não tenho
conhecimento das causas e é possível que esteja pisando no
vital sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhava
ela.
O pior é que ela poderia riscar tudo o que pensara. Seus
pensamentos eram, depois de erguidos, estátuas no jardim e
ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.
Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre
também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas
a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força e
essa fraqueza, batidas desordenadas do coração. Quando a
brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estremecia
de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente,
sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova
ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto —
refletia. Pensar agora, por exemplo, em regatos louros.
Exatamente porque não existem regatos louros, compreende?
assim se foge. Sim, mas os dourados de sol, louros de certo
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modo... Quer dizer que na verdade não imaginei. Sempre a
mesma queda: nem o mal nem a imaginação. No primeiro, no
centro final, a sensação simples e sem adjetivos, tão cega
quanto uma pedra rolando. Na imaginação, que só ela tem a
força do mal, apenas a visão engrandecida e transformada:
sob ela a verdade impassível. Mente-se e cai-se na verdade.
Mesmo na liberdade, quando escolhia alegre novas veredas,
reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de
novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro
de si. Perdido pois o gosto de imaginar. E o dia em que
chorei? — havia certo desejo de mentir também — estudava
matemática e subitamente senti a impossibilidade
tremenda e fria do milagre. Olho por essa janela e a única
verdade, a verdade que eu não poderia dizer àquele homem,
abordando-o, sem que ele fugisse de mim, a única verdade é
que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é
demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco
a inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se
dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não importa,
encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como
não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso
dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento
em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o
que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo
menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu
digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta
do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na
superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro
do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer. O
gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos
um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente.
Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo.
Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas
sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? Não, não
passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é
que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as
realidades, a única irredutível, a da existência. E abaixo de
todas as dúvidas — o estudo cromático — sei que tudo é
perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em
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relação a si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é
essa a história de tudo. Mas isso não explica por que eu me
emociono quando Otávio tosse e põe a mão no peito, assim.
Ou senão quando fuma, e a cinza cai no seu bigode, sem que
ele note. Ah, piedade é o que sinto então. Piedade é a minha
forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me
sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo desejo,
outro pelo medo. Piedade das coisas que acontecem sem
que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de
hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da
manhãzinha de verão. Estou cansada, agora agudamente!
Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar
tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada.
Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, Deus. Durmamos
de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há
coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério,
nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.
Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem
do fogão que se destampa?
O dia tinha sido igual aos outros e talvez daí viesse o
acúmulo de vida. Acordara cheia da luz do dia, invadida.
Ainda na cama, pensara em areia, mar, beber água do mar
na casa da tia morta, em sentir, sobretudo sentir. Esperou
alguns segundos sobre a cama e como nada acontecesse
viveu um dia comum. Ainda não se libertara do desejo-podermilagre,
desde pequena. A fórmula se realizava tantas vezes:
sentir a coisa sem possuí-la. Apenas era preciso que tudo a
ajudasse, a deixasse leve e pura, em jejum para receber a
imaginação. Difícil como voar e sem apoio para os pés receber
nos braços algo extremamente precioso, uma criança por
exemplo. Mesmo só em certo ponto do jogo perdia a sensação
de que estava mentindo — e tinha medo de não estar
presente em todos os seus pensamentos. Quis o mar e sentiu
os lençóis da cama. O dia prosseguiu e deixou-a atrás,
sozinha.
Ainda deitada, quedara-se silenciosa, quase sem pensar
como às vezes sucedia. Observava ligeiramente a casa cheia
de sol, àquela hora, as vidraças altivas e brilhantes como se
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elas próprias fossem a luz. Otávio saíra. Ninguém em casa. E
de tal modo ninguém dentro de si mesma que podia ter os
pensamentos mais desligados da realidade, se quisesse. Se eu
me visse na terra lá das estrelas ficaria só de mim. Não era
noite, não havia estrelas, impossível observar-se a tal
distância. Distraída lembrou-se então de alguém — grandes
dentes separados, olhos sem cílios —, dizendo bem seguro da
originalidade, mas sincero: tremendamente noturna a minha
vida. Depois de falar, esse alguém ficava parado, quieto como
um boi à noite; de quando em quando movia a cabeça num
gesto sem lógica e finalidade para depois voltar a se
concentrar na estupidez. Enchia todo o mundo de espanto.
Ah, sim, o homem era de sua infância e junto à sua
lembrança estava um molho úmido de grandes violetas,
trêmulas de viço... Nesse instante mais desperta, se quisesse,
com um pouco mais de abandono, Joana poderia reviver toda
a infância... O curto tempo de vida junto ao pai, a mudança
para a casa da tia, o professor ensinando-lhe a viver, a
puberdade elevando-se misteriosa, o internato... o casamento
com Otávio... Mas tudo isso era muito mais curto, um
simples olhar surpreso esgotaria todos esses fatos.
Era um pouco de febre, sim. Se existisse pecado, ela pecara.
Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a
mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? E
a continuação do que ela iniciara quando criança? Era um
pouco de febre. Resultado daqueles dias em que vagava de
um lado a outro, repudiando e amando mil vezes as mesmas
coisas. Daquelas noites vivendo escuras c silenciosas, as
pequenas estrelas piscando no alto. A moça estendida sobre a
cama, olho vigilante na penumbra. A cama esbranquiçada
nadando na escuridão. O cansaço rastejando no seu corpo, a
lucidez fugindo ao polvo. Sonhos esgarçados, inícios de visões.
Otávio vivendo no outro quarto. E de repente toda a
lassidão da espera concentrando-se num movimento nervoso
e rápido do corpo, o grito mudo. Frio depois, e sono.
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...UM DIA...


UM DIA O AMIGO do pai veio de longe e abraçou-se com

ele. Na hora do jantar, Joana viu estupefata e contrita uma
galinha nua e amarela sobre a mesa. O pai e o homem
bebiam vinho e o homem dizia de quando em quando:
— Nem posso acreditar que tu tenhas arranjado uma
filha...
O pai voltava-se rindo para Joana e dizia:
— Comprei na esquina...
O pai estava alegre e também ficava sério, amassando
bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de
vinho. O homem virava-se para Joana e dizia:
— Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai
respondia:
— Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem
era Alfredo.
— Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais
em idade de brincar com o que o porco faz...
Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma
asa de galinha e ela ia comendo sem pão.
— Qual a sensação de ter uma guria?, o homem
mastigava.
O pai enxugava a boca com o guardanapo, inclinava a
cabeça para um lado e dizia sorrindo:
— Às vezes a de ter um ovo quente na mão. Às vezes,
nenhuma: perda total de memória... Uma vez ou outra a de
ter uma guria minha, minha mesmo.
— Guria, guria, muria, leria, seria..., cantava o homem
voltado para Joana. Que é que tu vais ser quando cresceres e
fores moça e tudo?
— Quanto ao tudo ela não tem a menor idéia meu caro,
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declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus
projetos. Me disse que quando crescer vai ser herói...
O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segurou o
queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia
mastigar:
— Não vai chorar pelo segredo revelado, não é, guria?
Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham
acontecido antes dela nascer. Às vezes mesmo não eram
sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas
também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que
estivesse chovendo porque seria muito mais fácil dormir sem
medo do escuro. Os dois homens buscavam os chapéus para
sair; então, ela se levantou e puxou o paletó do pai:
— Fica mais...
Os dois homens se entreolharam e houve um instante
em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas
quando o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e
depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até
que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir
chuva, sem ouvir gente, pensando no resto da casa negra,
vazia e calada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a
piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acordasse, iria
espiar o quintal do vizinho, ver as galinhas porque ela hoje
comera galinha assada.
— Eu não podia esquecê-la, dizia o pai. Não que vivesse
a pensar nela. Uma vez ou outra um pensamento, como um
lembrete para pensar mais tarde. Mais tarde vinha e eu não
chegava a refletir seriamente. Era só aquela fisgada ligeira,
sem dor, um ah! não esboçado, um instante de meditação
vaga e esquecimento depois. Chamava-se... — olhou para
Joana — chamava-se Elza. Me lembro que até lhe disse: Elza
é um nome como um saco vazio. Era fina, enviesada — sabe
como, não é? —, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas
conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez
em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois
ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela
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faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse.
Não, ela não se entregava nunca. E mesmo aquela cor seca —
felizmente a guria não puxou —, aquela cor não combinava
com uma camisola... Ela passaria a noite a rezar, a olhar
para o céu escuro, a velar por alguém. Eu tinha má memória,
nem me lembrava por que a chamara de bruta. Mas não tão
má que a esquecesse. Via-a ainda caminhando sobre um
areai, os passos duros, o rosto fechado e longínquo. O mais
curioso, Alfredo, é que não poderia ter existido nenhum areai.
No entanto a visão era teimosa e resistia às explicações.
O homem fumava, quase deitado na cadeira. Joana
riscava com a unha o couro vermelho da velha poltrona.
— Uma vez eu acordei com febre, de madrugada. Parece
até que ainda sinto a língua dentro da boca, quente, seca,
áspera como um trapo. Você sabe meu pavor de sofrer,
prefiro vender minha alma. Pois pensei nela. Incrível. Já
completara trinta e dois anos, se não me engano. Conheceraa
aos vinte, fugazmente. E num momento de angústia, dentre
tantos amigos — e mesmo você, que eu não sabia por onde
andava — nesse momento pensava nela. Era o diabo...
O amigo ria:
— É o diabo sim...
— Tu não imaginas sequer: nunca vi alguém ter tanta
raiva das pessoas, mas raiva sincera e desprezo também. E
ser ao mesmo tempo tão boa... secamente boa. Ou estou
errado? Eu é que não gostava daquele tipo de bondade: como
se risse da gente. Mas me acostumei. Ela não precisava de
mim. Nem eu dela, é verdade. Mas vivíamos juntos. O que eu
ainda agora queria saber, dava tudo para saber, é o que ela
tanto pensava. Você, como me vê e como me conhece, me
acharia o tipo mais simplório perto dela. Imagine então a
impressão causada na minha pobre e escassa família: foi
como se eu tivesse trazido para o seu rosado e farto seio —
lembras-te, Alfredo? — os dois riram — foi como se eu tivesse
trazido o micróbio da varíola, um herege, nem sei o quê... Sei
lá, eu mesmo prefiro que esse broto aí não a repita. E nem a
mim, por Deus... Felizmente tenho a impressão de que Joana
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vai seguir seu próprio caminho...
— E então?, disse o homem em seguida.
— Então... nada. Ela morreu assim que pôde. Depois o
homem disse:
— Espia, tua filha quase dorme... Faz um ato de
bondade: bota-a na cama.
Mas ela não dormia. É que entrefechando os olhos,
deixando a cabeça cair de lado, valia um pouco como se
estivesse chovendo, tudo se misturava levemente. Assim
quando ela deitasse e puxasse o lençol estaria mais
acostumada com dormir e não sentiria o escuro pesando
sobre o seu peito. Hoje então que ela estava com medo de
Elza. Mas não se pode ter medo da mãe. A mãe era como um
pai. Enquanto o pai a carregava pelo corredor para o quarto,
encostou a cabeça nele, sentiu o cheiro forte que vinha dos
seus braços. Dizia sem falar: não, não, não... Para animar-se
pensou: amanhã, amanhã bem cedo ver as galinhas vivas.
O fim de sol tremia lá fora nos galhos verdes. Os
pombos ciscavam a terra solta. De quando em quando
vinham até a sala de aula a brisa e o silêncio do pátio de
recreio. Então tudo ficava mais leve, a voz da professora
flutuava como uma bandeira branca.
— E daí em diante ele e toda a família dele foram felizes.
— Pausa — as árvores mexeram no quintal, era um dia de
verão. — Escrevam em resumo essa história para a próxima
aula.
Ainda mergulhadas no conto as crianças moviam-se
lentamente, os olhos leves, as bocas satisfeitas.
— O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua
voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana,
— Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
18
— Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
— Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O
que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
— Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer,
que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
— Ser feliz é para se conseguir o quê?
A professora enrubesceu — nunca se sabia dizer por que
ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar
para o recreio.
O servente veio chamar a menina para o gabinete. A
professora lá se achava:
— Sente-se... Brincou muito?
— Um pouco...
— Que é que você vai ser quando for grande?
— Não sei.
— Bem. Olhe, eu tive também uma idéia — corou.
— Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta
que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo.
Quando você for grande leia-a de novo. — Olhou-a. — Quem
sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum
modo... — Perdeu o ar sério, corou. — Ou talvez isso não
tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
— Não.
— Não o quê? — perguntou surpresa a professora.
— Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.
A professora ficou novamente rosada:
— Bem, vá brincar.
Quando Joana estava à porta em dois pulos, a
professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço,
os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:
19
— Você não achou esquisito... engraçado eu mandar
você escrever a pergunta para guardar?
— Não, disse. Voltou para o pátio.


O PASSEIO DE JOANA


— Eu ME DISTRAIO muito, disse Joana a Otávio.
Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem
um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser
espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio
transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele
mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os
dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava
sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de
conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como
ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione?
como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma
suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem
que as coisas a possuíssem?
A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim.
Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam
sem que os homens os acompanhassem com um olhar
sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada.
Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe
e era grande, em primeiro lugar; em segundo, que era
pequena e estava perto. Mas de qualquer modo, uma
montanha estúpida, castanha e dura. Como odiava a
natureza às vezes. Sem saber por que, pareceu-lhe que a
última reflexão, misturada à montanha, concluía alguma
coisa, batendo com a mão aberta sobre a mesa: pronto!
pesadamente. Aquilo cinzento e verde estendido dentro de
Joana como um corpo preguiçoso, magro e áspero, bem
dentro dela, inteiramente seco, como um sorriso sem saliva,
como olhos sem sono e enervados, aquilo confirmava-se
diante da montanha parada. O que não conseguiria pegar
com a mão estava agora glorioso e alto e livre e era inútil
tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia segu20
ramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores
folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus.
Isso, sim, isso: se existisse Deus, é que ele teria desertado
daquele mundo subitamente, excessivamente limpo, como
uma casa ao sábado, quieta, sem poeira, cheirando a sabão.
Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a
perdida como num mosteiro, desolada, vagando pelos
corredores? E muitas coisas que observava ainda. Assim, se
suportava o gelo sobre o fígado, era atravessada por
sensações longínquas e agudas, por idéias luminosas e
rápidas, e se então tivesse que falar diria: sublime, com as
mãos estendidas para frente, talvez os olhos cerrados.
— Então eu me distraio muito, repetiu.
Sentiu-se um galho seco, espetado no ar. Quebradiço, coberto
de cascas velhas. Talvez estivesse com sede, mas não havia
água por ali perto. E sobretudo a certeza asfixiante de que se
um homem a abraçasse naquele momento sentiria não a
doçura macia nos nervos, mas o sumo de limão ardendo
sobre eles, o corpo como madeira próxima do fogo, vergada,
estalante, seca. Não podia acalentar-se dizendo: isto é apenas
uma pausa, a vida depois virá como uma onda de sangue,
lavando-me, umedecendo a madeira crestada. Não podia
enganar-se porque sabia que também estava vivendo e que
aqueles momentos eram o auge de alguma coisa difícil, de
uma experiência dolorosa que ela devia agradecer: quase
como sentir o tempo fora de si mesma, abstraindo-se.
— Eu notei, você gosta de andar, disse Otávio
apanhando um graveto. Aliás você já gostava mesmo antes de
casarmos.
— Sim, muito — respondeu.
Poderia dar-lhe um pensamento qualquer e então criaria
uma nova relação entre ambos. Isso é o que mais lhe
agradava, junto das pessoas. Ela não era obrigada a seguir o
passado, e com uma palavra podia inventar um caminho de
vida. Se dissesse: estou no terceiro mês de gravidez, pronto!
entre ambos viveria alguma coisa. Se bem que Otávio não
fosse particularmente estimulante. Com ele a possibilidade
21
mais próxima era a de ligar-se ao que já acontecera. Mesmo
assim, sob o seu olhar "me poupe, me poupe", ela abria a
mão de quando em quando e deixava um passarinho
subitamente voar. Às vezes, no entanto, talvez pela qualidade
do que dizia, nenhuma ponte se criava entre eles e, pelo
contrário, nascia um intervalo. "Otávio — dizia-lhe ela de
repente —, você já pensou que um ponto, um único ponto
sem dimensões, é o máximo de solidão? Um ponto não pode
contar nem consigo mesmo, foi-não-foi está fora de si." Como
se ela tivesse jogado uma brasa ao marido, a frase pulava de
um lado para outro, escapulia-lhe das mãos até que ele se
livrasse dela com outra frase, fria como cinza, cinza para
cobrir o intervalo: está chovendo, estou com fome, o dia está
belo. Talvez porque ela não soubesse brincar. Mas ela o
amava, àquele seu jeito de apanhar gravetos.
Aspirou o ar morno e claro da tarde, e o que nela pedia
água restava tenso e rígido como quem espera de olhos
vedados pelo tiro.
A noite veio e ela continuou a respirar no mesmo ritmo
estéril. Mas quando a madrugada clareou o quarto
docemente, as coisas saíram frescas das sombras, ela sentiu
a nova manhã insinuando-se entre os lençóis e abriu os
olhos. Sentou-se sobre a cama. Dentro de si era como se não
houvesse a morte, como se o amor pudesse fundi-la, como se
a eternidade fosse a renovação.


...A TIA...

A VIAGEM ERA LONGA e das moitas longínquas vinha um
cheiro frio de mato molhado.
Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de
lavar o rosto. A empregada ao seu lado distraía-se soletrando
os anúncios do bonde. Joana encostara a têmpora direita no
banco e deixava-se atordoar pelo doce ruído das rodas,
transmitido sono-lentamente pela madeira. O chão corria sob
seus olhos baixos, célere, cinzento, raiado de listras velozes e
fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acabaria
22
com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o
bonde corria mais e que se tornava mais forte o vento salgado
e fresco do nascer do dia.
Tomara o café com um bolo esquisito, escuro — gosto de
vinho e de barata — que lhe tinham feito comer com tanta
ternura e piedade que ela se envergonhara de recusar. Agora
pesava-lhe no estômago e dava-lhe uma tristeza de corpo que
se juntava àquela outra tristeza — uma coisa imóvel atrás da
cortina — com que dormira e acordara.
— Essa areia afundando mata um cristão, resmungou a
empregada.
Atravessou a extensão de areia que levava à casa da tia,
prenunciando a praia. Debaixo dos grãos nasciam ervas
magras e escuras que se retorciam asperamente à superfície
da brancura fofa. A ventania vinha do mar invisível, trazia
sal, areia, o barulho cansado das águas, embaraçava as saias
entre as pernas, lambendo furiosamente a pele da menina e
da mulher.
— Que ódio, disse entre dentes a criada. Uma rajada
mais forte levantou-lhe a saia até o rosto, deixou nuas suas
coxas escuras e musculosas. Os coqueiros se retorciam
desesperados e a claridade a um tempo velada e violenta se
refletia no areai e no céu, sem que o sol se tivesse mostrado
ainda. Meu Deus, o que acontecera com as coisas? Tudo
gritava: não! não!
A casa da tia era um refúgio onde o vento e a luz não
entravam. A mulher sentou-se com um suspiro na sombria
sala de espera, onde, entre os móveis pesados e escuros,
brilhavam levemente os sorrisos dos homens emoldurados.
Joana continuou de pé, mal respirando aquele cheiro morno
que após a maresia forte vinha doce e parado. Mofo e chá
com açúcar.
A porta para o interior da casa abriu-se finalmente e sua
tia com um robe de flores grandes precipitou-se sobre ela.
Antes que pudesse fazer qualquer movimento de defesa,
Joana foi sepultada entre aquelas duas massas de carne
23
macia e quente que tremiam com os soluços. De lá de dentro,
da escuridão, como se ouvisse através de um travesseiro,
escutou as lágrimas:
— Pobre da orfãzinha!
Sentiu o rosto violentamente afastado do peito da tia por
suas mãos gordas e por ela foi observada durante um
segundo. A tia passava de um movimento para outro sem
transição, em quedas rápidas e bruscas. Nova onda de choro
rebentou no seu corpo e Joana recebeu beijos angustiados
pelos olhos, pela boca, pelo pescoço. A língua e a boca da tia
eram moles e mornas como as de um cachorro. Joana fechou
os olhos um instante, engoliu o enjôo e o bolo escuro que lhe
subiam do estômago com arrepios por todo o corpo. A tia
tirou um lenço grande e amarrotado, assoou o nariz. A
empregada continuava sentada, observando os quadros, as
pernas largadas, a boca aberta. Os seios da tia eram
profundos, podia-se meter a mão como dentro de um saco e
de lá retirar uma surpresa, um bicho, uma caixa, quem sabe
o quê. Aos soluços eles cresciam, cresciam e de dentro da
casa veio um cheiro de feijão misturado com alho. Em alguma
parte, certamente, alguém beberia grandes goles de azeite. Os
seios da tia podiam sepultar uma pessoa!
— Me deixe! — gritou Joana agudamente, batendo o pé
no chão, os olhos dilatados, o corpo tremendo.
A tia apoiou-se no piano, tonta. A criada disse:
— Deixe mesmo, ela está mas é cansada. Joana
ofegava, o rosto branco. Passou os olhos escurecidos pela
salinha, perseguida. As paredes eram grossas, ela estava
presa, presa! Um homem no quadro olhava-a de dentro dos
bigodes e os seios da tia podiam derramar-se sobre ela, em
gordura dissolvida. Empurrou a porta pesada e fugiu.
Uma onda de vento e de areia entrou no hall, levantou
as cortinas, trouxe leve ar fresco. Pela porta aberta, o lenço
na boca tapando o soluço e a surpresa — oh o terrível
desapontamento — a tia viu por alguns momentos as pernas
magras e descobertas da sobrinha correrem, correrem entre o
24
céu e a terra, até desaparecerem rumo à praia.
Joana enxugou com as costas das mãos o rosto
umedecido de beijos e lágrimas. Respirou mais profundamente,
sentiu ainda o gosto insosso daquela saliva
morna, o perfume doce que vinha dos seios da tia. Sem se
conter mais, a cólera e a repugnância subiram-lhe em vagas
violentas e inclinada para a cavidade entre as rochas
vomitou, os olhos fechados, o corpo doloroso e vingativo.
O vento lambia-a rudemente agora. Pálida e frágil, a
respiração leve, sentia-o salgado, alegre, correr pelo seu
corpo, por dentro de seu corpo, revigorando-o. Entreabriu os
olhos. Lá embaixo o mar brilhava em ondas de estanho,
deitava-se profundo, grosso, sereno. Vinha denso e revoltado,
enroscando-se ao redor de si mesmo. Depois, sobre a areia
silenciosa, estirava-se... estirava-se como um corpo vivo.
Além das pequenas ondas tinha o mar — o mar. O mar —
disse baixo, a voz rouca.
Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia solitária
até receber a água nos pés. De cócoras, as pernas trêmulas,
bebeu um pouco de mar. Assim ficou descansando. Às vezes
entrefechava os olhos, bem ao nível do mar e vacilava, tão
aguda era a visão — apenas a linha verde comprida, unindo
seus olhos à água infinitamente. O sol rompeu as nuvens e os
pequenos brilhos que cintilaram sobre as águas eram
foguinhos acendendo e apagando. O mar, além das ondas,
olhava de longe, calado, sem chorar, sem seios. Grande,
grande. Grande, sorriu ela. E, de repente, assim, sem
esperar, sentiu uma coisa forte dentro de si mesma, uma
coisa engraçada que fazia com que ela tremesse um pouco.
Mas não era frio, nem estava triste, era uma coisa grande que
vinha do mar, que vinha do gosto de sal na boca, e dela, dela
própria. Não era tristeza, uma alegria quase horrível... Cada
vez que reparava no mar e no brilho quieto do mar, sentia
aquele aperto e depois afrouxamento no corpo, na cintura, no
peito. Não sabia mesmo se havia de rir porque nada era propriamente
engraçado. Pelo contrário, oh pelo contrário, atrás
daquilo estava o que acontecera ontem. Cobriu o rosto com as
mãos esperando quase envergonhada, sentindo o calor de seu
25
riso e de sua expiração ser novamente sorvido. A água corria
pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos,
escapulindo clara clara como um bicho transparente.
Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-lo, de mordê-lo
devagar. Pegou-o com as mãos em concha. O pequeno lago
quieto faiscava serenamente ao sol, amornava, escorregava,
fugia. A areia chupava-o depressa-depressa, e continuava
como se nunca tivesse conhecido a agüinha. Nela molhou o
rosto, passou a língua pela palma vazia e salgada. O sal e o
sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali,
picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua
felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de
ar. Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era
uma alegria quase de chorar, meu Deus. Devagar veio vindo o
pensamento. Sem medo, não cinzento e choroso como viera
até agora, mas nu e calado embaixo do sol como a areia
branca. Papai morreu. Papai morreu. Respirou
vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo que o pai
morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de
peixe de água. O pai morrera como o mar era fundo!
compreendeu de repente. O pai morrera como não se vê o
fundo do mar, sentiu.
Não estava abatida de chorar. Compreendia que o pai
acabara. Só isso. E sua tristeza era um cansaço grande,
pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa.
Olhava os pés escuros e finos como galhos juntos da alvura
quieta onde eles afundavam e de onde se erguiam
ritmadamente, numa respiração. Andou, andou e não havia o
que fazer: o pai morrera.
Deitou-se de bruços sobre a areia, as mãos resguardando o
rosto, deixando apenas uma pequena fresta para o ar. Foi-se
fazendo escuro escuro e aos poucos círculos e manchas
vermelhas, bolas cheias e trêmulas surgiram, aumentando e
diminuindo. Os grãos de areia picavam sua pele, nela se
enterravam. Mesmo de olhos fechados sentiu que na praia as
ondas eram sugadas pelo mar rapidamente rapidamente,
também de pálpebras cerradas. Depois voltavam de manso, a
palma das mãos abertas, o corpo solto. Era bom ouvir o seu
26
barulho. Eu sou uma pessoa. E muitas coisas iam se seguir.
O quê? O que acontecesse contaria a si própria. Mesmo
ninguém entenderia: ela pensava uma coisa e depois não sabia
contar igual. Sobretudo nisso de pensar tudo era
impossível. Por exemplo, às vezes tinha uma idéia e
surpreendida refletia: por que não pensei isto antes? Não era
a mesma coisa que ver subitamente um cortezinho na mesa e
dizer: ora, eu não tinha visto! Não era... Uma coisa que se
pensava não existia antes de se pensar. Por exemplo, assim: a
marca dos dedos de Gustavo. Isso não vivia antes de se dizer:
a marca dos dedos de Gustavo... O que se pensava passava a
ser pensado. Mais ainda: nem todas as coisas que se pensam
passam a existir daí em diante... Porque se eu digo: titia
almoça com titio, eu não faço nada viver. Ou mesmo se eu
resolvo: vou passear; é bom, passeio... e nada existe. Mas se
eu digo, por exemplo: flores em cima do túmulo, pronto eis
uma coisa que não existia antes de eu pensar flores em cima
do túmulo. A música também. Por que não tocava sozinha
todas as músicas que existiam? — Ela olhava o piano aberto
— as músicas lá estavam contidas... Seus olhos se
alargavam, escurecidos, misteriosos. "Tudo, tudo." Foi então
que começou a mentir. — Ela era uma pessoa que já
começara, pois. Tudo isso era impossível de explicar, como
aquela palavra "nunca", nem masculina nem feminina. Mas
mesmo assim ela não sabia quando dizer "sim"? Sabia. Oh,
ela sabia cada vez mais. Por exemplo, o mar. O mar era
muito. Tinha vontade de afundar na areia pensando nele, ou
senão de abrir bem os olhos, ficar olhando, mas depois não
achava para que olhar. Na casa da tia certamente lhe dariam
doces nos primeiros dias. Tomaria banho na banheira azul e
branca, uma vez que ia morar na casa. E todas as noites,
quando ficasse escuro, ela vestiria a camisola, iria dormir. De
manhã, café com leite e biscoitos. A tia sempre fazia biscoitos
grandes. Mas sem sal. Como uma pessoa de preto olhando
pelo bonde. Ela molharia o biscoito no mar antes de comer.
Daria uma mordida e voaria até casa para beber um gole de
café. E assim por diante. Depois brincaria no quintal, onde
havia paus e garrafas. Mas sobretudo aquele galinheiro velho
sem galinhas. O cheiro era de cal e de porcarias e de coisa
27
secando. Mas podia-se ficar lá dentro sentada, bem junto do
chão, vendo a terra. A terra formada de tantos pedaços que
doía a cabeça de uma pessoa pensar em quantos. O
galinheiro tinha grades e tudo, seria a casa dela. E havia
ainda a fazenda do tio, que ela apenas conhecia, mas onde
passaria dagora em diante as férias. Quantas coisas estava
ganhando, hein? Afundou o rosto nas mãos. Oh, que medo,
que medo. Mas não era só medo. Era assim como quem
acaba uma coisa e diz: acabei, professora. E a professora diz:
espere sentada pelos outros. E a gente fica quieta esperando,
como dentro de uma igreja. Uma igreja alta e sem dizer nada.
Os santos finos e delicados. Quando a gente toca são frios.
Frios e divinos. E nada diz nada. Oh, o medo, o medo. Porém
não era só medo. Não tenho nada o que fazer também, não
sei o que fazer também. Como olhar uma coisa bonita, um
pintinho fofo, o mar, um aperto na garganta. Mas não era só
isso. Olhos abertos piscando, misturados com as coisas atrás
da cortina.


ALEGRIAS DE JOANA


A LIBERDADE QUE Às VEZES sentia não vinha de reflexões
nítidas, mas de um estado como feito de percepções por
demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos.
Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe
dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmurava:
eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de
eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem
propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões
também. A impressão de que se conseguisse manter-se na
sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente,
como enxergar o resto do mundo apenas inclinandose
da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo,
mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não
poder contê-lo no corpo por causa da morte; a
impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e
também era eterno um sentimento em pureza absoluta,
28
quase abstrato. Sobretudo dava idéia de eternidade a
impossibilidade de saber quantos seres humanos se
sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do
presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como
as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo
sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam,
tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como
uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o
tempo que a mente humana pode suportar em idéia também
não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua
qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser
mensurável e divisível porque tudo o que se podia medir e
dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a
quantidade infinitamente grande que se desgastava, mas
eternidade era a sucessão.
Então Joana compreendia subitamente que na sucessão
encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento
explicava a forma — era tão alto e puro gritar: o movimento
explica a forma! — e na sucessão também se encontrava a
dor porque o corpo era mais lento que o movimento de
continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía
o futuro do presente, enquanto o corpo restava no começo do
caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do
espírito... Através dessas percepções — por meio delas Joana
fazia existir alguma coisa — ela se comunicava a uma alegria
suficiente em si mesma.
Havia muitas sensações boas. Subir o monte, parar no cimo
e, sem olhar, sentir atrás a extensão conquistada, lá longe a
fazenda. O vento fazendo esvoaçar as roupas, os cabelos. Os
braços livres, o coração fechando e abrindo selvagemente,
mas o rosto claro e sereno sob o sol. E sabendo principalmente
que a terra embaixo dos pés era tão profunda e tão
secreta que não havia a temer a invasão do entendimento
dissolvendo seu mistério. Tinha uma qualidade de glória esta
sensação.
Certos momentos da música. A música era da categoria
29
do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e
espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que
ao ouvi-la, este se revelava. Do pensamento tão íntimo que
ouvindo alguém repetir as ligeiras nuances dos sons, Joana
se surpreendia como se fora invadida e espalhada. Deixava
até de sentir a harmonia quando esta se popularizava —
então não era mais sua. Ou mesmo quando a escutava várias
vezes, o que destruía a semelhança: porque seu pensamento
jamais se repetia, enquanto a música podia se renovar igual a
si própria — o pensamento só era igual a música se criando.
Joana não se identificava profundamente com todos os sons.
Só com aqueles puros, onde o que amava não era trágico nem
cômico.
Havia muita coisa a ver também. Certos instantes de ver
valiam como "flores sobre o túmulo": o que se via passava a
existir. No entanto Joana não esperava a visão num milagre
nem anunciada pelo anjo Gabriel. Surpreendia-a mesmo no
que já enxergara, mas subitamente vendo pela primeira vez,
subitamente compreendendo que aquilo vivia sempre. Assim,
um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não
precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a
balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma
tarde... E de repente, sim, ali estava a coisa verdadeira. Um
retrato antigo de alguém que não se conhece e nunca se
reconhecerá porque o retrato é antigo ou porque o retratado
tornou-se pó — esta sem-intenção modesta provocava nela
um momento quieto e bom. Também um mastro sem
bandeira, ereto e mudo, fincado num dia de verão — rosto e
corpo cegos. Para se ter uma visão, a coisa não precisava ser
triste ou alegre ou se manifestar. Bastava existir, de preferência
parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por
Deus, a marca da existência... Mas isso não deveria ser
buscado uma vez que tudo o que existia forçosamente
existia... É que a visão consistia em surpreender o símbolo
das coisas nas próprias coisas.
As descobertas vinham confusas. Mas daí também
nascia certa graça. Como esclarecer a si própria, por exemplo,
que linhas agudas e compridas tinham claramente a marca?
30
Eram finas e magras. Em dado momento paravam tão linhas,
tão no mesmo estado como no começo. Interrompidas,
sempre interrompidas não porque terminassem, mas porque
ninguém podia levá-las a um fim. Os círculos eram mais
perfeitos, menos trágicos, e não a tocavam bastante. Círculo
era trabalho de homem, acabado antes da morte, e nem Deus
completá-lo-ia melhor. Enquanto linhas retas, finas, soltas —
eram como pensamentos.
Outras confusões ainda. Assim lembrava-se de Joana-menina
diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que
vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar,
do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um...,
entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do
gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de
que não sabia se entrara "tudo é um" ainda em pequena,
diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a
confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma.
Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que
sentira, teria destruído a essência de "tudo é um". Na
confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que
talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa
verdade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque
não formava o seu caule, mas a raiz, prendendo seu corpo a
tudo o que não era mais seu, imponderável, impalpável.
Oh, havia muitos motivos de alegria, alegria sem riso,
séria, profunda, fresca. Quando descobria coisas a respeito
de si mesma exatamente no momento em que falava o
pensamento correndo paralelo à palavra. Um dia cantara a
Otávio histórias de Joana-menina do tempo da criada que
sabia brincar como ninguém. Brincava de sonhar.
— Está dormindo?
— Muito.
— Então acorde, é de madrugada. . . Sonhou? A
princípio sonhava com carneiros, com ir à escola, com gatos
tomando leite. Aos poucos sonhava com carneiros azuis, com
ir a uma escola no meio do mato, com gatos bebendo leite em
pires de ouro. E cada vez mais se adensavam os sonhos e
31
adquiriam cores difíceis de se diluir em palavras.
— Sonhei que as bolas brancas vinham subindo de
dentro...
— Que bolas? De dentro de onde?
— Não sei, só que elas vinham...
Depois de ouvi-la, Otávio lhe dissera:
— Agora penso que talvez tivessem abandonado você
muito cedo... a casa da tia... os estranhos ... depois o
internato...
Joana pensara: mas havia o professor. Respondera:
— Não... O que mais poderiam fazer comigo? Ter tido
uma infância não é o máximo? Ninguém conseguiria tirá-la
de mim... — e nesse instante já começara a ouvir-se, curiosa.
— Eu não voltaria um momento à minha meninice,
continuara Otávio absorto, certamente pensando no tempo de
sua prima Isabel e da doce Lídia. Nem um instante sequer.
— Mas eu também, apressara-se Joana em responder,
nem um segundo. Não tenho saudade, compreende? — E
nesse momento declarou alto, devagar, deslumbrada. — Não
é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do
que enquanto ela decorria...
Sim, havia muitas coisas alegres misturadas ao sangue.
E Joana também podia pensar e sentir em vários caminhos
diversos, simultaneamente. Assim, enquanto Otávio falara,
apesar de ouvi-lo, observara pela janela uma velhinha ao sol,
encardida, leve e rápida — um galho trêmulo à brisa. Um
galho seco onde havia tanta feminilidade, pensara Joana, que
a pobre poderia ter um filho se a vida não tivesse secado no
seu corpo. Depois, mesmo enquanto Joana respondia a
Otávio, lembrava-se do verso que o pai fizera especialmente
para ela brincar, num dos que-é-que-eu-faço:
Margarida a Violeta conhecia,
32
uma era cega, uma bem louca vivia,
a cega sabia o que a doida dizia
e terminou vendo o que ninguém mais via...
como uma roda rodando, rodando, agitando o ar e
criando brisa.
Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo
sofrimento se desenrolava também se existia — como um rio
aparte.
E também se podia esperar o instante que vinha... que
vinha... e de súbito se precipitava em presente e de repente se
dissolvia... e outro que vinha... que vinha...


...O BANHO...


No MOMENTO EM QUE A TIA foi pagar a compra, Joana
tirou o livro e meteu-o cuidadosamente entre os outros,
embaixo do braço. A tia empalideceu.
Na rua a mulher buscou as palavras com cuidado:
— Joana... Joana, eu vi...
Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou
silenciosa.
— Mas você não diz nada? — não se conteve a tia, a voz
chorosa. — Meu Deus, mas o que vai ser de você?
— Não se assuste, tia.
— Mas uma menina ainda... Você sabe o que fez?
— Sei...
— Sabe... sabe a palavra...?
— Eu roubei o livro, não é isso?
— Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faça, pois
ela ainda confessa!
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— A senhora me obrigou a confessar.
— Você acha que se pode... que se pode roubar?
— Bem... talvez não.
— Por que então... ?
— Eu posso.
— Você?! — gritou a tia.
— Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser.
Não faz mal nenhum.
— Deus me ajude, quando faz mal Joana?
— Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou
contente nem triste.
A mulher olhou-a desamparada:
— Minha filha, você é quase uma mocinha, pouco falta
para ser gente... Daqui a dias terá que abaixar o vestido... Eu
lhe imploro: prometa que não faz mais isso, prometa, prometa
em nome do pai.
Joana olhou-a com curiosidade:
— Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que... —
Eram inúteis as explicações. — Sim prometo. Em nome de
meu pai.
Mais tarde, passando pelo quarto da tia, Joana ouviu-a,
a voz baixa e entrecortada de respirações. Joana colou o
ouvido à porta, naquele lugar onde até já se via a marca de
sua cabeça.
— Como um pequeno demônio... Eu, com minha idade
e minha experiência, depois de ter criado uma filha já casada,
fico fria ao lado de Joana... Eu nunca tive esse trabalho com
nossa Armanda, que Deus a conserve para o seu marido. Não
posso cuidar mais da menina, Alberto, juro... Eu posso tudo,
me disse ela depois de roubar... Imagine... fiquei branca.
Contei a padre Felício, pedi conselho... Ele tremeu comigo...
Ah, impossível continuar! Mesmo aqui em casa, ela é sempre
calada, como se não precisasse de ninguém... E quando olha
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é bem nos olhos, pisando a gente...
— Sim, disse o tio devagar, o regime severo de um
internato poderia amansá-la. Padre Felício tem razão Acho
que se meu irmão fosse vivo não hesitaria em matricular
Joana num internato, depois de vê-la roubar... Logo esse
pecado, um dos que mais ofendem a Deus... No fundo é isso o
que me dói um pouco: o pai, negligente como era, não se
incomodaria de mandar Joana até mesmo para um
reformatório... Tenho pena de Joana, coitada. Você sabe, nós
nunca teríamos internado Armanda, mesmo que ela roubasse
a livraria inteira.
— É diferente! É diferente! — explodiu a tia vitoriosa.
Armanda, até roubando, é gente! E essa menina... Não se tem
de quem ter pena nesse caso, Alberto! Eu é que sou a
vítima... Mesmo quando Joana não está em casa, fico agitada.
Parece loucura, mas é como se ela estivesse me vigiando...
sabendo o que eu penso... Às vezes estou rindo e paro no
meio, gelada. Daqui a pouco, na minha própria casa, no meu
lar, onde criei minha filha, terei que pedir desculpas não-seide-
quê a essa guria... É uma víbora. É uma víbora fria,
Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil gostar dela,
inútil fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de
matar uma pessoa...
— Não diga isso! — exclamou o tio assustado. Se o pai
de Joana tivesse sido outro, se levantaria agora do túmulo!
— Me perdoe, fico tonta, é ela ainda quem me faz dizer
essas heresias... É um bicho estranho, Alberto, sem amigos e
sem Deus — que me perdoe!
As mãos de Joana se mexeram independentes da sua
vontade. Observou-as vagamente curiosa e esqueceu-as logo
depois. O teto era branco, o teto era branco. Até seus ombros,
que ela sempre considerara tão distantes de si mesma,
palpitavam vivos, trêmulos. Quem era ela? A víbora. Sim,
sim, para onde fugir? Não se sentia fraca, mas pelo contrário
possuída de um ardor pouco comum, misturado a certa
alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de
repente e surpreendeu-se. Estou sofrendo, dizia-lhe uma
35
consciência a parte. E subitamente esse outro ser agigantouse
e tomou o lugar do que sofria. Nada acontecia se ela
continuava a esperar o que ia acontecer... Podiam-se parar os
acontecimentos e bater vazia como os segundos do relógio.
Permaneceu oca por uns instantes, vigiando-se atenta,
perscrutando a volta da dor. Não não a queria! E como para
deter-se, cheia de fogo, esbofeteou o próprio rosto.
Fugiu mais uma vez para o professor, que não sabia
ainda que ela era uma víbora...
O professor admitia-a de novo, milagrosamente. E
milagrosamente ele penetrava no mundo penumbroso de
Joana e lá se movia de leve, delicadamente.
— Não é valer mais para os outros, em relação ao
humano ideal. É valer mais dentro de si mesmo.
Compreende, Joana?
— Sim, sim...
Ele falava a tarde toda:
— Afinal nessa busca de prazer está resumida a vida animal.
A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do
prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos
intervalos, É um pouco simplista o que estou falando, mas
não importa por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca
de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor.
Todo o desespero e as buscas de outros caminhos são a
insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer. Compreende?
— Sim.
— Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em
qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para
o prazer, uma capacidade perigosa — daí um temor maior
ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar
sobre todos.
— Sim...
— Eu disse: quem se recusa... Porque há os... os
planos, os feitos de terra que sem adubo nunca florescerá.
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— Eu?
— Você? Não, por Deus... Você é dos que matariam para
florescer.
Ela continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios
jamais tivessem existido, como se o professor e ela mesma
estivessem isolados dentro da tarde, dentro da compreensão.
— Não, realmente não sei que conselhos eu lhe daria,
dizia o professor. Diga antes de tudo: o que é bom e o que é
mau?
— Não sei...
— "Não sei" não é resposta. Aprenda a encontrar tudo o
que existe dentro de você.
— Bom é viver..., balbuciou ela. Mau é
— Ê?...
— Mau é não viver...
— Morrer? — indagou ele.
— Não, não... — gemeu ela.
— O quê, então? Diga.
— Mau é não viver, só isso. Morrer já é outra coisa.
Morrer é diferente do bom e do mau.
— Sim, disse ele sem entender. Bem. Agora diga, por
exemplo: qual é o maior homem da atualidade, para você?
Ela pensava, pensava e não respondia.
— Qual é a coisa de que você mais gosta? — tornou ele.
O rosto de Joana se abriu, ela preparou-se para falar e
de repente descobriu que não sabia o que dizer.
— Não sei, não sei, desesperou-se.
— Mas como? Por que então você estava quase rindo de
prazer? — surpreendeu-se o professor.
— Não sei... Ele olhou-a severo:
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— Que você não saiba qual o maior homem da
atualidade, apesar de conhecer muitos deles, está bem. Mas
que você não saiba o que você mesma sente é que me
desagrada.
Olhou-o aflita:
— Olhe, a coisa de que eu mais gosto no mundo... eu
sinto aqui dentro, assim se abrindo... Quase, quase posso
dizer o que é mas não posso...
— Tente explicar, disse ele de sobrancelhas franzidas.
— É como uma coisa que vai ser... É como ...
— É como?... — inclinou-se ele, exigindo sério.
— É como uma vontade de respirar muito, mas também
o medo... Não sei... Não sei, quase dói. É tudo... É tudo.
— Tudo?... — estranhou o professor.
Ela assentiu com a cabeça, emocionada, misteriosa,
intensa: tudo... Ele continuou a olhá-la um instante, o seu
rostinho angustiado e poderoso:
— Bem.
Ele parecia satisfeito mas ela não entendia por que, uma
vez que nada chegara a dizer a respeito "daquilo". Porém se
ele dizia "está bem", pensou ela ardentemente com a alma
entregue, se ele dizia "está bem", era verdade.
— Qual a pessoa que você mais admira? além de mim,
além de mim, acrescentou o professor. Se você não me
ajudar, não chegarei a conhecê-la, não poderei guiá-la.
— Não sei, disse Joana, torcendo as mãos embaixo da
mesa.
— Por que você não citou um desses grandes homens
que rolam por aí? Você conhece pelo menos uma dezena
deles. Você é excessivamente sincera, excessivamente, disse
ele com desagrado.
— Não sei...
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— Bem, não importa, serenou ele. Nunca sofra por não
ter opiniões em relação a vários assuntos. Nunca sofra por
não ser uma coisa ou por sê-la. De qualquer jeito suponho
que você só aceitaria esse conselho. E acostume-se: o que
você sentiu — sobre o que mais gosta no mundo — talvez
tenha sido apenas à custa de não ter opinião precisa sobre os
grandes homens. Você terá que dar muita coisa para ter
outras. — Pausa. — Aborrece-se com isso?
Joana pensou um instante, a cabeça escura inclinada,
os olhos abertos e largos.
— Mas tendo a coisa mais alta, disse ela devagar, a
gente por assim dizer já não tem as que estão abaixo?
O professor balançou a cabeça.
— Não, disse ele, não. Nem sempre. Às vezes possui-se
o mais alto e no fim da vida tem-se a impressão. .. — olhou-a
de lado — tem-se a impressão de que se está morrendo
virgem. É que as coisas não são talvez mais altas e mais
baixas. De qualidade diferente, entende?
Sim, que estava compreendendo as palavras, tudo o que
elas continham. Mas apesar de tudo a sensação de que elas
possuíam uma porta falsa, disfarçada, por onde se ia
encontrar seu verdadeiro sentido.
— Que elas são mais do que o senhor disse — terminou
Joana a explicação.
Num súbito movimento, antes de se interpretar, o
professor estendeu-lhe a mão por cima da mesa. Joana
estremeceu de prazer, deu-lhe a sua, enrubescida.
— O que foi? — disse ela baixinho. E amava aquele
homem como se ela mesma fosse uma erva frágil e o vento a
dobrasse, a fustigasse.
Ele não respondeu, mas seus olhos eram fortes e tinham
pena. O quê? — subitamente ela se assustou:
— O que vai acontecer comigo?
— Não sei — respondeu ele depois de um curto silêncio —
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talvez você seja feliz alguma vez, não compreendo, de uma
felicidade que poucas pessoas invejarão. Nem sei se se
poderia chamar de felicidade. Talvez você não encontre mais
ninguém que sinta com você, como...
A esposa do professor entrou no aposento, alta, quase
bonita com aquele cabelo cobreado, curto e liso. E sobretudo
as coxas altas e serenas movendo-se cegamente, mas cheias
de uma segurança que assustava. O que iria o professor
dizer, pensou Joana, antes que "ela" entrasse? "Mais ninguém
que sinta com você, como... como eu"? Ah aquela mulher.
Olhou-a fugitivamente, abaixou os olhos cheia de raiva. Lá
estava o professor de novo distante, a mão recolhida, os
lábios puxados para baixo, indiferente como se Joana não
fosse senão sua "amiguinha", como dizia a mulher.
Esta se aproximara, pousara a mão branca e longa,
como de cera, mas estranhamente atraente, sobre o ombro do
marido. E Joana viu, cheia de uma dor que lhe dificultava
engolir a saliva, o belo contraste entre os dois seres. Os
cabelos dele ainda negros, seu corpo enorme como o de um
animal maior que o homem.
— Quer o jantar agora? — perguntou a esposa.
Ele brincava com o lápis entre os dedos:
— Sim, vou sair mais cedo.
A mulher sorriu para Joana e retirou-se lentamente.
Ainda insegura, ela pensou que de novo a passagem daquela
criatura deixava claro que o professor era um homem e que
Joana nem sequer já era "moça". Também ele notaria, meu
Deus, pelo menos também ele notaria quanto aquela mulher
branca era odiosa, quanto ela sabia destruir qualquer
conversa anterior?
— O senhor vai dar aula hoje à noite? — perguntou
hesitante apenas para continuarem a falar. E ficou vermelha
quando pronunciou as palavras, tão brancas, ditas tão sem
direito... Não no tom com que a mulher dissera, bela e
tranqüila: vai jantar mais cedo?
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— Sim, vou dar — respondeu ele e remexia os papéis
sobre a mesa.
Joana se levantou para ir embora e de repente, antes
mesmo que pudesse perceber seu próprio gesto, sentou-se de
novo. Debruçou-se sobre a mesa e começou a chorar
escondendo os olhos. Ao redor era o silêncio e ela podia ouvir
os passos abafados e vagarosos de alguém no interior da
casa. Passou-se um longo minuto até sentir sobre a cabeça
um peso leve, macio, a mão. A mão dele. Ouviu o som oco do
coração, deixou de respirar. Concentrou-se inteira sobre os
próprios cabelos que viviam agora acima de tudo, enormes,
nervosos, grossos sob aqueles dedos estranhos e animados.
Outra mão levantou-lhe o queixo e ela deixou-se examinar
submissa e trêmula.
— Que foi? — perguntou ele sorrindo. — Nossa
conversa?
Ela não podia falar, balançou a cabeça negando.
— O quê, então? — insistiu ele com voz firme.
— É que sou feia — respondeu obediente, a voz presa
na garganta.
Ele se assustou. Abriu mais os olhos, penetrou-a com
surpresa.
— Ora — procurou ele rir depois de um instante —,
afinal eu quase tinha esquecido de que falava com uma
menininha... Quem disse que você é feia? — riu de novo. —
Levante-se.
Ela ergueu-se, o coração comprimido, tendo consciência
de que seus joelhos como sempre estavam acinzentados e
opacos.
— Um pouco sem forma ainda, convenho, mas tudo
isso vai melhorar, não se perturbe, disse ele.
Ela fitou-o de dentro das últimas lágrimas. Como
explicar-lhe? Não queria consolo, ele não entendera... O
professor franziu a testa àquele olhar. O quê? o quê? —
perguntou a si mesmo com desagrado.
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Ela conteve a respiração:
— Eu posso esperar.
Também o professor não respirou por uns segundos.
Perguntou, a voz igual, subitamente fria:
— Esperar o quê?
— Até que eu fique bonita. Bonita como "ela".
A culpa era dele mesmo, foi o seu primeiro pensamento, como
uma bofetada em seu próprio rosto. A culpa era dele por terse
inclinado demais para Joana, por ter procurado, sim,
procurado — não fuja, não fuja —, pensando que seria
impunemente, sua promessa de juventude, aquele talo frágil
e ardente. E antes que pudesse conter seu pensamento — as
mãos crispadas sob a mesa —, ele veio impiedoso: o egoísmo
e a fome grosseira da velhice que se aproximava. Oh, como se
odiava por ter pensado nisso. "Ela", a esposa, era mais
bonita? A "outra" também o era. E a "outra", de hoje à noite,
também. Mas quem tinha aquela imprecisão no corpo, as
pernas nervosas, seios ainda por nascer — o milagre: ainda
por nascer, pensou tonto, a vista escura —, quem era como
água clara e fresca? A fome da velhice que se aproximava.
Encolheu-se aterrorizado, furioso, covarde.
De novo a esposa entrou. Mudara de roupa para a noite,
seu corpo forte e limitado agora atrás de uma fazenda azul. O
marido olhou-a demoradamente, a expressão indefinida, um
pouco estúpida. Ela suportou-lhe o olhar séria, enigmática,
um meio sorriso atrás do rosto. Joana diminuiu, ficou
pequena e escura diante daquela pele brilhante. Sentiu a vergonha
da cena anterior tomá-la e reduzi-la ridiculamente.
— Já vou — disse.
A mulher — ou era engano? — a mulher olhou-a bem
nos olhos, entendendo, entendendo! E em seguida levantou a
cabeça, os olhos claros e calmos na vitória, talvez com um
pouco de simpatia:
— Quando volta Joana? Precisa discutir mais
freqüentemente com o professor...
42
Com o professor, dizia ela brincando com intimidade, e
era branca e lisa. Não miserável e sem saber de nada, não
abandonada, não com os joelhos sujos como Joana, como
Joana! Joana levantou-se e sabia que sua saia era curta, que
sua blusa colava-se ao busto minúsculo e hesitante. Fugir,
correr para a praia, deitar-se de bruços sobre a areia,
esconder o rosto, ouvir o barulho do mar.
Apertou a mão macia da mulher, apertou a dele grande,
maior que a mão de um homem.
— Não quer levar o livro?
Joana voltou-se e viu-o. Viu seu olhar. Ah, brilhou dentro
dela a descoberta, um olhar como um aperto de mão, um
olhar que sabia que ela desejava a praia. Mas por que tão
fraco, tão sem alegria? O que acontecera afinal? Há poucas
horas chamavam-na de víbora, o professor fugia, a mulher
esperando... O que acontecia? Tudo recuava... E de súbito o
ambiente destacou-se na sua consciência com um grito,
avultou com todos os detalhes submergindo as pessoas numa
grande vaga... Seus próprios pés flutuavam. A sala onde já
estivera durante tantas tardes refulgia no crescendo de uma
orquestra, mudamente, numa vingança pela sua distração.
De um momento para outro Joana descobriu a insuspeita
potência daquele aposento quieto. Era estranho, silencioso,
ausente como se nunca tivessem nele pisado, como se fosse
uma reminiscência. As coisas haviam-se guardado até agora e
então aproximavam-se de Joana, cercavam-na, brilhando na
meia escuridão do crepúsculo. Perplexa, viu sobre a
cristaleira faiscante a estátua nua, de linhas docemente
apagadas como num fim de movimento. O silêncio das cadeiras
imóveis e finas comunicou-se ao seu cérebro, esvaziouo
lentamente... Ouviu passos apressados na rua, viu a
mulher grande e séria olhando-a e também aquele homem
forte, de costas curvadas. Que esperavam dela? — assustouse.
Sentiu a capa dura do livro entre os dedos, longe longe
como se um abismo a separasse de suas próprias mãos. O
quê, então? Por que tinha cada criatura alguma coisa a lhe
dizer? Por quê, por quê? E que exigiam, sugando-a sempre? A
vertigem, rápida como um redemoinho, tomou conta de sua
43
cabeça, fez vacilarem suas pernas. Ela estava de pé diante
deles há alguns minutos, calada, sentindo a casa, mas por
que as pessoas não se surpreendiam inteiramente com sua
atitude para elas inexplicável? Ah, tudo era de esperar dela
própria, a víbora, mesmo o que parecia estranho, a víbora, oh
a dor, a alegria doendo. Os dois se destacavam das sombras,
parados à sua frente e apenas no olhar do professor havia um
pouco de surpresa.
— Fiquei tonta, disse-lhes à meia voz e a cristaleira
continuou brilhando como um santo.
Mal falara, ainda com a vista escurecida. Joana sentiu
um movimento quase imperceptível na esposa do professor.
Olharam-se e qualquer coisa maldosa, ávida e humilhada na
mulher fez com que Joana estupefata começasse a
compreender... Era a segunda vertigem naquele dia! Sim, era
a segunda vertigem naquele dia! Como um clarim... Fitou-os
intensamente. Vou embora dessa casa, gritou-se agitada. E
cada vez mais a sala se fechava, de um momento para outro
despertaria a fúria no homem e na mulher! Como a chuva
que rebenta, como a chuva que rebenta...
Na areia seus pés afundavam e emergiam de novo pesados.
Já era noite, o mar rolava escuro, nervoso, as ondas
mordiam-se na praia. O vento aninhara-se nos seus cabelos,
fazia esvoaçar como louca a franja curta. Joana não sentia
mais tontura, agora um braço bruto pesava sobre seu peito,
um peso bom. Alguma coisa virá em breve, pensou depressa.
Era a segunda vertigem num só dia! De manhã, ao saltar da
cama, e agora... Estou cada vez mais viva, soube Vagamente.
Começou a correr. Estava subitamente mais livre, com mais
raiva de tudo, sentiu triunfante. No entanto não era raiva,
mas amor. Amor tão forte que só esgotava sua paixão na
força do ódio. Agora sou uma víbora sozinha. Lembrou-se de
que se separara realmente do professor, que depois daquela
conversa jamais poderia voltar... Sentiu-o longe, no ambiente
que já agora ela recordava com espanto e sem familiaridade.
Sozinha...
O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela
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diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei
moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a
nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e
ouvir: também não sei, como o professor respondera. O
professor ressurgiu à sua frente como no último instante,
inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas
recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava
tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia
existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coisas? E se
chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e
assim. Com quem Joana falaria agora das coisas que existem
com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão
apenas?
Coisas que existem, outras que apenas estão. . .
Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que
viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que
viveria, que viveria, outros pensamentos nasceriam e viveriam
e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração,
feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos,
bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho,
sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum
deles explicaria que tudo mudava lentamente... Que ela
guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e
resolve deitar-se. Agora as criaturas não eram admitidas no
seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas
tornavam-se cada vez mais diferentes das relações que
mantinha consigo mesma. A doçura da infância desaparecia
nos seus últimos traços, alguma fonte estancava para o
exterior e o que ela oferecia aos passos dos estranhos era
areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre
para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto,
levando para trás os cabelos.
Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia?
mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque
ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de
lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos
esqueciam, todos só sabiam brincar. Olhou-os. Sua tia
brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma
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filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma
fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou
analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavamse
de um modo longínquo e velho. De quando em quando,
ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares
inquietos, como para se assegurarem de que continuavam a
existir. Depois retomavam a morna distância que diminuía
por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário.
Dormiam juntos certamente pensou Joana sem prazer na
malícia.
A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não
levantava os olhos do prato.
A comida era uma das grandes preocupações da casa,
continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados
pesadamente sobre a mesa, o homem se alimentava arfando
ligeiramente, porque sofria do coração, e enquanto mastigava,
algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava
vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações
interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob
a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma
curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto
rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se
abandonavam nas cadeiras? Por que cuidavam de não chocar
os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo?
Sou eu, adivinhou Joana.
Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraquecida pelas
franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa
noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das
duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio.
Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na
mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista,
vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que
inexplicavelmente vinha misturada a um aperto doloroso na
garganta, a uma impossibilidade de soluçar.
— Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tictac
do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na
mesa.
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Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou
alto: tinha medo dela, pois?
— O marido de Armanda hoje não está de plantão, por
isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de
repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais
depressa. O silêncio voltou sem dissolver o murmúrio
longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.
— Quando é que eu vou para o internato? — perguntou
Joana.
A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo
escuro e cínico espalhou-se rapidamente pela mesa. O tio
abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.
— Como sabe que..., balbuciou confuso... Ela escutara
à porta...
A toalha embebida fumegava docemente como restos de
um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo
irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava
rapidamente.
A água cega e surda mas alegremente não-muda
brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da
banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos
embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos
mosaicos úmidos das paredes.
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas
delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal
se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da
infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o
terna, lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços
acima da cabeça, para o teto perdido na penumbra, os olhos
fechados, sem nenhum sentimento, só movimento. O corpo se
alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão — é
uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de
novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move o longo
pescoço de um a outro lado, inclina a cabeça para trás — a
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relva é sempre fresca, alguém vai beijá-la, coelhos macios e
pequenos se agasalham uns nos outros de olhos fechados. —
Ri de novo, em leves murmúrios como os da água. Alisa a
cintura, os quadris, sua vida.
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se
fecha sobre ela silenciosamente, quietamente. Pequenas
bolhas deslizam suaves até se apagarem de encontro ao
esmalte. A jovem sente a água pesando sobre o seu corpo,
pára um instante como se lhe tivessem tocado de leve o
ombro. Atenta para o que está sentindo, a invasão da maré.
Que houve? Torna-se uma criatura séria, de pupilas largas e
profundas. Mal respira. O que houve? Os olhos abertos e
mudos das coisas continuam brilhando entre os vapores.
Sobre o mesmo corpo que adivinhou alegria existe água —
água. Não, não... Por quê? Seres nascidos no mundo como a
água. Agita-se, procura fugir. Tudo — diz devagar como
entregando uma coisa, perscrutando-se sem se entender.
Tudo. E essa palavra é paz, grave e incompreensível como um
ritual. A água cobre seu corpo. Mas o que houve? Murmura
baixinho, diz sílabas mornas, fundidas.
O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e
as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água
esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo e
desconforto.
Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não
sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece. Está leve
e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito tempo. O
frio corre com os pés gelados pelas suas costas mas ela não
quer brincar, encolhe o torso ferida, infeliz. Enxuga-se sem
amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupão como em
braços mornos. Fechada dentro de si, não querendo olhar,
ah, não querendo olhar, desliza pelo corredor — a longa
garganta vermelha e escura e discreta por onde afundará no
bojo, no tudo. Tudo, tudo, repete misteriosamente. Cerra as
janelas do quarto — não ver, não ouvir, não sentir. Na cama
silenciosa, flutuante na escuridão, aconchega-se como no
ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo.
48
Atrás dela alinhavam-se as camas do dormitório do
internato. E à frente a janela se abria para a noite.
Descobri em cima da chuva um milagre — pensava Joana —,
um milagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes,
como um aviso parado: como um farol. O que tentam dizer?
Nelas pressinto o segredo, esse brilho é o mistério impassível
que ouço fluir dentro de mim, chorar em notas largas,
desesperadas e românticas. Meu Deus, pelo menos
comunicai-me com elas, fazei realidade meu desejo de beijálas.
De sentir nos lábios a sua luz, senti-la fulgurar dentro do
corpo, deixando-o faiscante e transparente, fresco e úmido
como os minutos que antecedem a madrugada. Por que
surgem em mim essas sedes estranhas? A chuva e as
estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as
portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com
cheiro de abismo onde corre água. E uniu-o à noite. Aqui,
junto à janela, o ar é mais calmo. Estrelas, estrelas, zero. A
palavra estala entre meus dentes em estilhaços frágeis.
Porque não vem a chuva dentro de mim, eu quero ser estrela.
Purificai-me um pouco e terei a massa desses seres que se
guardam atrás da chuva. Nesse momento minha inspiração
dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará
ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade
asfixiante, como um excesso de ar, sentirei nítida a
impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassála,
de possuir a própria coisa — e ser realmente uma estrela.
Aonde leva a loucura, a loucura. No entanto é a verdade. Que
importa que em aparência eu continue nesse momento no
dormitório, as outras moças mortas sobre as camas, o corpo
imóvel? Que importa o que é realmente? Na verdade estou
ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma
se desesperando como só o corpo de uma virgem pode se
desesperar. A cama desaparece aos poucos, as paredes do
aposento se afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo
solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave
como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés
leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo,
de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das
terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas
49
que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando,
deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo
minha sede cansada de pousar num fim. — Onde foi que eu
já vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas
lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e
mudo fincando no espaço... Tudo à espera da meia-noite... —
Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto loucura no
desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque
a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das
estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante,
é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela trêmula
dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu
corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assustome.
Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada
e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das
criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando
me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache
feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois
de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço
meu passado e sou com a mesma libertação de fim e
de. consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me
surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que
haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa
sempre silenciosa. Por que calada? Essas curvas sob a blusa
vivem impunemente? Por que caladas? Minha boca, meio infantil,
tão certa de seu destino, continua igual a si mesma
apesar de minha distração total. Às vezes, à minha
descoberta, segue-se o amor por mim mesma, um olhar
constante ao espelho, um sorriso de compreensão para os
que me fitam. Período de interrogação ao meu corpo, de gula,
de sono, de amplos passeios ao ar livre. Até que uma frase,
um olhar — como o espelho — relembram-me surpresa
outros segredos, os que me tornam ilimitada. Fascinada
mergulho o corpo no fundo do poço, calo todas as suas fontes
e sonâmbula sigo por outro caminho. — Analisar instante por
instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de
espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles,
como pequenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes. É
a vida? Mesmo assim ela me escaparia. Outro modo de captá50
la seria viver. Mas o sonho é mais completo que a realidade,
esta me afoga na inconsciência. O que importa afinal: viver
ou saber que se está vivendo? — Palavras muito puras, gotas
de cristal. Sinto a forma brilhante e úmida debatendo-se dentro
de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que
devo dizer? Inspirai-me, eu tenho quase tudo; eu tenho o
contorno à espera da essência; é isso? — O que deve fazer
alguém que não sabe o que fazer de si? Utilizar-se como corpo
e alma em proveito do corpo e da alma? Ou transformar sua
força cm força alheia? Ou esperar que de si mesma nasça,
como uma conseqüência, a solução? Nada posso dizer ainda
dentro da forma. Tudo o que possuo está muito fundo dentro
de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que
viver? Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da
vida? — Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento
isolar-me para encontrar a vida em si mesma. No entanto
apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele
me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo. No
momento em que fecho a porta atrás de mim,
instantaneamente me desprendo das coisas. Tudo o que foi
distancia-se de mim, mergulhando surdamente nas minhas
águas longínquas. Ouço-a, a queda. Alegre e plana espero por
mim mesma, espero que lentamente me eleve e surja
verdadeira diante de meus olhos. Em vez de me obter com a
fuga, vejo-me desamparada, solitária, jogada num cubículo
sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas
quietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas
dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser
humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em
certeza de solidão física. Se desse um grito — imagino já sem
lucidez — minha voz receberia o eco igual e indiferente das
paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida,
pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e limitada onde
caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa,
presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis.
Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No
entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis,
sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem
nome. — Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que
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terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda.
Procurar tranqüilamente admitir que talvez só a encontre se
for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede.
Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas
para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de
outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem
caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma idéia — e
nada mais. Porém — os raros instantes que às vezes consigo
de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão
serena como o canto de um órgão — esses instantes não
provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é
sede de todo o meu ser e não apenas uma idéia? Além do
mais, a idéia é a verdade! grito-me. São raros os instantes.
Quando ontem, na aula, repentinamente pensei, quase sem
antecedentes, quase sem ligação com as coisas: o movimento
explica a forma. A clara noção do perfeito, a liberdade súbita
que senti... Naquele dia, na fazenda de titio, quando caí no
rio.
Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levantei,
foi como se tivesse nascido da água. Saí molhada, a roupa
colada à pele, os cabelos brilhantes, soltos. Qualquer coisa
agitava-se em mim e era certamente meu corpo apenas. Mas
num doce milagre tudo se torna transparente e isso era
certamente minha alma também. Nesse instante eu estava
verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu
silêncio, compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E
eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra
esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que
a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a
mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a
passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e
pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda
escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma
continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes
e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as
campinas mornas do último sol e a brisa leve voava devagar.
É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou
sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre
esqueci.
52
Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e
vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E,
subitamente, antes que pudesse compreender o que se
passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou
em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem
música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as
altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas
sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me,
entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de
estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava
pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do
cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar,
aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade
com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando
baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que
restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão
perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não
caí na idéia de Deus. Quero morrer agora, gritava alguma
coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer
instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio.
Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem
a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor,
movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e
pálida.


A MULHER DA VOZ E JOANA


JOANA NÃO A OLHOU mais atentamente senão quando
ouviu sua voz. O tom baixo e curvo, sem vibrações,
despertou-a. Fitou a mulher com curiosidade. Deveria ter
vivido alguma coisa que Joana ainda não conhecera. Não
compreendia aquela entonação, tão longe da vida, tão longe
dos dias...
Joana lembrou-se de como uma vez, poucos meses depois de
casada, dirigira-se ao marido perguntando-lhe qualquer
coisa. Estavam na rua. E antes mesmo de terminar a frase,
com surpresa de Otávio, ela parara — a testa franzida, o
olhar divertido. Ah — descobrira — então ela repetia uma
53
daquelas vozes que ouvira em solteira tantas vezes, sempre
vagamente perplexa. A voz de uma mulher jovem junto de seu
homem. Como a dela própria que soara naquele instante para
Otávio: aguda, vazia, lançada para o alto, com notas iguais e
claras. Algo inacabado, extático, um pouco saciado. Tentando
gritar... Claros dias, límpidos e secos, voz e dias assexuados,
meninos de coro em missa campal. E alguma coisa perdida,
encaminhando-se para um brando desespero... Aquele timbre
de recém-casada tinha uma história, uma história frágil que
passava despercebida da dona da voz, mas não desta.
Desde aquele dia, Joana sentia as vozes, compreendiaas
ou não as compreendia. Provavelmente no fim da vida, a
cada timbre ouvido uma onda de lembranças próprias subiria
até sua memória, ela diria: quantas vozes eu tive...
Inclinou-se para a mulher. Chegara até ela à procura de
uma casa onde morar e agradecia-se ter ido sem o marido
porque, sozinha, estava mais livre para observar. E ali, sim,
ali estava qualquer coisa que ela não esperara, uma pausa.
Mas a outra nem a olhava sequer. Pensando pela cabeça de
Otávio, Joana adivinhou que ele consideraria a mulher apenas
vulgar, com aquele nariz grande, pálido e calmo. A
criatura explicava as conveniências e inconveniências da casa
a alugar, e ao mesmo tempo passeava os olhos pelo chão,
pela janela, pela paisagem, sem impaciência, sem interesse. O
corpo limpo, os cabelos escuros. Grande, forte. E a voz, voz de
terra. Sem chocar-se com nenhum objeto, macia e longínqua
como se tivesse percorrido longos caminhos sob o solo até
chegar à sua garganta.
— Casada? — perguntou Joana, debruçada sobre ela.
— Viúva, com um filho. — E continuou a destilar seu
canto sobre os aluguéis da zona.
— Não, creio que a casa não interessa, é grande demais
para um casal, disse Joana apressada, um pouco áspera.
Mas — adoçou as palavras, escondeu a avidez — posso visitála
uma vez ou outra para conversarmos?
A outra não se surpreendeu. Alisou com uma das mãos
54
a cintura engrossada pela maternidade e pela lentidão de
movimentos:
— Acho que vai ser difícil... Vou visitar amanhã meu
filho. É casado. Vou viajar...
Sorria sem alegria, sem emoção. Apenas: vou viajar. O
que interessava àquela mulher? — indagava-se Joana. Teria
um amante. ..
— Vive só, a senhora? — perguntou-lhe.
— Minha irmã mais moça foi ser irmã de caridade.
Moro com a outra.
— Não é triste viver sem um homem na casa? —
prosseguiu Joana.
— Acha? — retrucou a mulher.
— Estou perguntando se a senhora acha e não eu. Sou
casada, ajuntou Joana, tentando dar um ar íntimo à
conversa.
— Ah, eu não acho triste não. — E sorria sem cor. —
Bem, vou lhe pedir licença para me despedir, já que não lhe
interessa a casa. Preciso lavar umas peças de roupa antes de
tomar minha fresca na janela.
Joana prosseguiu seu caminho humilhada. Débil mental, sem
dúvida... Mas a voz? Não pôde libertar-se dela durante todo o
resto da tarde. Sua imaginação corria em busca do sorriso da
mulher, de seu corpo largo e quieto. Ela não tinha história,
descobriu Joana devagar. Porque se lhe aconteciam coisas,
estas não eram ela e não se misturavam à sua verdadeira
existência. O principal — incluindo o passado, o presente e o
futuro — é que estava viva. Esse o fundo da narrativa. Às
vezes esse fundo aparecia apagado, de olhos cerrados, quase
inexistente. Mas bastava uma pequena pausa, um pouco de
silêncio, para ele agigantar-se e surgir em primeiro plano, os
olhos abertos, o murmúrio leve e constante como o de água
entre pedras. Por que descrever mais do que isso? É certo que
lhe aconteciam coisas vindas de fora. Perdeu ilusões, sofreu
alguma pneumonia. Aconteciam-lhe coisas. Mas apenas
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vinham adensar ou enfraquecer o murmúrio do seu centro.
Por que contar fatos e detalhes se nenhum a dominava
afinal? E se ela era apenas a vida que corria em seu corpo
sem cessar?
Nunca suas interrogações foram inquietas à procura de
resposta — continuou Joana descobrindo. Nasciam mortas,
sorridentes, amontoavam-se sem desejo nem esperanças. Ela
não tentava qualquer movimento para fora de si.
Muitos anos de sua existência gastou-os à janela,
olhando as coisas que passavam e as paradas. Mas na
verdade não enxergava tanto quanto ouvia dentro de si a
vida. Fascinara-a o seu ruído — como o da respiração de uma
criança tenra —, o seu brilho doce — como o de uma planta
recém-nascida. Ainda não se cansara de existir e bastava-se
tanto que às vezes, de grande felicidade, sentia a tristeza
cobri-la como a sombra de um manto, deixando-a fresca e
silenciosa como um entardecer. Ela nada esperava. Ela era
em si, o próprio fim.
Uma vez dividiu-se, inquietou-se, passou a sair e a
procurar-se. Foi a lugares onde se encontravam homens e
mulheres. Todos disseram: felizmente despertou, a vida é
curta, precisa-se aproveitar, antes ela era apagada, agora é
que é gente. Ninguém sabia que ela estava sendo infeliz a
ponto de precisar buscar a vida. Foi então que escolheu um
homem, amou-o e o amor veio adensar-lhe o sangue e o
mistério. Deu à luz um filho, o marido morreu depois de
fecundá-la. Ela continuou e desenvolvia-se muito bem.
Juntou todos os seus pedaços e não procurou mais as
pessoas. Reencontrou a janela onde se instalava em
companhia de si mesma. E agora, mais do que sempre,
nunca se vira uma coisa ou uma criatura mais feliz e mais
completa. Apesar de que muitos a olhavam com
complacência, achando-a fraca. Pois seu espírito era tão forte
que nunca ela deixara de almoçar ou jantar muito bem, sem
excesso de prazer aliás. Nada do que diziam lhe importava,
assim como os acontecimentos, e tudo deslizava sobre ela e ia
perder-se em águas outras que não as interiores.
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Um dia, depois de viver sem tédio muitos iguais, viu-se
diferente de si mesma. Estava cansada. Andou de um lado
para outro. Ela própria não sabia o que queria. Pôs-se a
cantar baixinho, com a boca fechada. Depois cansou-se e
passou a pensar em coisas. Mas não o conseguia inteiramente.
Dentro de si algo tentava parar. Ficou esperando e
nada vinha dela para ela. Vagarosamente entristeceu de uma
tristeza insuficiente e por isso duplamente triste. Continuou a
andar por vários dias e seus passos soavam como o cair de
folhas mortas no chão. Ela mesma estava interiormente
forrada de cinzento e nada enxergava em si senão um reflexo,
como gotas esbranquiçadas a escorrerem, um reflexo de seu
ritmo antigo, agora lento e grosso. Então soube que estava
esgotada e pela primeira vez sofreu porque realmente
dividira-se em duas, uma parte diante da outra, vigiando-a,
desejando coisas que esta não podia mais dar. Na verdade ela
sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que
era mesmo, profundamente. Apenas até então as duas
trabalhavam em conjunto e se confundiam. Agora a que sabia
que era trabalhava sozinha, o que significava que aquela
mulher estava sendo infeliz e inteligente. Tentou num último
esforço inventar alguma coisa, um pensamento, que a
distraísse. Inútil. Ela só sabia viver.
Até que a ausência de si mesma acabou por fazê-la cair
dentro da noite e pacificada, escurecida e fresca, começou a
morrer. Depois morreu docemente, como se fosse um
fantasma. Não se sabe de mais nada porque ela morreu.
Adivinha-se apenas que no fim ela também estava sendo feliz
como uma coisa ou uma criatura podem ser. Porque ela nascera
para o essencial, para viver ou morrer. E o intermediário
era-lhe o sofrimento. Sua existência foi tão completa e tão
ligada à verdade que provavelmente na hora de entregar-se e
findar, teria pensado, se tivesse o hábito de pensar: eu nunca
fui. Também não se sabe o que se fez dela. A uma vida tão
bela deve ter-se seguido uma morte bela também. Certamente
hoje é grãos de terra. Olha para cima, para o céu, durante
todo o tempo. Às vezes chove, ela fica cheia e redonda nos
seus grãos. Depois vai secando com o estio e qualquer vento a
dispersa. Ela é eterna agora.
57
Depois de um instante de absorção, Joana percebeu que
a invejara, aquele ser meio morto que lhe sorria e falara num
tom de voz desconhecido. Sobretudo, pensou ainda,
compreende a vida porque não é suficientemente inteligente
para não compreendê-la. Mas de que valia qualquer raciocínio...
Se se subisse ao ponto de entendê-la, sem enlouquecer
no entanto, não se poderia conservar o conhecimento como
conhecimento mas transformá-lo-iam em atitude, em atitude
de vida, único modo de possuí-lo e exprimi-lo integralmente.
E essa atitude não seria muito diversa daquela na qual
repousava a mulher da voz. Eram tão pobres os caminhos da
ação.
Teve um rápido movimento com a cabeça, impaciente .
Pegou num lápis, num papel, rabiscou em letra
intencionalmente firme: "A personalidade que ignora a si
mesma realiza-se mais completamente". Verdade ou mentira?
Mas de certo modo vingara-se jogando sobre aquela mulher
intumescida de vida seu pensamento frio e inteligente.


OTÁVIO



"DE PROFUNDIS". Joana esperou que a idéia se tornasse
mais clara, que subisse das névoas aquela bola brilhante e
leve que era o germe de um pensamento. "De profundis".
Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para
sempre em águas desconhecidas. Ou senão, a momentos,
afastar as nuvens e crescer trêmulo, quase emergir completamente
... Depois o silêncio.
Fechou os olhos, vagarosamente foi descansando.
Quando os abriu recebeu um pequeno choque. E durante
longos e profundos segundos soube que aquele trecho de vida
era uma mistura do que já vivera com o que ainda viveria,
tudo fundido e eterno. Estranho, estranho. A luz alaranjada
das 9 horas, aquela impressão de intervalo, um piano
longínquo insistindo nas notas agudas, seu coração batendo
apressado de encontro ao calor da manhã e, atrás de tudo,
feroz, ameaçador, o silêncio latejando grosso e impalpável.
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Tudo desvaneceu-se. O piano interrompeu a insistência nas
últimas notas e após um instante de repouso retomou
docemente alguns sons do meio, em melodia nítida e fácil. E
em breve ela não saberia dizer se a impressão da manhã fora
verdadeira ou se apenas uma idéia. Deteve-se atenta para
reconhecê-la... Um súbito cansaço confundiu-a um instante.
Os nervos abandonados, o rosto relaxado, sentiu uma leve
onda de ternura por si mesma, de quase agradecimento, embora
não soubesse por quê. Por um minuto pareceu-lhe que
já vivera e que estava no fim. E logo em seguida, que tudo
fora branco até agora, como um espaço vazio, e que ouvia
longínqua e surdamente o fragor da vida se aproximando,
densa, caudalosa e violenta, as ondas altas rasgando o céu,
aproximando-se, aproximando-se... para submergi-la, para
submergi-la, afogá-la asfixiando-a...
Caminhou para a janela, estendeu os braços para fora e
esperou inutilmente que um pouco de brisa viesse alisá-los.
Ficou assim esquecida por longo tempo. Conservava os
ouvidos entrefechados por uma contração dos músculos do
rosto, os olhos cerrados mal deixando passar a luz, a cabeça
projetada para frente. Aos poucos conseguiu realmente isolarse.
Esse estado meio inconsciente, onde parecia-lhe
mergulhar profundamente em ar morno, cinzento . .. Pôs-se
diante do espelho e entre dentes, os olhos ardendo de ódio:
— E agora?
Não pôde deixar de notar seu próprio rosto, pequeno e
aceso. Com ele distraiu-se um instante, esquecendo a raiva.
Justamente sempre acontecia uma pequena coisa que a
desviava da torrente principal . Era tão vulnerável. Odiava-se
por isso? Não, odiar-se-ia mais se já fosse um tronco imutável
até a morte, apenas capaz de dar frutos mas não de crescer
dentro de si mesma. Desejava ainda mais:
renascer sempre, cortar tudo o que aprendera, o que vira, e
inaugurar-se num terreno novo onde todo pequeno ato
tivesse um significado, onde o ar fosse respirado como da
primeira vez. Tinha a sensação de que a vida corria espessa e
vagarosa dentro dela, borbulhando como um quente lençol de
59
lavas. Talvez se amasse... E se pensou longinquamente, de
súbito um clarim cortasse com seu som agudo aquela manta
da noite e deixasse a campina livre, verde e extensa... E então
cavalos brancos e nervosos com movimentos rebeldes de
pescoço e pernas, quase voando, atravessassem rios,
montanhas, vales... Neles pensando, sentia o ar fresco
circular dentro de si próprio como saído de alguma gruta
oculta, úmida e fresca no meio do deserto.
Mas em breve voltou a si mesma, numa queda vertical.
Examinou os braços, as pernas. Lá estava ela. Lá estava ela.
Mas era preciso se distrair, pensou com dureza e ironia. Com
urgência. Pois não morreria? Riu alto e olhou-se rapidamente
ao espelho para observar o efeito do riso no rosto. Não, não o
aclarava. Parecia uma gata selvagem, os olhos ardendo acima
das faces incendiadas, pontilhadas de sardas escuras de sol,
os cabelos castanhos despenteados sobre as sobrancelhas.
Enxergava em si púrpura sombria e triunfante. O que fazia
com que brilhasse tanto? O tédio... Sim, apesar de tudo havia
fogo sob ele, havia fogo mesmo quando representava a morte.
Talvez isso fosse o gosto de viver.
De novo a inquietação tomou-a, pura, sem raciocínios.
Ah, talvez eu deva andar, talvez... Fechou os olhos um
instante, permitindo-se o nascimento de um gesto ou de uma
frase sem lógica. Fazia sempre isso, confiava em que no
fundo, embaixo das lavas, houvesse um desejo já dirigido
para um fim. Às vezes, quando por um mecanismo especial,
do mesmo modo como se desliza para o sono, fechava as
portas da consciência e se deixava agir ou falar, recebia
surpreendida — porque a percepção do gesto vinha-lhe
apenas no momento de sua execução — uma bofetada de
suas próprias mãos em seu próprio rosto. Às vezes ouvia
palavras estranhas e loucas de sua própria boca. Mesmo sem
entendê-las, elas deixavam-na mais leve, mais liberta.
Repetiu a experiência, os olhos cerrados.
E de lá do fundo de si mesma, após um momento de
silêncio e abandono, subiu, a princípio pálido e vacilante,
depois cada vez mais forte e doloroso: das profundezas chamo
por vós... das profundezas chamo por vós... das profundezas
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chamo por vós... Permaneceu ainda uns instantes parada, o
rosto sem expressão, lasso e cansado como se ela tivesse tido
um filho. Aos poucos foi renascendo, abriu os olhos
vagarosamente e voltou à luz do dia. Frágil, respirando de
leve, feliz como uma convalescente que recebesse a primeira
brisa.
Então começou a pensar que na verdade rezara. Ela não.
Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha
consciência, rezara. Mas não queria orar, repetiu-se mais
uma vez fracamente. Não queria porque sabia que esse seria
o remédio. Mas um remédio como a morfina que adormece
qualquer espécie de dor. Como a morfina de que se precisa
cada vez mais de maiores doses para senti-la. Não, ainda não
estava tão esgotada que desejasse covardemente rezar em vez
de descobrir a dor, de sofrê-la, de possuí-la integralmente
para conhecer todos os seus mistérios. E mesmo se rezasse...
Terminaria num convento, porque para sua fome quase toda
a morfina seria pouca. E isto seria a degradação final, o vício.
No entanto, por um caminho natural, se não buscasse um
deus exterior terminaria por endeusar-se, por explorar sua
própria dor, amando seu passado, buscando refúgio e calor
em seus próprios pensamentos, então já nascidos com uma
vontade de obra de arte e depois servindo de alimento velho
nos períodos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento
e organizar-se dentro dele, o que seria um vício
também e um calmante.
O que fazer então? O que fazer para interromper aquele
caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma,
para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e
pura?
O que fazer?
O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e
uniformes. Exercícios, pensou. Exercícios... Sim, descobriu
divertida... Por que não? Por que não tentar amar? Por que
não tentar viver?
61
Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens,
sonhava Otávio. Movimentos ainda sem adjetivos.
Inconscientes como a vida primitiva que pulsa nas árvores
cegas e surdas, nos pequenos insetos que nascem, voam,
morrem e renascem sem testemunhas. Enquanto a música
volteia e se desenvolve, vivem a madrugada, o dia forte, a
noite, com uma nota constante na sinfonia, a da
transformação. É a música sem apoio em coisas, em espaço
ou tempo, da mesma cor que a vida e a morte. Vida e morte
em idéias, isoladas do prazer e da dor. Tão distantes das
qualidades humanas que poderiam se confundir com o
silêncio. O silêncio. O silêncio, porque essa música seria a
necessária, a única possível, projeção vibrante da matéria. E
do mesmo modo por que não se entende a matéria e não se a
percebe até que os sentidos com ela se choquem, não se
ouviria sua música.
E depois? — pensou. Fechar os olhos e ouvir a minha
própria que se escoa vagarosa e turva como um rio barrento.
A covardia é morna e eu a ela me resigno, depondo todas as
armas de herói que vinte e sete anos de pensamento me
concederam. O que sou hoje, nesse momento? Uma folha
plana, muda, caída sobre a terra. Nenhum movimento de ar
balançando-a. Mal respirando para não se acordar. Mas por
que, sobretudo por que não usar as palavras próprias e
enovelar-me, aconchegar-me em imagens? Por que me
chamar de folha morta quando sou apenas um homem de
braços cruzados?
Novamente, no meio do raciocínio inútil, veio-lhe um
cansaço, um sentimento de queda. Orar, orar. Ajoelhar-se
diante de Deus e pedir. O quê? A absolvição. Uma palavra tão
larga, tão cheia de sentidos. Não era culpado — ou era? de
quê? sabia que sim, porém continuou com o pensamento —
não era culpado, mas como gostaria de receber a absolvição.
Sobre a testa os dedos largos e gordos de Deus, abençoando-o
como um bom pai, um pai feito de terra e de mundo,
contendo tudo, tudo, sem deixar de possuir uma partícula
sequer que mais tarde pudesse lhe dizer: sim, mas eu não lhe
perdoei! Cessaria então aquela acusação muda que todas as
62
coisas aconchegavam contra ele.
O que pensava afinal? Há quanto tempo brincava
consigo mesmo imóvel? Teve um gesto qualquer.
Prima Isabel entrou. "Bendito, bendito, bendito", dizia
seu olhar apressado e míope, ansioso por se retirar. Só
abandonava aquele ar de estrangeira quando se sentava ao
piano. Otávio encolheu-se como em pequeno. Ela então
sorria, era humana, chegava a perder o ar perfurador.
Adquiria uma qualidade plana, mais fácil. Sentada ao piano,
os lábios enfarinhados e velhos, tocava Chopin, Chopin,
sobretudo todas as valsas.
— Os dedos ficaram duros, dizia orgulhosa de tocar de
cor. Falando, movia a cabeça para trás num jeito subitamente
coquete, de dançarina de café. Otávio corava. Prostituta,
pensava, e apagava imediatamente a palavra com um
movimento doloroso. Mas como ousava? Lembrava-se de seu
rosto inclinado atentamente sobre ele, cuidando de suas
dores de estômago. Detesto-a por isso mesmo, pensava sem
lógica. E era sempre tarde: o pensamento antecedia-o.
Prostituta — como se batesse em si mesmo com um chicote.
No entanto, mesmo quando se arrependia, voltava a pecar.
Quantas vezes, em criança, um instante antes de adormecer,
subitamente tinha consciência de que tia Isabel estava na
cama, insone, talvez sentada, os cabelos grisalhos em trança,
a camisola de pano grosso fechada como a de uma virgem.
Sentia o remorso como um ácido espalhar-se pelo interior do
corpo. Mas cada vez mais odiava-a por não poder amá-la.
Ela não conseguia dar mais aquela antiga suavidade
entre uma nota e outra, como um desmaio. Um som prendiase
ao outro, áspero, sincopado, e as valsas explodiam fracas,
saltitantes e falhadas. Às vezes as badaladas espaçadas e
ocas do velho relógio vinham dividir a música em compassos
assimétricos. Otávio ficava à espreita da pancada seguinte, o
coração em sobressalto. Como se elas precipitassem todas as
coisas numa dança muda e docemente maluca. Aquelas
batidas cortando implacáveis a música, sempre no mesmo
tom, frio e sorridente, arremessavam-no para dentro de si
63
como num vácuo sem apoio. Espiava as costas duras de sua
tia, suas mãos — dois animais escuros pulando sobre as
teclas amarelas do piano. Ela se voltava e dizia-lhe,
concedendo a frase por pura euforia, levemente, como quem
joga flores:
— Que é que você tem? Vou tocar uma coisa mais
alegre...
Vinha uma daquelas valsas de salão, ingênuas e
nervosas, as quais não se lembrava de ter ouvido mas que se
uniam misteriosamente a velhos trechos em sua memória.
— Isso não, tia, isso não...
Era cômico demais. Ele tinha medo. Pedir perdão por
não se extasiar diante de sua música, pedir perdão por achála
insuportável desde pequeno com aquele seu cheiro de
panos velhos, de jóias guardadas, quando a via preparar o
"seu chazinho contra dores", quando ela lhe prometia tocar
uma coisa muito bonita se ele estudasse bastante. Reviu-a
saindo de casa, o pó branco e leve sobre a pele cinzenta, o
grande decote redondo descobrindo o pescoço onde as veias
arquejavam, trágicas. Os sapatinhos rasos de menina, o
guarda-chuva usado com aterrorizante desenvoltura, como
bengala. Pedir perdão por desejar — não, não! — que ela
enfim morresse. — Estremeceu, começou a suar. Mas eu não
tenho culpa! Oh! ir embora, fazer o plano do livro de direito
civil, afastar-se daquele mundo horrível, repugnantemente
íntimo e humano.
— Então lá vai "Gorjeio da Primavera"... — disse prima
Isabel.
Sim, sim. Eu quero a primavera... Ajudai-me. Eu sufoco.
A primavera ridícula era ainda mais primavera e alegria.
— Essa música parece uma rosa azul, disse ela voltada
a meio em sua direção, sorrindo levemente maliciosa. No
rosto seco e rugoso repentinamente, um veio d'água no
deserto, os dois pequenos brilhantes tremiam de suas orelhas
murchas, duas pequenas gotas úmidas, cintilantes. Ah, eram
excessivamente frescas e voluptuosas... A velha possuía bens.
64
Mas se usava os pendentes era por uma razão que ele nunca
soubera: ela própria comprara as pedras, mandara engastálas
em brincos, carregava-os como dois fantasmas sob os
cabelos grisalhos e arrepiados.
Essa música parece uma rosa azul, dissera bem
consciente de que só ela podia compreender. Por experiência
ele sabia que deveria perguntar-lhe o significado da frase e
pacientemente dar-lhe o prazer de responder, mordendo o
lábio inferior:
— Ah, isso é cá comigo.
Dessa vez no entanto o antigo jogo emocionante não se
realizou. Apenas ele evitou olhar para a velha e encontrar seu
desapontamento. Levantou-se e foi bater no quarto da noiva.
Ela cosia perto da janela. Fechou a porta, trancou-a a
chave, ajoelhou-se perto dela. Encostou a cabeça no seu seio
e de novo aspirou aquele perfume morno e adocicado de rosas
velhas. Ela continuava a sorrir, ausente, quase misteriosa,
como se prestasse ouvido ao rolar suave de um rio dentro de
seu peito.
— Otávio, Otávio, disse ela com sua voz doce e
longínqua.
Nenhum dos habitantes daquela casa, nem a prima
solteirona, nem Lídia, nem os criados, viviam — pensou
Otávio. Mentira, retrucou-se: só ele estava morto. Mas
continuou: fantasmas, fantasmas. As vozes distantes,
nenhuma espera, a felicidade.
— Lídia, disse, me perdoe.
— Mas o quê? — espantou-se ela discretamente.
— Tudo.
Vagamente ela achou que deveria concordar e silenciou.
Otávio, Otávio. Tão mais fácil falar com as outras criaturas.
Se não o quisesse tanto, como seria difícil suportar toda
aquela incompreensão da parte dele. Só se entendiam quando
se beijavam, quando Otávio encostava a cabeça assim, no seu
seio. Mas a vida era mais longa, pensava assustada. Haveria
65
momentos em que olharia de frente para ele sem que sua
mão pudesse alcançar a dele. E então — o silêncio pesando.
Estaria sempre separado dela e apenas se comunicariam nos
instantes destacados — nas horas de muita vida e nas horas
de ameaça de morte. Mas não bastava, não bastava... A vida
em comum era necessária exatamente para viver os outros
momentos, pensava assustada, raciocinando com esforço. A
Otávio só poderia dizer as palavras imprescindíveis, como se
ele fosse um deus com pressa. Se se alongava numa daquelas
conversas vagarosas e sem objetivo, que lhe davam tanto
prazer, notava-lhe a impaciência ou senão o rosto excessivamente
paciente, heróico. Otávio, Otávio... O que fazer? Sua
aproximação era um toque mágico, transformava-a num ser
realmente vivo, cada fibra respirando cheia de sangue. Ou
senão não a agitava. Adormecia-a como se viesse
simplesmente, quietamente, aperfeiçoá-la.
Sabia que era inútil resolver sobre o próprio destino.
Amava Otávio desde o momento em que ele a quisera, desde
pequenos, sob o olhar alegre da prima. E sempre o amaria.
Inútil seguir por outros caminhos, quando para um só seus
passos a guiavam. Mesmo quando ele a feria, ela se refugiava
nele contra ele. Ela era tão fraca. Em vez de sofrer ao reconhecer
sua fraqueza, alegrava-se: sabia vagamente, sem se
explicar, que desta é que vinha o seu apoio para Otávio.
Sentia que ele sofria, que escondia alguma coisa viva e doente
na sua alma e que ela só poderia ajudá-lo usando de toda a
passividade que dormia em seu ser.
Às vezes revoltava-se longinquamente: a vida é longa...
Temia os dias, um atrás do outro, sem surpresas, de puro
devotamento a um homem. A um homem que disporia de
todas as forças da mulher para sua própria fogueira, num
sacrifício sereno e inconsciente de tudo o que não fosse sua
própria personalidade. Era uma falsa revolta, uma tentativa
de libertação que vinha sobretudo com muito medo de vitória.
Procurava durante alguns dias tomar uma atitude de
independência, o que só realizava com um pouco de sucesso
pela manhã, quando acordava, ainda sem ter visto o homem.
Bastava sua presença, apenas pressentida, para toda ela
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anular-se e ficar à espera. À noite, sozinha no quarto, queriao.
Todos os seus nervos, todos os seus músculos doentes. Resignou-
se pois. A resignação era doce e fresca. Nascera para
ela.
Otávio espiou-lhe os cabelos escuros, presos
modestamente atrás das orelhas grandes e feias. Espiou-lhe o
corpo grosso e firme, como um tronco, as mãos sólidas e
bonitas. E, de novo, como o refrão mole de uma canção,
repetiu-se: "O que me liga a ela?" Tinha pena de Lídia, sabia
que, mesmo sem motivo, mesmo sem conhecer outra mulher,
embora ela fosse a única, ele a abandonaria alguma vez. No
dia seguinte até. Por que não?
— Sabe? — disse — sonhei essa noite com você.
Ela abriu os olhos, iluminando-se toda:
— Mesmo? O quê?
— Sonhei que íamos os dois por um campo cheio de
flores, que eu colhia lírios para você, que você estava toda de
branco.
Mas que sonho bonito... Sim, bem bonito...
— Otávio.
— Sim?...
— Você não se incomoda que eu pergunte? Quando
vamos casar? Não há nada que nos impeça... Preciso saber
por causa do enxoval.
— Só por isso?
Ela corou, contente em poder falar de alguma coisa que
a enfeitasse. Tentou desajeitada mostrar-se faceira:
— É por isso e... mesmo porque eu não queria esperar.
É tão difícil.
— Entendo. Mas não sei quando.
— Mas por que não imediatamente? Você precisava
resolver... Há tanto tempo que...
67
De repente Otávio ergueu-se e disse:
— Você sabe que é mentira? Que eu não sonhei com
você?
Ela olhou-o espantada, pálida.
— Você está brincando. . .
— Não, estou falando sério. Não sonhei com você.
— Sonhou com quem?
— Com ninguém. Dormi de um sono só, sem sonhos.
Ela retomou a costura.
Joana passou a mão pelo ventre estufado da cachorra,
alisando-o com suas mãos finas. Deteve-se ligeiramente
atenta.
— Ela está grávida — disse.
E havia qualquer coisa no seu olhar, nas suas mãos
apalpando o corpo da cachorra que a ligava diretamente à
realidade desnudando-a. Como se ambas formassem um só
bloco, sem descontinuidade. A mulher e a cadela ali estavam,
vivas e nuas, com algo de feroz na comunhão. Fala com uma
justeza de termos que horroriza, pensou Otávio com malestar,
sentindo-se repentinamente inútil e afeminado. E era
apenas a primeira vez em que a via.
Nela havia uma qualidade cristalina e dura que o atraía
e repugnava-lhe simultaneamente, notou ele. Até o modo
como andava. Sem ternura e gosto pelo próprio corpo, mas
jogando-o como uma afronta aos olhos de todos, friamente.
Otávio observava-a mover-se e refletia que nem fisicamente
era a mulher de quem ele gostaria. Preferia corpos pequenos,
acabados, sem intenções. Ou grandes, como o da noiva, fixos,
mudos. O que ele lhes dissesse seria o bastante. Aquelas
linhas de Joana, frágeis, um esboço, eram inconfortáveis.
Cheias de sentido, de olhos abertos, incandescentes. Não era
bonita, fina demais. Mesmo sua sensualidade deveria ser
68
diferente da dele, excessivamente luminosa.
Otávio procurava, desde o instante em que a conhecera,
não perder nenhum de seus detalhes, dizendo-se: que não se
cristalize em mim qualquer sentimento terno; preciso
enxergá-la bem. Mas, como se adivinhasse seu exame, Joana
se voltava para ele no momento preciso, sorridente, fria,
pouco passiva. E tolamente ele agia, falava, confuso e
apressado em obedecer-lhe. Em vez de obrigá-la a revelar-se e
assim destruir-se no seu poder. E apesar daquele ar de quem
ignorava as coisas mais comuns, como logo no primeiro
encontro ela o precipitara em si mesmo! Jogara-o na
intimidade dele próprio, esquecendo friamente as pequenas e
cômodas fórmulas que o sustentavam e lhe facilitavam a
comunicação com as pessoas.
Joana contou-lhe...
...O velho foi-se aproximando, a balançar o corpo gordo,
o crânio liso. Chegou-se junto dela, os lábios em forma de
muxoxo, os olhos arredondados, a voz chorosa. Disse,
imitando o tatibitate infantil:
— Machuquei aqui... Tá dodói... Botei remedinho, já tá
melhorzinho...
Revirou os olhos e num momento as gorduras
tremeram, o brilho dos lábios molhados e frouxos fulgurou
docemente. Joana inclinou-se um pouco e viu suas gengivas
vazias.
— Não diz que tem pena de mim? Ela olhava-o séria.
Ele não estranhou:
— Não diz nem "tadinho"?
Era de uma pessoa se torcer de riso e de perplexidade
vê-lo baixinho, o traseiro saliente, os grandes olhos atentos,
numa larga continência trêmula. Ficou ainda silenciosa.
Depois, devagar, no mesmo tom:
— Coitadinho.
Ele riu, considerou finda a brincadeira e voltou as
costas para a porta. Joana acompanhou-o com o olhar,
69
inclinou-se um pouco para alcançá-lo todo com a vista, mal
ele se afastou da mesa. Encarava-o erecta e fria, os olhos
abertos, claros. Olhou para a mesa, procurou um instante,
pegou num livro pequeno e grosso. No momento em que ele
punha a mão no trinco, recebeu-o na nuca, com toda a força.
Voltou-se instantaneamente, a mão na cabeça, com os olhos
arregalados de dor e de espanto. Joana continuava na mesma
posição. Bem, pensava ela, agora já perdeu aquele ar
repugnante. Um velho só deveria sofrer.
Disse a voz alta e simpática:
— Perdoe. Uma pequena lagartixa ali, em cima da
porta. — Pequena pausa. — Errei na pontaria.
O velho continuou a olhá-la, sem compreender. Depois
um vago terror apossou-se dele diante daquele rosto
sorridente.
— Até logo... Não foi nada. .. — Meu Deus! — Até logo...
Quando a porta fechou-se, ela ficou ainda um tempo
com o sorriso no rosto. Alçou os ombros ligeiramente. Foi à
janela, o olhar cansado e vazio:
— Talvez eu deva ouvir música.
— Sim, é verdade, joguei o livro em cima dele,
respondeu Joana à pergunta de Otávio.
Ele procurou triunfar:
— Mas você não contou isso ao velho!
— Não, eu menti.
Otávio olhou-a, procurou em vão algum remorso, algum
sinal de confissão.
— Só depois de viver mais ou melhor, conseguirei a
desvalorização do humano, dizia-lhe Joana às vezes. Humano
— eu. Humano — os homens individualmente separados.
Esquecê-los porque com eles minhas relações apenas podem
ser sentimentais. Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o
70
equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos,
"fraternidade", "justiça". Se elas tivessem um valor real, seu
valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seriam
a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando
todo o espaço mental e sentimental exatamente porque são
impossíveis de se realizar, são contra a natureza. São fatais,
apesar de tudo, no estado de promiscuidade em que se vive.
Nesse estado transforma-se o ódio em amor, que nunca passa
na verdade de procura de amor, jamais obtido senão em
teoria, como no cristianismo.
Oh, poupe-me, gritava Otávio. Ela quisera parar mas o
cansaço e a excitação da presença do homem aguçavam-lhe a
mente, e as palavras rolavam sem cessar.
— É difícil tal desvalorização do humano, continuava,
difícil fugir dessa atmosfera de fracasso de revolução — a
adolescência —, de solidariedade com os homens na mesma
impotência de conseguir. No entanto como seria bom
construir alguma coisa pura, liberta do falso amor
sublimizado, liberta do medo de não amar... Medo de não
amar, pior do que o medo de não ser amado...
Oh, poupe-me, ouvia Joana no silêncio de Otávio. Mas
ao mesmo tempo ela gostava de pensar alto, de desenvolver
um raciocínio sem plano, seguindo-se apenas. Às vezes
mesmo, por puro prazer, inventava reflexões: se uma pedra
cai, essa pedra existe, houve uma força que fez com que ela
caísse, um lugar de onde ela caiu, um lugar onde ela caiu,
um lugar por onde ela caiu — acho que nada escapou à
natureza do fato, a não ser o próprio mistério do fato. Mas
agora ela falava também porque não sabia dar-se e porque
sobretudo apenas pressentia, sem entender, que Otávio
poderia abraçá-la e dar-lhe paz.
— Uma noite, mal me deitara, disse-lhe ela, uma das
pernas da cama partiu-se jogando-me ao chão. Depois de um
movimento de cólera, porque nem ao menos tinha sono
bastante para dispensar o conforto, pensei subitamente: por
que motivo uma cama inteira, e não uma quebrada? Deiteime
e em breve dormia...
71
Ela não era bonita. Às vezes como que o espírito a
abandonava e então revelava-se o que, por uma vigilância
sobre-humana — imaginava Otávio —, jamais se descobria.
No rosto que então surgia, os traços limitados e pobres não
tinham beleza própria. Nada restava do antigo mistério senão
a cor da pele, creme, sombria, fugitiva. Se os instantes de
abandono prolongavam-se e se sucediam, então ele via
assustado a feiúra, e mais que a feiúra, uma espécie de vileza
e brutalidade, alguma coisa cega e inapelável dominar o corpo
de Joana como numa decomposição. Sim, sim, talvez subisse
então à superfície alguma coisa liberta do medo de não amar.
— Sim, eu sei, continuava Joana. A distância que
separa os sentimentos das palavras. Já pensei nisso. E o
mais curioso é que no momento em que tento falar não só
não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma
lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir
não é, seguramente, o que eu sinto mas o que eu digo.
Ela falara do velho, falara da gravidez da cadela mal ele a
conhecera e de repente, assustado, ele se sentira como depois
de uma confissão, como se tivesse dito àquela estranha toda
a sua vida. Que vida? A que se debatia dentro dele e que não
era nada, repetiu-se com medo de surgir aos próprios olhos
como grandioso e cheio de responsabilidades. — Ele nada
era, nada era e nada precisava pois fazer, repetia-se, os olhos
mentalmente fechados. — Como se tivesse contado a Joana o
que não sentia senão no escuro. E o mais surpreendente de
tudo: como se ela tivesse escutado e risse depois, perdoando
— não como Deus, mas como o diabo —, abrindo-lhe portas
largas para a passagem.
Sobretudo no momento em que a tocara, compreendera:
o que se seguisse entre eles seria irremediável. Porque
quando a abraçara, sentira-a viver subitamente em seus
braços como água correndo. E vendo-a tão viva, entendera
esmagado e secretamente contente que se ela o quisesse ele
nada poderia fazer... No momento em que finalmente a
beijara sentira-se ele próprio de repente livre, perdoado além
do que ele sabia de si mesmo, perdoado no que estava sob
tudo o que ele era...
72
Daí em diante não havia escolha. Caíra vertiginosamente
de Lídia para Joana. Sabendo disso ajudava-se
a amá-la. Não era difícil. Uma vez ela se distraíra olhando
pelo vidro da janela, os lábios soltos, esquecida de si mesma.
Ele a chamara e o modo suave e abandonado como ela
voltava a cabeça e dissera: hein?... fizera-o cair dentro de si
mesmo, mergulhando numa tonta e escura onda de amor.
Otávio voltara então o rosto para o lado, não querendo vê-la.
Poderia amá-la, poderia tomar a nova e incompreensível
aventura que ela lhe oferecia. Mas continuava agarrado ao
primeiro impulso que o jogara contra ela. Não era como
mulher, não era assim, cedida, que ele a queria... Precisava-a
fria e segura. Para que ele pudesse dizer como em pequeno,
refugiado e quase vitorioso: a culpa não é minha. . .
Casariam, ver-se-iam minuto por minuto e que ela fosse
pior que ele. E forte, para ensinar-lhe a não ter medo. Nem
mesmo o medo de não amar... Ele a queria não para fazer sua
vida com ela, mas para que ela lhe permitisse viver. Viver
sobre si mesmo, sobre seu passado, sobre as pequenas
vilezas que cometera covardemente e a que covardemente
continuava unido. Otávio pensava que ao lado de Joana
poderia continuar a pecar.
Quando Otávio a beijara, segurara-lhe as mãos,
apertando-as contra seu seio, Joana mordera os lábios a
princípio cheia de raiva porque ainda não sabia com que
pensamento vestir aquela sensação violenta, como um grito,
que lhe subia do peito até entontecer a cabeça. Olhou-o sem
vê-lo, os olhos nublados, o corpo sofredor. Precisavam
despedir-se. Afastou-se bruscamente e foi embora sem se
voltar para trás, sem saudade.
No quarto, já despida sobre a cama, não conseguia
adormecer. Seu corpo pesava-lhe, existia além dela mesma
como um estranho. Sentia-o palpitante, aceso. Fechou a luz e
os olhos, tentou fugir, dormir. Mas continuou por longas
horas a perscrutar-se, a vigiar o sangue que se arrastava
grosso pelas suas veias como um animal bêbedo. E a pensar.
Como não se conhecia até então. Aquelas formas finas e li73
geiras, aquelas linhas delicadas de adolescente. Abriam-se,
respiravam sufocadas e cheias de si mesmas até o limite.
De madrugada a viração alisou a cama, acenou as
cortinas. Joana foi serenando suavemente. A frescura do fim
da noite acariciou-lhe o corpo dolorido. O cansaço tomou-a
devagar e de repente exausta entregou-se a um sono
profundo.
Acordou tarde e alegre. Cada célula, imaginava, abrirase
florescente. Milagrosamente todas as energias despertas,
prontas para lutar. Quando pensava em Otávio, respirava
com cuidado como se o ar lhe fizesse mal. Durante os dias
que se seguiram não o viu nem procurou vê-lo. Evitava-o
mesmo como se sua presença fosse dispensável.
E foi tão corpo que foi puro espírito. Atravessava os
acontecimentos e as horas imaterial, esgueirando-se entre
eles com a leveza de um instante. Mal se alimentava e seu
sono era fino como um véu. Acordava muitas vezes durante a
noite, sem susto, preparando-se antes de pensar para sorrir.
Adormecia de novo sem mudar de posição, apenas cerrando
os olhos. Procurou-se muito no espelho, amando-se sem
vaidade. A pele serena, os lábios vivos faziam-na quase tímida
voltar as costas para sua imagem, sem força para sustentar
seu olhar contra o daquela mulher, fresco e úmido, tão
brandamente claro e seguro.
Depois cessou a felicidade.
A plenitude tornou-se dolorosa e pesada e Joana era
uma nuvem prestes a chover. Respirava mal como se dentro
dela não houvesse lugar para o ar. Caminhou de um lado
para outro, perplexa com a mudança. Como? — perguntavase
e sentia que estava sendo ingênua, aquilo tinha dois
lados? Sofrer pelo mesmo motivo que a tornara terrivelmente
feliz?
Carregou consigo o corpo doente, um ferido incômodo,
durante os dias. A leveza fora substituída por miséria e
cansaço. Saciada — um animal que matara sua sede
inundando seu corpo d'água. Mas ansiosa e infeliz como se
74
apesar de tudo restassem terras ainda não molhadas, áridas
e sedentas. Sofreu sobretudo de incompreensão, sozinha,
atônita. Até que encostando a testa, no vidro da janela — rua
quieta, a tarde caindo, o mundo lá fora —, sentiu o rosto
molhado. Chorou livremente, como se esta fosse a solução. As
lágrimas corriam grossas, sem que ela contraísse um só
músculo da face. Chorou tanto que não soube contar. Sentiuse
depois como se tivesse voltado às suas verdadeiras
proporções, miúda, murcha, humilde. Serenamente vazia.
Estava pronta.
Procurou-o então. E a nova glória e o novo sofrimento
foram mais intensos e de qualidade mais insuportável.
Casou-se.
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja
existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O
mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os
humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos
animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar,
crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria
planta. Não poderia mais negar... o quê? — perguntava-se
suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação
dormindo embaixo de tudo, a harmonia existente sob o que
não entendia.
Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua
felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada
acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas
de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos
e profundos vivia com serenidade durante largo tempo,
compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe
fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se
distanciado dos homens. Apesar de que nesse período
conseguia estender-lhes a mão com uma fraternidade de que
eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das próprias dores e
ela, embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um
olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher
grávida.
O que sucedia então? Milagrosamente vivia, liberta de
75
todas as lembranças. Todo o passado se esfumaçara. E
também o presente eram névoas, as doces e frescas névoas
separando-a da realidade sólida, impedindo-a de tocá-la. Se
rezasse, se pensasse seria para agradecer ter um corpo feito
para o amor. A única verdade tornou-se aquela brandura
onde mergulhara. Seu rosto era leve e impreciso, boiando
entre os outros rostos opacos e seguros, como se ele ainda
não pudesse adquirir apoio em qualquer expressão. Todo o
seu corpo e sua alma perdiam os limites, misturavam-se,
fundiam-se num só caos, suave e amorfo, lento e de
movimentos vagos como matéria simplesmente viva. Era a
renovação perfeita, a criação.
E sua ligação com a terra era tão profunda e sua certeza
tão firme — de quê? de quê? — que agora podia mentir sem
se entregar. Tudo isso deixava-a pensar às vezes:
— Por Deus, quem sabe se não estou fazendo disto mais
do que amor?
Aos poucos habituou-se ao novo estado, acostumou-se a
respirar, a viver. Aos poucos foi envelhecendo dentro de si,
abriu os olhos e novamente era uma estátua, não mais
plástica, porém definida. Bem longe renascia a inquietação. À
noite, entre os lençóis, um movimento qualquer ou um
pensamento inesperado acordava-a para si mesma.
Levemente surpreendida dilatava os olhos, percebia seu corpo
mergulhado na confortável felicidade. Não sofria, mas onde
estava?
— Joana... Joana... — chamava-se ela docemente. E seu
corpo mal respondia devagar, baixinho: Joana.
Os dias foram correndo e ela desejava achar-se mais.
Chamava-se agora fortemente e não lhe bastava respirar. A
felicidade apagava-a, apagava-a... Já queria sentir-se de novo,
mesmo com dor. Mas submergia cada vez mais. Amanhã,
adiava, amanhã vou-me ver. O novo dia porém perpassava
pela sua superfície, leve como uma tarde de estio, mal franzindo
seus nervos.
Só não se habituara a dormir. Dormir era cada noite
76
uma aventura, cair da claridade fácil em que vivia para o
mesmo mistério, sombrio e fresco, atravessar a escuridão.
Morrer e renascer.
Nunca terei pois uma diretriz, pensava meses depois de
casada. Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida
da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de
pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que
se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um deles,
em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano,
inorgânico ou orgânico inferior, recomeçava-a mesmo no
plano humano. Apenas diversas as notas fundamentais. Ou
apenas diversas as suplementares, e as básicas eternamente
iguais?
Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter
amado. Nenhuma felicidade ou infelicidade tinha sido tão
forte que tivesse transformado os elementos de sua matéria,
dando-lhe um caminho único, como deve ser o verdadeiro
caminho. Continuo sempre me inaugurando, abrindo e
fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos,
cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se
fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram
demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos,
condensados neles mesmos que não precisavam de passado
nem de futuro para existir. Traziam um conhecimento que
não servia como experiência — um conhecimento direto, mais
como sensação do que percepção. A verdade então descoberta
era tão verdade que não podia subsistir senão no seu
recipiente, no próprio fato que a provocara. Tão verdadeira,
tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez
terminado o momento de vida, a verdade correspondente
também se esgota. Não posso moldá-la, fazê-la inspirar
outros instantes iguais. Nada pois me compromete.
No entanto a justificação de sua curta glória talvez não
tivesse outro valor senão o de lhe dar certo prazer de
raciocínio, assim como: se uma pedra cai, essa pedra existe,
essa pedra caiu de um lugar, essa pedra... Ela errava tanto.
77


SEGUNDA PARTE



O CASAMENTO



JOANA lembrou-se de repente, sem aviso prévio, dela
mesma em pé no topo da escadaria. Não sabia se alguma vez
estivera no alto de uma escada, olhando para baixo, para
muita gente ocupada, vestida de cetim, com grandes leques.
Muito provável mesmo que nunca tivesse vivido aquilo. Os
leques, por exemplo, não tinham consistência na sua
memória. Se queria pensar neles não via na realidade leques,
porém manchas brilhantes nadando de um lado para outro
entre palavras em francês, sussurradas com cuidado por
lábios juntos, para frente assim como um beijo enviado de
longe. O leque principiava como leque e terminava com as
palavras em francês. Absurdo. Era pois mentira.
Mas apesar de tudo a impressão continuava querendo ir
para frente, como se o principal estivesse além da escadaria e
dos leques. Parou um instante os movimentos e só os olhos
batiam rápidos, à procura da sensação. Ah, sim. Desceu pela
escadaria de mármore, sentindo na planta dos pés aquele
medo frio de escorregar, nas mãos um suor cálido, na cintura
uma fita apertando, puxando-a como um leve guindaste para
cima. Depois o cheiro das fazendas novas, o olhar brilhante e
curioso de um homem atravessando-a e deixando-lhe, como
se tivesse comprimido um botão no escuro, o corpo
iluminado. Ela era percorrida por longos músculos inteiros.
Qualquer pensamento descia por essas cordas polidas até
tremer ali, nos tornozelos, onde a carne era macia como a de
um frango.
Parava no último degrau, no largo e sem perigo, pousava
levemente a palma da mão sobre o corrimão frio e liso. E sem
saber por que sentia uma súbita felicidade, quase dolorosa,
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um quebranto no coração, como se ele fosse de massa mole e
alguém mergulhasse os dedos nele, revolvendo-o maciamente.
Por quê? Levantou fragilmente a mão, num gesto de recusa.
Não queria saber. Mas agora já lhe surgira a pergunta e como
resposta absurda veio-lhe o corrimão refulgente lançado com
desenvoltura do alto como uma serpentina envernizada em
dia de carnaval. Só que não era carnaval, porque havia
silêncio no salão, podia-se ver tudo através dele. Os reflexos
úmidos das lâmpadas sobre os espelhos, os broches das
damas e as fivelas dos cintos dos homens comunicando-se a
intervalos com o lustre, por delgados raios de luz.
Cada vez mais entendia o ambiente. Entre os homens e
as mulheres não havia espaços duros, tudo se misturava
molemente. De algum aquecedor invisível subia um vapor
úmido e emocionante. De novo o coração lhe doeu levemente
e ela sorriu, o nariz franzido, a respiração fraca.
Houve uma pequena pausa de repouso. Foi recuperando
aos poucos, apesar de seu esforço em contrário, a realidade,
novamente o corpo insensível, opaco e forte como uma coisa
viva há muito tempo.
Enxergou o quarto, as cortinas acenando irônicas, a
cama obstinadamente imóvel, inútil.. Tentou inquieta
transpor-se para o topo da escadaria, descê-la novamente.
Enxergou-se caminhando, mas não sentiu mais as pernas
trêmulas, nem o suor nas mãos. Então viu que esgotara a
lembrança.
Ficou à espera, junto da estante de livros, onde fora
buscar... o quê? Franziu a testa sem muito interesse. O quê?
Procurou achar engraçada aquela impressão de que no centro
da testa existia agora um buraco no lugar de onde tinham
extraído a idéia do que fora buscar.
Inclinou-se pela porta e perguntou alto, os olhos
fechados:
— Que é que você queria, Otávio?
— O de Direito Público, disse ele, e antes que prestasse
de novo atenção ao caderno lançou-lhe um rápido olhar
79
surpreso.
Levou-lhe o livro, ausente, os movimentos vagarosos.
Ele esperou-o com a mão estendida, sem levantar a cabeça.
Demorou um instante com o livro em sua direção, a uma
pequena distância dele. Mas Otávio não notou a demora e
com um pequeno movimento de ombros ela colocou-o entre
seus dedos.
Sentou-se numa cadeira próxima, sem comodidade,
como se devesse partir daí a um instante. Aos poucos, nada
acontecendo, aproximou o corpo do encosto e abandonou-se,
os olhos vazios, sem pensar.
Otávio continuava no Direito Público, demorando-se em
alguma linha e depois impaciente mordendo a unha e
voltando rápido várias páginas ao mesmo tempo. Até que
parava de novo, distraído, a língua passeando pelo bordo dos
dentes, uma das mãos puxando com ternura os fios das
sobrancelhas. Alguma palavra imobilizou-o, a mão no ar, a
boca aberta como um peixe morto. De repente afastou o livro
com um safanão. O olhar brilhante e ganancioso, escreveu
depressa no caderno, parando um instante para respirar
ruidosamente e, num gesto que a sobressaltou, bater nos
dentes com os nós dos dedos.
Que animal, pensou ela. Ele interrompeu o que escrevia
e olhou-a aterrorizado, como se ela lhe tivesse jogado alguma
coisa. Continuou a fixá-lo sem força e Otávio mexeu-se na
cadeira, pensando apenas que não estava sozinho. Sorriu,
tímido e importunado, estendeu-lhe a mão por cima da mesa.
Ela afastou o corpo da cadeira e ofereceu-lhe por sua vez a
ponta dos dedos. Otávio comprimiu-os rapidamente,
sorridente, e logo depois, antes mesmo que ela tivesse tempo
de recolher o braço, voltou-se furiosamente para o caderno, o
rosto quase afundando nele, a mão trabalhando.
Era ele quem estava sentindo agora, pensou Joana. E,
de repente, talvez de inveja, sem nenhum pensamento, odiouo
com uma força tão bruta que suas mãos se fecharam sobre
os braços da poltrona e seus dentes se cerraram. Palpitou
durante alguns instantes, reanimada. Temendo que o marido
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sentisse alguns instantes, obrigasse-a a disfarçá-lo e assim
diminuir a intensidade de seu sentimento.
A culpa era dele, pensou friamente, à espreita de nova
onda de raiva. A culpa era dele, a culpa era dele. Sua
presença, e mais que sua presença: saber que ele existia,
deixavam-na sem liberdade. Só raras vezes agora, numa
rápida fugida, conseguia sentir. Isso: a culpa era dele. Como
não descobrira antes? — perguntou-se vitoriosa. Ele roubavalhe
tudo, tudo. E como a frase ainda fosse fraca, pensou com
intensidade, os olhos fechados, tudo! Sentiu-se melhor,
pensou com mais nitidez.
Antes dele estava sempre de mãos estendidas e quanto
oh quanto não recebia de surpresa! De violenta surpresa,
como um raio de doce surpresa, como uma chuva de
pequenas luzes... Agora tinha todo o seu tempo entregue a ele
e os minutos que eram seus ela os sentia concedidos,
partidos em pequenos cubos de gelo que devia engolir rapidamente,
antes que se derretessem. E fustigando se para andar
a galope: olhe, que esse tempo é liberdade! olhe, pense
depressa, olhe, encontre-se depressa, olhe... acabou-se! Agora
— só mais tarde, de novo a bandeja de cubinhos de gelo e
você diante dela fascinada, vendo os pingos d'água já
escorrerem.
Depois ele vinha. E ela repousava enfim, com um
suspiro, pesadamente. — Mas não queria repousar! — O
sangue corria-lhe mais vagarosamente, o ritmo domesticado,
como um bicho que adestrou suas passadas para caber
dentro da jaula.
Lembrou-se de quando fora buscar — o quê? ah, Direito
Público — na estante do topo da escadaria, uma lembrança
tão gratuita, tão livre, até imaginada... Como estava nova
então. Água límpida correndo por dentro e por fora. Teve
saudades da sensação, necessidade de sentir de novo. Olhou
ansiosa de um lado para outro, procurando alguma coisa.
Mas tudo ali era como era há muito. Velho. Vou deixá-lo,
achou num primeiro pensamento, sem antecedentes. Abriu
os olhos, à espreita de si mesma. Sabia que desse
81
pensamento poderiam vir conseqüências. Pelo menos
antigamente, quando suas resoluções não precisavam de
grandes fatos, só de uma pequena idéia, de uma visão
insignificante, para nascerem. Vou deixá-lo, repetiu-se e
dessa vez do pensamento partiam pequenos filamentos
prendendo-o a si mesma. Dagora em diante ele estava dentro
dela e cada vez mais os filamentos engrossariam até
formarem raízes.
Quantas vezes ainda ela se proporia isso, até deixá-lo
mesmo? Cansou-se previamente das pequenas lutas que
ainda teria, revoltando-se e cedendo em seguida, até o fim.
Teve um rápido e impaciente movimento interior que se
refletiu apenas num levantar imperceptível da mão. Otávio
desviou por um segundo os olhos para ela e continuou como
um sonâmbulo a escrever. Como ele era sensível, pensou
num intervalo. Continuou seguindo-se: por que adiar? Sim,
por que adiar? — perguntou-se. E a indagação era sólida,
reclamava uma resposta séria. Ajeitou-se na cadeira, tomou
uma atitude de cerimônia, como para ouvir o que tinha a
dizer.
Então Otávio suspirou alto, fechou o livro e o caderno
com estrépito, jogou-os longe, exagerado, as pernas
compridas estiradas para longe da cadeira. Ela olhou-o
assustada, ofendida. Então... — começou com ironia. Mas
não sabia como continuar e esperou, olhando-o.
Ele disse, um cômico ar severo:
— Muito bem. Agora a senhora faça o favor de se
aproximar e encostar a cabeça nesse valoroso peito, porque
estou precisando disso.
Ela riu, só para satisfazê-lo. Mas no meio do riso já
estava achando um pouco de graça. Continuou sentada,
tentando prosseguir: então, ele... e fazia com os lábios um
jeito de desprezo e de vitória, como quem recebe as provas
esperadas. Então, ele... Era assim? Esperava que Otávio visse
sua atitude, adivinhasse sua resolução de não se mover da
cadeira. Ele, no entanto, como sempre, nada adivinhava e
justamente nos momentos em que deveria olhar, distraía-se
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com qualquer coisa. Agora, exatamente agora, lembrara-se de
ajeitar o livro e o caderno jogados sobre a mesa. Nem olhava
para Joana, estava certo de que ela viria? Riu um mau
sorriso, pensando como ele se enganara e quantos
pensamentos ela tivera sem que ele pudesse imaginar sequer.
Sim, por que adiar?
Ele ergueu os olhos, um pouco surpreso pela demora. E
como ela continuasse sentada, ficaram se olhando de longe.
Ele estava intrigado.
— Então? — disse sem gosto: — Meu valoroso...
Joana interrompeu-o com um gesto, porque não
suportava a piedade que a invadira de súbito e a impressão
de ridículo da frase, quando ela própria estava tão lúcida e
resolvida a falar. Ele não se assustou com o seu movimento e
ela teve que engolir a saliva com cuidado para empurrar para
dentro de si a estúpida vontade de chorar que principiava a
nascer mole dentro do peito.
Agora sua piedade abrangia-a também e ela via os dois
juntos, coitados e infantis. Os dois iam morrer, esse mesmo
homem que batera com os dedos nos dentes, num movimento
tão vivo. Ela mesma, com o topo da escadaria e toda a sua
capacidade de querer sentir. As coisas principais assaltavamna
em quaisquer momentos, também nos vazios, enchendoos
de significados. Quantas vezes não dera uma gorjeta
exagerada ao garçom só porque se lembrara de que ele ia
morrer e não o sabia.
Olhava-o misteriosamente, séria e terna. E agora
procurava emocionar-se pensando nos dois futuros mortos.
Encostou a cabeça no seu peito e lá um coração batia.
Pensou: mas mesmo assim, apesar da morte, vou deixá-lo um
dia. Conhecia bem o pensamento que lhe poderia vir,
fortalecendo-a, se antes de deixá-lo se comovesse: "Eu tirei
tudo o que poderia ter. Não o odeio, não o desprezo. Por que
procurá-lo, mesmo que o ame? Não gosto tanto de mim a
ponto de gostar das coisas de que eu gosto. Amo mais o que
quero do que a mim mesma". Oh, sabia igualmente que a
83
verdade poderia estar no contrário do que pensara.
Abandonou a cabeça, comprimiu a testa na camisa branca de
Otávio. Aos poucos, muito de leve, foi-se apagando a idéia de
morte e já não encontrava de que rir. Seu coração era
maciamente moldado. Com o ouvido ela sabia que o outro,
indiferente a tudo, prosseguia nas suas batidas regulares, no
seu caminho fatal. O mar.
— Adiar, só adiar, pensou Joana antes de deixar de
pensar. Porque os últimos cubos de gelo haviam-se derretido
e agora ela era tristemente uma mulher feliz.



O ABRIGO NO PROFESSOR



JOANA BEM SE LEMBRAVA: dias antes de casar procurara o
professor.
Subitamente precisara encontrá-lo, senti-lo firme e frio
antes de ir embora. Porque de algum modo parecia-lhe estar
traindo toda a sua vida passada com o casamento. Queria
rever o professor, sentir seu apoio. E quando lhe surgiu a
idéia de visitá-lo, acalmara-se aliviada.
Ele haveria de lhe dar a palavra justa. Que palavra? Nada,
respondia-se misteriosamente, querendo numa repentina
vontade de fé e de boa espera guardar-se para ouvi-lo
completamente nova, sem ter sequer uma idéia do que ia
ganhar. Um dia já lhe sucedera isso: quando pela primeira
vez se preparava para o circo, em pequena. Teve os melhores
momentos aprontando-se para ele. E quando se aproximou
do largo campo onde branqueava o barracão redondo e
imenso, como uma dessas cúpulas que escondem ate certo
instante o melhor prato da mesa, quando se aproximou na
mão da criada, sentiu o medo e a angústia e a alegria trêmula
no coração, queria voltar, fugir. No momento em que a criada
lhe disse: seu pai deu dinheiro para pipocas, então Joana
olhou estupefata para as coisas, sob a tarde cheia de sol,
como se elas estivessem loucas.
Sabia que o professor adoecera, que fora abandonado
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pela mulher. Mas apesar de envelhecido, encontrara-o mais
gordo, o olhar brilhante. Também temera a princípio que a
última cena em comum, quando fugira assustada para a
puberdade, dificultasse a visita, deixasse-os em mal-estar,
naquela mesma sala estranha e sonsa onde agora a poeira
vencera o brilho.
O professor recebera-a com ar sereno e distraído. Com
as olheiras escuras parecia uma fotografia antiga. Fazia
perguntas a Joana e mal ela iniciava a resposta ele deixava de
ouvir, como enfim desobrigado . Várias vezes se interrompia,
a atenção voltada para o relógio e para a mesinha dos
remédios. Ela olhava ao redor e a meia escuridão era úmida e
ofegante. O professor parecia um grande gato castrado
reinando num porão.
— Agora pode abrir as janelas, disse ele. Você sabe, um
pouco de escuridão e depois bastante ar; todo o organismo se
beneficia, recebe vida. É como uma criança mal cuidada.
Quando recebe tudo, de repente reage, refloresce, mais do
que as outras, às vezes.
Joana escancarara as janelas e as portas e o ar frio
entrara numa rajada triunfante. Um pouco de sol vinha pela
porta atrás dele. O professor alargara a gola do pijama,
expusera-se ao vento.
— É assim, declarara.
Olhando-o Joana descobria que ele era apenas um velho
gordo ao sol, os ralos cabelos sem resistir à brisa o grande
corpo largado sobre a cadeira. E o sorriso, meu Deus, um
sorriso.
Quando haviam soada três horas, repentinamente
agitara-se, parara no meio da frase e, os gestos medidos, o
rosto ávido e grave, contara vinte gotas dum frasco para um
cálice de água. Levantara-o à altura dos olhos, observando-o,
os lábios apertados, inteiramente absorvido. Bebera o líquido
escuro sem medo, fitando depois o cálice com uma careta
amarga e um semi-sorriso que ela não soubera explicar.
Colocara-o sobre a mesa, batera palmas chamando o criado,
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um moleque magro e distraído. Esperara pela sua volta em
silêncio, o olhar atento como se procurasse ouvir de longe. Só
quando recebera o copinho lavado, após bem examiná-lo e
emborcá-lo sobre um pires, tivera um leve suspiro:
— Bem, de que estávamos falando?
Ela continuava sem atentar às próprias palavras,
observando-o. Nenhum traço no rosto do homem marcava o
abandono de sua mulher. Fugitivamente revia aquela figura
quase sempre muda, de rosto impassível e soberano, que ela
temera e odiara. E, apesar da repulsa que a outra ainda lhe
inspirava, numa reminiscência, Joana descobrira surpresa
que não só então, mas talvez sempre, se sentira unida a ela,
como se ambas tivessem algo secreto e mau em comum.
Nada na fisionomia dele denunciava a partida da
esposa. Havia mesmo em sua atitude e em seu olhar uma
tranqüilidade como que finalmente adquirida, um repouso
que Joana nunca lhe tinha notado antes. Perscrutava-o
quase angustiada como as águas engrossadas pela chuva e
cuja profundidade fosse agora impossível de avaliar. Viera
ouvi-lo, sentir sua lucidez como um ponto fixo!
— A tortura de um homem forte é maior que a de um
doente — experimentara fazê-lo falar.
Ele mal erguera os olhos. Sua frase flutuava no ar, tola
e tímida. Vou continuar, é exatamente de minha natureza
nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em
todos os palcos. Otávio, pelo contrário, com uma estética tão
frágil que basta um riso mais agudo para quebrá-la e torná-la
miserável. Ele me ouviria agora inquieto ou senão sorrindo.
Otávio já estava pensando dentro dela? ela já se transformara
numa mulher que ouve e espera o homem? Estava cedendo
alguma coisa... Queria salvar-se, ouvir o professor, sacudi-lo.
Então esse velho que estava à sua frente não se lembrava de
tudo o que lhe dissera? "Pecar contra si mesma..."
— O doente imagina o mundo e o são o possui,
continuara Joana. O doente pensa que não pode apenas pela
sua doença e o forte sente inútil sua força.
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Sim, sim, ele balançava a cabeça, tímido. Ela percebia
que seu mal-estar era somente o de alguém que não deseja
ser interrompido. Continuara porém até o fim, a voz morta
repetindo o pensamento que tivera há muito.
— Por isso a poesia dos poetas que sofreram é doce,
terna. E a dos outros, dos que de nada foram privados, é
ardente, sofredora e rebelde.
— Sim — dizia ele ajeitando a gola frouxa do pijama.
Ela via humilhada e perplexa seu pescoço escuro,
enrugado. Sim, dizia ele de quando em quando sem que sua
atenção, procurando um apoio, se desviasse do relógio. Como
dizer-lhe que ia casar?
Às quatro horas novamente repetira-se o ritual . Dessa
vez o moleque desviara o corpo para não receber um pontapé,
porque quase deixara cair o vidro de remédio. Com a tentativa
frustrada, o chinelo do professor voara longe e seu pé de
unhas recurvas e amareladas surgira nu. O menino apanhara
o chinelo e jogara-o até Joana, rindo, com medo de se
aproximar. Depois do cálice guardado, ela aventurara a
primeira palavra sobre sua doença, devagar, envergonhada,
porque nunca antes haviam eles penetrado na intimidade dos
próprios casos, sempre se haviam entendido fora deles
mesmos.
Não seria preciso tentar maior aproximação.. . Ele
tomara a direção do assunto, alisara-o lentamente, com vagar
e volúpia explicava-lhe todos os detalhes. O ar um pouco
benevolente e misterioso a princípio, achando impossível que
ela entrasse no seu mundo. Mas depois de uns instantes,
esquecido de sua presença, docemente empolgado, já falava
abertamente.
— O médico disse que ainda não estou melhor. Mas vou
ficar bom, eu sei mais do que todos os médicos, acrescentara.
Pois se sou eu o doente. ..
Ele descobrira finalmente, assombrada, que ele era
feliz...
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Aproximavam-se as cinco horas. Sentia que ele ansiava
por sua partida. Mas não o deixaria assim, ainda tentou
empurrar-se. Olhara-o bem nos olhos, cruelmente. Ele lhe
retribuíra um olhar morno e indiferente de início e logo em
seguida furtara-se com raiva, importunado.


A PEQUENA FAMÍLIA


ANTES DE COMEÇAR a escrever, Otávio ordenava os papéis
sobre a mesa minuciosamente, ajeitava a roupa em si mesmo.
Gostava dos pequenos gestos e dos velhos hábitos, como
vestes gastas, onde se movia com seriedade e segurança.
Desde estudante assim se preparava para um trabalho.
Depois de instalar-se junto à mesa, arrumava-a e, a consciência
avivada pela noção das coisas ao redor — não me perder
em grandes idéias, sou também uma coisa —, deixava a pena
correr um pouco livremente para libertar-se de alguma
imagem ou reflexão obsedante que porventura quisesse
acompanhá-lo e impedir a marcha do pensamento principal.
Por isso trabalhar diante dos outros era um suplício. Receava
o ridículo dos pequenos rituais e sem eles não podia passar,
apoiavam tanto como uma superstição. Do mesmo modo
como para viver cercava-se de permitidos e tabus, das
fórmulas e das concessões. Tudo tornava-se mais fácil, como
ensinado . O que fascinava e amedrontava em Joana era
exatamente a liberdade em que ela vivia, amando
repentinamente certas coisas ou, em relação a outras, cega,
sem usá-las sequer. Pois ele se via obrigado diante do que
existia. Bem dissera Joana que ele precisava ser possuído por
alguém... Você pega no dinheiro com uma intimidade... —
brincara Joana uma vez enquanto ele pagava uma conta num
restaurante e de tal modo ela o encontrava distraído e
assustara-o que, diante do garçom, irônico certamente, as
notas e as moedas escorregaram-lhe das mãos e espalharamse
aos seus pés. Embora não se seguisse nenhuma frase
irônica — bem, justiça lhe seja feita, Joana não ri — ainda
guardava um argumento pronto desde então: mas o que fazer
com o dinheiro senão guardá-lo para gastá-lo? Irritava-se,
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envergonhado. Sentia que o argumento não respondia a
Joana.
A verdade é que se não tivesse dinheiro, se não
possuísse os "estabelecidos", se não amasse a ordem, se não
existisse a Revista de Direito, o vago plano do livro de civil, se
Lídia não estivesse dividida de Joana, se Joana não fosse
mulher e ele homem, se... oh, Deus, se tudo... que faria? Não,
não "que faria", mas a quem se dirigiria, como se moveria?
Impossível deslizar por entre os blocos, sem vê-los, sem deles
necessitar. . .
Contrariando a regra de trabalho — uma concessão —,
pegou no papel e no lápis mesmo antes de estar inteiramente
preparado. Mas desculpou-se, não queria perder aquela nota,
talvez lhe servisse um dia: "É necessário certo grau de
cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa
talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais
do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade.
Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na
escuridão tornam-se fosforescentes". — Pensou um pouco.
Depois, apesar da concessão prolongar-se demais, anotou:
"Não é o grau que separa a inteligência do gênio, mas a
qualidade. O gênio não é tanto uma questão de poder
intelectivo, mas da forma por que se apresenta esse poder.
Pode-se assim ser facilmente mais inteligente que um gênio.
Mas o gênio é ele. Infantil esse 'o gênio é ele'. Ver em relação a
Spinoza, se se pode aplicar a descoberta". — Era dele mesmo?
Toda a idéia que lhe surgia, porque se familiarizava com ela
em segundos, vinha com o temor de tê-la roubado.
Bem, agora a ordem. Lápis largado, recomendou-se,
libertar-me das obsessões. Um, dois, três! Lamento muito
sofrer como sofro entre os bambus do noroeste desta cidade,
começou. Faço o que quero — continuou —, e ninguém me
obriga a escrever a Divina Comédia. Não há outra maneira de
ser senão a que é, o resto é bordado inútil e tão incômodo
como aquele, em relevo, com anjos e flores, com que prima
Isabel enfeitava meus travesseiros. Quando eu estava
distraído e ela vinha como uma nuvem roxa e idiota, qual o
meu pensamento, diga qual, qual, mais quatro vezes qual,
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qual, qual, qual. Assim, assim, não fuja: "o quê? ainda estás
viva? ainda não morreste?" Sim, sim, foi isso, não fugir de
mim, não fugir de minha letra, como é leve e horrível, teia de
aranha, não fugir de meus defeitos, meus defeitos, eu vos
adoro, minhas qualidades são tão pequenas, iguais às dos
outros homens, meus defeitos, meu lado negativo é belo e
côncavo como um abismo. O que não sou deixaria um buraco
enorme na terra. Eu não agasalho meus erros, enquanto
Joana não erra, eis a diferença. Hein, hein, diga alguma
coisa, rapaz. As mulheres olham para mim, as mulheres, as
mulheres, minha boca, deixo crescer de novo o bigode, elas
morrem de alegria e grande amor, cheio de ameixas e passas.
Eu compro todas elas sem dinheiro, dinheiro guardo, se uma
escorrega numa casca lá na rua, nada há de fazer senão ter
vergonha. Nada se perde, nada se cria. O homem que sentisse
isso, quer dizer, não apenas compreendesse, mas adorasse,
seria tão feliz como o que acredita realmente em Deus. No
começo dói um pouco, mas depois a gente se acostuma.
Quem escreve esta página nasceu um dia. Agora são exatamente
sete e pouco da manhã. Há névoas lá fora, além da
janela, da Janela Aberta, o grande símbolo. Joana diria: eu
me sinto tão dentro do mundo que me parece não estar
pensando, mas usando de uma nova modalidade de respirar.
Adeus. Isso é o mundo, eu sou eu, está chovendo no mundo,
é mentira, eu sou um trabalhador intelectual, Joana dorme
no quarto, alguém deve estar acordando agora, Joana diria:
outro morrendo, outro ouvindo música, alguém entrou num
banheiro, isto é o mundo. Vou comover todos, chamá-los para
se enternecerem comigo. Vivo com uma mulher nua e fria,
não fugir, não fugir, que me olha bem nos olhos, não fugir,
que me espia, mentira, mentira, mas é verdade. Agora está
deitada dormindo, dorme vencida pelo sono, vencida, vencida.
É um pássaro fino numa camisola branca. Vou comover
todos, não agasalho meus erros, mas que todos me
agasalhem.
Endireitou o busto, alisou o cabelo, ficou sério. Agora ia
trabalhar. Como se todos assistissem e aprovassem com a
cabeça, cerrando os olhos no assentimento: isso, isso mesmo,
muito bem. Alguém real incomodava-o e sozinho ficava solto,
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nervoso. "Todos" pois assistiam-no. Tossiu ligeiramente.
Afastou o tinteiro com cuidado. Começou. "A tragédia
moderna é a procura vã de adaptação do homem ao estado de
coisas que ele criou."
Distanciou-se um pouco, olhou o caderno, endireitou o
pijama. "De tal modo a imaginação é a base do homem —
Joana de novo — que todo o mundo que ele tem construído
encontra sua justificativa na beleza da criação e não na sua
utilidade, não em ser o resultado de um plano de fins
adequados às necessidades. Por isso é que vemos
multiplicarem-se os remédios destinados a unir o homem às
idéias e instituições existentes — a educação, por exemplo,
tão difícil — e vemo-lo continuar sempre fora do mundo que
ele construiu. O homem levanta casas para olhar e não para
nelas morar. Porque tudo segue o caminho da inspiração. O
determinismo não é um determinismo de fins, mas um
estreito determinismo de causas. Brincar, inventar, seguir a
formiga até seu formigueiro, misturar água com cal para ver o
resultado, eis o que se faz quando se é pequeno e quando se é
grande. É erro considerar que chegamos a um alto grau de
pragmatismo e materialismo. Na verdade o pragmatismo — o
plano orientado para um dado fim real — seria a compreensão,
a estabilidade, a felicidade, a maior vitória de
adaptação que o homem conseguisse. No entanto fazer as
coisas "para quê" parece-me, perante a realidade, uma
perfeição impossível de exigir do homem. O início de toda sua
construção é 'porquê'. A curiosidade, o devaneio, a
imaginação — eis o que formou o mundo moderno. Seguindo
a inspiração, misturou ingredientes, criou combinações. Sua
tragédia: ter que se alimentar com elas. Confiou em que
pudesse imaginar numa vida e encontrar-se noutra, aparte.
De fato essa outra continua, mas sua purificação sobre o
imaginado age lentamente e um homem sozinho não encontra
o pensamento tonto de um lado e a paz da vida verdadeira
noutro. Não se pode pensar impunemente." Joana pensava
sem medo e sem castigo. Teria a loucura por fim ou o quê?
Não podia adivinhar. Talvez sofrimento apenas.
Parou, releu. Não sair desse mundo, pensou com certo
91
ardor. Não ter que enfrentar o resto. Só pensar, só pensar e ir
escrevendo. Que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas
que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com
aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando,
expondo-se sem vergonha.
Releu as anotações sobre a leitura anterior. — O
cientista puro deixa de crer no que gosta, mas não pode
impedir-se de gostar do que crê. A necessidade de gostar:
marca do homem. — Não esquecer: *o amor intelectual de
Deus" é o verdadeiro conhecimento e exclui qualquer
misticismo ou adoração. — Muitas respostas encontram-se
em afirmações de Spinoza. Na idéia por exemplo de que não
pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e
vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro:
mortalidade como alma distinta e raciocinante,
impossibilidade clara da forma pura dos anjos de S. Tomaz.
Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela
transformação na natureza. — Dentro do mundo não há
lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de
reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir já
existe. Nada mais pode ser criado senão revelado. — Se,
quanto mais evoluído o homem, mais procura sintetizar,
abstrair e estabelecer princípios e leis para sua vida, como
poderia Deus — em qualquer acepção, mesmo na do Deus
consciente das religiões — não ter leis absolutas pela sua
própria perfeição? Um Deus dotado de livre arbítrio é menor
que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto
mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não
precisa transformar-se diante de cada caso particular. A
perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do
milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um
Deus humanizado das religiões, é ser injusto — milhares de
pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse
milagre — ou reconhecer um erro, corrigindo-o — o que, mais
do que uma bondade ou "prova de caráter", significa ter
errado. — Nem o entendimento nem a vontade pertencem à
natureza de Deus, diz Spinoza . Isso me faz mais feliz e me
deixa mais livre. Porque a idéia da existência de um Deus
consciente nos torna horrivelmente insatisfeitos.
92
No topo do estudo colocaria in litteris Spinoza traduzido:
"Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao
movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em
relação à substância". Mostrara a frase a Joana. Por quê?
Encolheu os ombros, sem procurar mais fundo a explicação.
Ela se mostrara curiosa, quisera ler o livro.
Otávio estendeu a mão e tomou-o. Uma folha de caderno
intercalava suas páginas. Olhou-a e descobriu a letra incerta
de Joana. Inclinou-se com avidez. "A beleza das palavras:
natureza abstrata de Deus. É como ouvir Bach." Por que
preferia que ela não tivesse escrito essa frase? Joana sempre
o encontrava desprevenido. Ele se envergonhava como se ela
estivesse claramente mentindo e ele fosse obrigado a enganála,
dizendo-lhe que acreditava nela...
Ler o que ela escrevera foi como estar diante de Joana.
Evocou-a e, furtando-se aos seus olhos, viu-a nos seus
momentos de distração, o rosto branco, vago e leve. E de
repente grande melancolia desceu sobre ele. Que estou
fazendo afinal? — perguntou-se e nem sabia por que se
agredira tão subitamente. Não, não escrever hoje. E como
essa era uma concessão, uma ordem indiscutível —
perscrutou-se: se quisesse sinceramente poderia trabalhar? e
a resposta foi resoluta: não — e uma vez que a decisão era
mais poderosa que ele, sentiu-se quase alegre. Hoje alguém
lhe dava o descanso. Não Deus. Não Deus, mas alguém.
Muito forte.
Levantar-se-ia, arrumaria os papéis, guardaria o livro,
vestiria uma roupa quente, iria ver Lídia. O conforto da
Ordem. Como seria recebido por Lídia? Diante da janela
aberta, olhando as crianças caminharem para a escola, viu-se
segurar seus ombros, subitamente em cólera, talvez um
pouco forçada, em face daquela mesma pergunta: que estou
fazendo afinal?
— Você não tem medo? — gritara-lhe.
Lídia continuara igual.
— Você não tem medo de seu futuro, de nosso futuro,
93
de mim? Não sabe que... que... sendo apenas minha
amante... só tem lugar ao meu lado?
Ela balançara a cabeça surpreendida, chorosa:
— Mas não...
Ele sacudira-a, longinquamente envergonhado de
mostrar tanta força, quanto junto de Joana, por exemplo,
calava-se.
— Não tem medo de que eu deixe você? Não sabe que se
eu deixar você, você será uma mulher sem marido, sem
nada... Um pobre diabo... que um dia foi abandonada pelo
noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto ele
casava com outra...
— Não quero que você me deixe...
— Ah...
— ...mas não tenho medo...
Olhara-a espantado. Estava emagrecendo, notou . Mas o
aspecto saudável ainda. Apesar de tudo mais nervosa,
facilidade para chorar, para comover-se . De repente puserase
a rir.
— Não sei de que você é feita, juro.
Lídia rira também, contente de que tudo estivesse
acabado. Ele se intimidara com seu olhar radiante, puxara-a
para si a fim de não ver seus olhos. E permaneceram um
instante abraçados, cheios de desejos diferentes.
E agora? Lídia o receberia como sempre. Escreveu um
bilhete a Joana, avisando-lhe que não almoçaria em casa.
Pobre Joana..., poderia ele dizer se quisesse. Jamais saberia.
Tão íntegra na sua altivez ignorante... Mas ele ferozmente a
pouparia, ria ele, o coração batendo. Bem, amanhã escreveria
algo definitivo sobre o artigo.
Olhou-se ao espelho antes de sair, de olhos
entrefechados observou o rosto bem feito, o nariz reto, os
lábios redondos e carnudos. Mas afinal de nada tenho culpa,
disse. Nem de ter nascido. E de repente não compreendeu
94
como pudera acreditar em responsabilidade, sentir aquele
peso constante, todas as horas. Ele era livre... Como tudo se
simplificava às vezes...
Saiu à rua, escolheu demoradamente um saco de
bombons. Terminou comprando um, bastante grande, de
damasco. Quando dobrasse a esquina, chuparia o primeiro
bombom, as mãos nos bolsos. Seus olhos se enterneceram
pensando nisso. Por que não? — perguntou-se de repente
irritado. Quem disse que os grandes homens não comem
bombons? Só que nas biografias ninguém se lembra de
contar isso. Se Joana soubesse desse seu pensamento? Não,
na verdade nunca mostrou ironia para... Teve um momento
de raiva, apressou o passo.
Antes de dobrar a esquina, pegou o saco de bombons e
despejou-os na sarjeta. Angustiado, viu-os misturarem-se à
lama, rolarem até um vão escuro cortado de teias de aranha.
Continuou o caminho mais devagar, encolhido. Fazia
um pouco de frio. Agora alguém deveria estar satisfeito,
pensou longinquamente. Como um castigo, uma confissão.
— Mesmo os grandes homens só são verdadeiramente
reconhecidos e homenageados depois de mortos. Por quê?
Porque os que elogiam precisam se sentir de algum modo
superior ao elogiado, precisam conceder. Depois que... nasce
uma superioridade evidente... quem elogia... conseguiu se
manter... há mesmo certa condescendência... saiu... piedade,
dizia-lhe Otávio.
Lídia observava-o num de seus momentos feios. Os
lábios adelgaçados, a testa enrugada, o olhar estúpido —
Otávio pensava. E amava-o neste instante. Sua feiúra não a
excitava, não lhe causava pena. Simplesmente ligava-se mais
a ele e com maior alegria. Alegria de aceitar inteiramente, de
sentir que unia o que havia de verdadeiro e primitivo em si a
alguém, independente de qualquer das idéias recebidas sobre
beleza. Lembrava-se das antigas colegas — daquelas meninas
sempre vivas, sabendo tudo, tendo ligação com cinemas,
95
livros, namoros, roupas, daquelas moças de quem nunca pudera
aproximar-se de verdade, calada como era, sem ter
propriamente o que dizer. Lembrava-se delas e sabia que
haveriam de achar Otávio feio naquele instante. Pois aceitavao
tanto que desejá-lo-ia pior para provar ainda mais seu amor
sem luta.
Olhava-o sem prestar atenção às suas palavras. Era
doce e bom saber que entre ambos havia segredos tecendo
uma vida fina e leve sobre a outra vida, a real. Ninguém
adivinharia jamais que Otávio a beijara nas pálpebras uma
vez, que ele sentira nos lábios os seus cílios e que sorrira por
isso. E milagrosamente ela compreendera tudo sem que falassem.
Ninguém saberia que um dia tinham se querido tanto
que haviam permanecido mudos, sérios, parados. Dentro de
cada um deles acumulavam-se conhecimentos nunca
devassados por estranhos. Ele fora embora um dia. Mas não
importava tanto. Ela sabia que entre os dois havia "segredos",
que ambos eram irremediavelmente cúmplices. Se fosse embora,
se amasse outra mulher, iria embora e amaria outra
mulher para participar-lhe depois, mesmo que nada lhe
contasse. Lídia tomaria parte na sua vida de qualquer modo.
Certas coisas não acontecem sem conseqüência, pensava
olhando-o. Que se fuja — e nunca se estará livre... Uma vez ia
caindo, ele amparou-a, endireitou seu cabelo num gesto
distraído. Ela agradeceu-lhe com uma ligeira pressão no
braço. Olharam-se com um sorriso e de repente sentiram-se
ofuscantemente felizes... Puseram-se a andar mais depressa,
os olhos abertos deslumbrados.
Talvez ele não se lembrasse disso particularmente. Ela é
quem tinha memória para aquelas coisas. Verdade é que a
qualidade desses acontecimentos era tal, que não se podia
rememorá-los falando . Nem mesmo pensando com palavras.
Só parando um instante e sentindo de novo. Que ele esquecesse.
Na sua alma, porém, restaria certamente qualquer
marca, clara, cor-de-rosa, anotando a sensação e aquela
tarde. Quanto a ela — cada dia que chegava trazia-lhe nas
suas águas mais lembranças de que se alimentar. E aos
poucos uma certeza de felicidade, de fim alcançado, subia-lhe
96
vagarosa pelo corpo, deixando-a satisfeita, quase saciada,
quase angustiada. Quando revia Otávio olhava-o agora sem
grande emoção, achando-o inferior ao que ele lhe dera.
Desejava falar-lhe de sua alegria. Mas vagamente temia ferilo,
como se lhe contasse uma traição com outro homem. Ou
como se quisesse escancarar-lhe sua felicidade — a ele que se
dividia entre duas casas e duas mulheres —, mostrá-la superior
à sua.
Sim, pensava longinquamente, fitando-o — há coisas
indestrutíveis que acompanham o corpo até a morte como se
tivessem nascido com ele. E uma delas é o que se criou entre
um homem e uma mulher que viveram juntos certos
momentos.
E quando seu filho nascesse — alisou o ventre que já se
arredondava — eles três seriam uma pequena família. Pensou
em palavras: uma pequena família. Era isso o que desejava.
Como um bom fim para toda a sua história. Otávio e ela
haviam sido criados juntos, pela prima comum. Vivera perto
de Otávio. Ninguém passara por sua vida senão ele. Nele
descobrira o homem, antes de saber sobre homens e
mulheres. Sem raciocínios, confusamente, reunia a espécie
em Otávio. Vivia-o tanto que nunca sentira os outros senão
como mundos fechados, estranhos, superficiais. Sempre, em
todas as suas fases, perto dele. Mesmo naquele período em
que se tornara sonsa, escondendo tudo o que podia, até o que
não havia necessidade de esconder. Mesmo no outro, em que
a olhavam nas ruas, as colegas aceitavam-na admirando seus
cabelos grossos e bonitos. Otávio seguindo-a com os olhos...
aquela certeza, nunca mais apagada, de que era alguém... Foi
quando compreendeu que não era pobre, que tinha o que dar
a Otávio, que havia um modo de entregar-lhe sua vida, tudo o
que ela fora... Esperara-o. Quando o alcançara, Joana viera e
ele fugira. Continuou esperando. Ele voltara. Um filho
nasceria. Sim, mas antes que nascesse ela reclamaria seus
direitos. "Reclamar seus direitos" parecia-lhe uma frase que
dormia desde sempre dentro dela, à espera. À espera de que
ela tivesse força. Queria que a criança brotasse entre os pais.
E no fundo disso tudo, desejava para si mesma "a pequena
97
família".
Sorriu levemente, ouvindo Otávio discorrer sobre
qualquer coisa de que ela nem sabia o começo. Desde que o
feto começara a se formar dentro de si, perdera certos
trejeitos, ganhara outros, ousava avançar em certos
pensamentos. Parecia-lhe que até então vivera mentindo.
Seus movimentos eram mais libertos do corpo, como se agora
houvesse mais espaço no mundo para o seu ser. Havia de
cuidar da criança e de Otávio, ora se havia. . . Recostou-se
melhor na poltrona, o bordado escorregou para o tapete.
Entrecerrou os olhos e o ventre assim crescia, farto,
brilhante. Abandonou-se ao bem-estar, certa preguiça que a
dominava agora freqüentemente. Não tivera o menor enjôo,
nem no princípio. E sabia que seu parto seria simples,
simples como tudo. Pousou a mão sobre os flancos ainda não
deformados. De algum modo desprezava bastante as outras
mulheres.
Otávio surpreendeu sua expressão, assustado. Uma
crueldade distraída... Perscrutou-a, sem conseguir decifrá-la,
compreendendo apenas que estava excluído daquele semisorriso.
Porque era um sorriso, um sorriso horrível, satisfeito,
apesar dela conservar o rosto sério, os olhos abertos, olhando
para diante. O temor assaltou-o, quase gritou:
— Você nem estava ouvindo!
Lídia afastou o corpo da cadeira com um sobressalto,
novamente dele, novamente entregue:
— Eu...
— Nem ao menos me compreendeu, repetiu fitando-a, a
respiração opressa. A cena da última vez se repetiria? Não,
havia um filho dentro dela. Por que terei eu um filho? Por que
eu? Exatamente eu? É estranho... Perguntar-se-ia daí a um
instante: o que estou fazendo afinal? Não, não...
— Mas eu faço mais do que te compreender, disse ela
apressada, eu te amo...
Ele suspirou imperceptivelmente, ainda com um pouco
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do susto que lhe provocara a fuga da mulher. Verdade é que
ela não voltava mais inteiramente, como antes da gravidez. E
ele mesmo lhe dera o reinado, o tolo... Sim, mas quando ela
se libertasse da criança, quando ela se libertasse da criança...
Poucos minutos depois, já serenado, Otávio se deixava
invadir pelo abandono e pela moleza que tão bem
sustentavam suas relações com Lídia.


O ENCONTRO DE OTÁVIO


A NOITE DENSA e escura foi cortada ao meio, separada em
dois blocos negros de sono. Onde estava? Entre os dois
pedaços, vendo-os — o que já dormira e o que ainda iria
dormir —, isolada no sem-tempo e no sem-espaço, num
intervalo vazio. Esse trecho seria descontado de seus anos de
vida.
O teto e as paredes uniam-se sem arestas, caladas, de braços
cruzados, e ela estava dentro de um casulo. Joana espiou-o
sem pensamentos, sem emoção, uma coisa olhando para
outra coisa. Aos poucos, de um movimento com a perna,
nasceu-lhe longinquamente a consciência misturada a um
gosto de sono na boca, estirando-se, depois por todo o corpo.
O luar empalidecia o quarto, a cama. Um momento, mais um
momento, mais um momento, mais um momento. De
repente, como um pequeno raio, alguma coisa acendeu
dentro dela, disse rapidamente sem mover um só músculo do
rosto: olhe para o lado. Continuou fixando o teto, aparentemente
sem ligar sequer, mas o coração batendo assustado.
Olhe para o lado. Adivinhava que terminaria olhando,
vagamente sabia o que havia ao lado, mas agia como se não
pretendesse olhar, como se ignorasse o resto da cama. Olhe
para o lado. Então vencida, diante de uma multidão de caras
assistindo à cena lá do palco, voltou lentamente a cabeça
sobre o travesseiro e espiou. Lá estava um homem.
Compreendeu que esperara exatamente isto.
O peito nu, os braços abertos, crucificado. Ajeitou a
cabeça na posição antiga. Bem, já espiei. Mas logo em
99
seguida levantou o corpo e apoiada sobre o próprio cotovelo
fitou-o, talvez sem curiosidade, porém exigente, esperando
uma resposta. Ou atendendo a que as caras impassíveis
aguardavam esse gesto. Lá estava um homem. Quem era? A
pergunta nasceu leve, já perdida, ia carregada como uma
pobre folha pelas ondas escuras. Mas antes que Joana
pudesse esquecê-la inteiramente, viu-a crescer de
importância, apresentar-se como nova e urgente, a voz
debruçada sobre ela: quem era?
Impacientou-se, cansada da insistência da multidão de
faces que, em lugar de brinquedo a dirigir, agora exigia, agora
exigia. Quem era? Um homem, um macho respondeu. Mas
seu homem, aquele estranho. Olhou-o no rosto, um rosto
cansado de criança dormindo. Os lábios entreabertos. As pupilas,
sob as grossas pálpebras descidas, voltadas para
dentro, mortas. Tocou-o no ombro de leve e antes mesmo que
recebesse alguma impressão, recuou rápida, assustada.
Parou um pouco, sentindo o próprio coração ressoar no peito.
Ajeitou a camisola, dando-se tempo para recuar se ainda quisesse.
Porém continuou. Aproximou seu braço claro do braço
nu daquela criatura e, embora já previsse o pensamento que
se seguiu, estremeceu tocada pela diferença violenta de cor,
tão firme e audaciosa como um grito. Havia dois corpos
limitados sobre a cama. E dessa vez não podia queixar-se de
se conduzir consciente à tragédia: o pensamento impusera-se
sem que ela o tivesse escolhido. E se ele acordasse e a
surpreendesse inclinada sobre ele? Se abrisse os olhos
subitamente, estes se encontrariam tão de frente com os
seus, as duas luzes cruzando-se com as outras duas luzes...
Retirou-se depressa, encolheu-se dentro de si mesma, cheia
de medo, daquele temor inconfessado das antigas noites sem
chuva, na escuridão sem sono. Quantas vezes terei que viver
as mesmas coisas em situações diversas? Imaginou aqueles
olhos como duas placas de cobre, brilhando sem expressão.
Que voz poderia sair daquela garganta adormecida? Sons
como setas grossas cravando-se nos móveis, nas paredes,
nela própria maciamente. E todos também de braços cruzados,
olhar varando o espaço longe. Implacavelmente.
Badaladas de relógio só terminam quando terminam, nada há
100
a fazer. Ou joga-se uma pedra em cima, e depois do barulho
de vidros e molas quebradas, o silêncio derramando-se de
dentro como sangue. Por que não matar o homem? Tolice,
esse pensamento era inteiramente forjado. Olhou-o. Medo de
que "aquilo" tudo, como ao aperto de um botão — bastaria
tocá-lo — começasse a funcionar ruidosa, mecanicamente,
enchendo o quarto de movimentos e de sons, vivendo. Teve
medo do próprio medo, que a deixava isolada. Enxergou de
longe do alto da lâmpada apagada, a si mesma, perdida e
miúda, coberta de luas, junto do homem que podia viver a
qualquer momento.
E subitamente, traiçoeiramente, teve um medo real, tão
vivo como as coisas vivas. O desconhecido que havia naquele
animal que era seu, naquele homem que ela só soubera amar!
Medo no corpo, medo no sangue! Talvez ele a estrangulasse, a
assassinasse... Por que não? — assustou-se — a audácia com
que seu próprio pensamento avançava, guiando-a como uma
luzinha móvel e trêmula através do escuro. Para onde ia? Mas
por que Otávio não a estrangularia? Não estavam sós? E se
ele estivesse louco sob o sono? — Estremeceu. Teve um
movimento involuntário com as pernas, afastou os lençóis,
pronta para se defender, para fugir. . . Ah, se gritasse não
teria medo, o medo fugiria com o grito... Otávio respondeu ao
seu movimento erguendo por sua vez as sobrancelhas,
apertando os lábios, abrindo-os de novo e continuando morto!
Ela olhava-o, olhava-o... esperava...
Não, não era perigoso. Passou as costas da mão pela
testa.
Havia ainda o silêncio, o mesmo silêncio.
Talvez, quem sabe, tivesse vivido um pouco de sonho
misturado com a realidade, pensou. Procurou rememorar o
dia passado. Nada de importante, senão o bilhete de Otávio
avisando que almoçaria fora, como vinha acontecendo quase
regularmente, há tempos. Ou o medo fora mais do que uma
alucinação? O quarto era agora nítido e frio. Repousou de
olhos cerrados. Felizmente eram raras as noites de pesadelo.
101
Que tola tinha sido. Aproximou a mão, tentou tocá-lo.
Deixou a palma estirada sobre o seu peito, a princípio de leve,
quase flutuante, mas vencendo-se aos poucos. Depois de
momento a momento mais confiante, abandonou-a
inteiramente sobre aquele largo campo que uma vegetação
ligeira cobria. Os olhos abertos, sem ver, toda a atenção
voltada para si própria e para o que sentia.
Um móvel estalou, as sombras agarraram-se mais
firmes no guarda-roupa.
Então nasceu-lhe uma idéia. Uma idéia tão quente que o
coração acompanhou-a com pancadas fortes. Assim:
aproximou-se dele, aninhou com cuidado a cabeça no seu
braço, junto de seu peito. Ficou parada, à espera. Aos poucos
sentiu o calor do estranho transmitindo-se a ela mesma pela
nuca. Ouviu o bater ritmado, longínquo e sério de um coração.
Perscrutou-se atenta. Aquele ser vivo era seu. Aquele
desconhecido, aquele outro mundo era seu. Via-o de longe, do
alto da lâmpada, o corpo nu — perdido e fraco. Fraco. Como
eram frágeis e delicadas suas linhas descobertas, sem
proteção. Ele, ele, o homem. De uma fonte oculta veio-lhe
subindo pelo corpo a angústia, enchendo-lhe todas as
células, empurrando-a desamparada para o fundo da cama.
Meu Deus, meu Deus. Depois, num parto doloroso, sob a
respiração difícil, sentiu o óleo macio da renúncia derramarse
dentro de si, enfim, enfim. Ele era seu.
Desejou chamá-lo, pedir-lhe apoio, pedir-lhe que
dissesse palavras de apaziguamento. Mas não queria acordálo.
Temia que ele não soubesse fazê-la subir para uma
sensação mais alta, para a realização daquilo que agora era
ainda um doce embrião. Sabia que mesmo nesse momento
estava sozinha, que o homem acordaria distante. Que ele
poderia interceptar-lhe com um bloco — uma palavra
distraída e morna — o estreito e luminoso caminho onde tropeçava
nos primeiros passos. No entanto imaginá-lo
ignorante do que se passava dentro dela não diminuía sua
ternura. Aumentava-a, fazia-a maior que seu corpo e sua
alma como para compensar a distância do homem.
102
Joana sorria, mas não podia evitar que o sofrimento
começasse a lhe palpitar em todo o corpo, como uma sede
amarga. Mais que sofrimento, um desejo de amor crescendo e
dominando-a. Dentro de um vago e leve turbilhão, como uma
rápida vertigem, veio-lhe a consciência do mundo, de sua
própria vida, do passado aquém de seu nascimento, do futuro
além de seu corpo. Sim, perdida como um ponto, um ponto
sem dimensões, uma vez, um pensamento. Ela nascera, ela
morreria, a terra... Veloz, profunda a sensação: um mergulho
cego numa cor — vermelha, serena e larga como um campo.
A mesma consciência violenta e instantânea que a assaltava
às vezes nos grandes instantes de amor, como a um afogado
que vê pela última vez.
— Meu... — começou baixo.
Mas tudo o que ela pudesse dizer não bastava. Ela
estava vivendo, vivendo. Espiou-o. Como ele dormia, como
existia. Nunca o sentira tanto. Quando se unira a ele, nos
primeiros tempos de casada, o deslumbramento lhe viera de
seu próprio corpo descoberto. A renovação fora sua, ela não
transbordara até o homem e continuara isolada. Agora
subitamente compreendia que o amor podia fazer com que se
desejasse o momento que vem num impulso que era a vida...
— Sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe
o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as
mulheres.
Silenciou de novo olhando para dentro de si. Lembrouse:
sou a onda leve que não tem outro campo senão o mar,
me debato, deslizo, vôo, rindo, dando, dormindo, mas ai de
mim, sempre em mim, sempre em mim. De quando era
aquilo? Lido em criança? Pensado? De súbito recordou-se:
ainda agora pensara-o, talvez antes de encostar o braço no de
Otávio, talvez naquele momento em que tivera vontade de
gritar... Cada vez mais tudo era passado ... E o passado tão
misterioso como o futuro...
Sim... e também vira, rapidamente como um carro
silencioso em disparada, aquele homem que ela encontrava
às vezes na rua... aquele homem que a fitava mudo, magro e
103
afiado como uma faca. Já o sentira naquela noite de leve,
encostando na sua consciência como a cabeça de um
alfinete... como um pressentimento... mas em que momento?
No sonho? Na vigília? Um novo fluxo de dor e de vida cresceu,
inundou-a, com a angústia da prisão.
— Eu... — recomeçou tímida para Otávio.
Estava mais escuro, ela não o via senão como uma sombra.
Ele se apagava cada vez mais, escorregava-lhe por entre as
mãos, morto no fundo do sono. E ela, solitária como o tic-tac
de um relógio numa casa vazia. Esperava sentada sobre a
cama, os olhos engrandecidos, o frio da madrugada próxima
atravessando-lhe a camisa fina. Sozinha no mundo, esmagada
pelo excesso de vida, sentindo a música vibrar alta
demais para um corpo.
Mas a libertação veio e Joana tremeu ao seu impulso...
Porque, branda e doce como um amanhecer num bosque,
nasceu a inspiração... Então ela inventou o que deveria dizer.
Os olhos fechados, entregue, disse baixinho palavras
nascidas naquele instante, nunca antes ouvidas por alguém,
ainda tenras da criação — brotos novos e frágeis. Eram
menos que palavras, apenas sílabas soltas, sem sentido,
mornas, que fluíam e se entrecruzavam, fecundavam-se,
renasciam num só ser para desmembrarem-se em seguida,
respirando, respirando...
Seus olhos se umedeceram de alegria suave e de
gratidão. Falara... As palavras vindas de antes da linguagem,
da fonte, da própria fonte. Aproximou-se dele, entregando-lhe
sua alma e sentindo-se no entanto plena como se tivesse
sorvido um mundo. Ela era como uma mulher.
As árvores escuras do jardim vigiavam secretamente o
silêncio, ela bem sabia, bem sabia... Adormeceu.


LÍDIA


A MANHÃ SEGUINTE era de novo como um primeiro dia,
sentiu Joana.
104
Otávio saíra cedo e ela o abençoava por isso como se ele
lhe tivesse concedido intencionalmente tempo para pensar,
para observar-se. Ela não queria precipitar-se em nenhuma
atitude, sentia que qualquer de seus movimentos poderia
tornar-se precioso e perigoso.
Foram instantes, horas rápidas apenas. Porque ela
recebeu o bilhete de Lídia convidando-a a visitá-la.
Sua leitura fizera Joana sorrir antes mesmo de provocar
aquelas rápidas e pesadas batidas do coração. E também a
lâmina fria de aço encostando no interior morno do corpo.
Como se sua tia morta ressurgisse e lhe falasse, Joana
imaginou-lhe o susto, sentiu seus olhos abertos — ou seriam
os seus próprios olhos a quem ela não permitia surpresas? —
: Otávio voltou para Lídia, apesar de Joana? — diria a tia.
Joana alisou os cabelos vagamente, a lâmina fria
encostada ao coração quente, sorriu de novo, oh só para
ganhar tempo. Mas sim, por que não continuar com Lídia? —
respondeu à tia morta. A lâmina agora, a esse pensamento
claro, oprimiu-lhe rindo os pulmões, gelada. Por que recusar
acontecimentos? Ter muito ao mesmo tempo, sentir de várias
maneiras, reconhecer a vida em diversas fontes... Quem
poderia impedir a alguém viver largamente?
Mais tarde caiu num estado de estranha e leve
excitação. Deslizou pela casa sem destino, chorou mesmo um
pouco, sem grande sofrimento, só por chorar — convenceu-se
— simplesmente, como quem acena com a mão, como quem
olha. Estou sofrendo?
— indagava-se às vezes e de novo quem pensava enchia toda
ela de surpresa, curiosidade e orgulho e não restava lugar
para quem sofrer. Mas sua fina exaltação não lhe permitiu
continuar num mesmo plano durante muito tempo. Passou
logo a outro tom de comportamento, tocou um pouco de
piano, esqueceu a carta de Lídia. Quando dela se lembrava,
vagamente, um pássaro que vem e volta, não sabia decidir-se,
se ficar triste ou alegre, se calma ou agitada. Lembrava-se
continuamente da noite anterior, a vidraça erguida brilhava
serenamente à lua, do peito nu de Otávio, da Joana que
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adormecera profundamente, quase pela primeira vez na vida,
confiando-se a um homem que dormia ao seu lado. Na
verdade não se distanciara da Joana cheia de ternura da véspera.
Envergonhada, humilde e rejeitada, essa vagara até
voltar e Joana estava cada vez mais dura, mais concentrada e
cada vez mais perto de si mesma — julgava. Até melhor. Só
que o aço frio se renovava sempre, nunca esquentava.
Sobretudo, no fundo de qualquer pensamento pairava um
outro, perplexo, quase encantado, como no dia da morte do
pai: aconteciam coisas sem que ela as inventasse...
De tarde pôde enfim observar Lídia e soube que estava
tão longe dela como da mulher da voz. Olhavam-se e não
podiam se odiar ou mesmo se repelir. Lídia falara, pálida e
discreta, sobre vários assuntos sem interesse para nenhuma
das duas. Sua gravidez nascente boiava por toda a sala,
enchia-a, penetrava Joana. Até aqueles móveis apagados,
com os paninhos de crochê, pareciam guardar-se no mesmo
segredo quase revelado, na mesma espera de um filho. Os
olhos abertos de Lídia eram sem sombras. Que mulher bela.
Os lábios cheios mas pacíficos, sem estremecimentos, como
de alguém que não tem receio do prazer, que o recebe sem
remorsos. Que poesia seria a base de sua vida. Que diria
aquele murmúrio que ela adivinhava no interior de Lídia? A
mulher da voz multiplicava-se em inúmeras mulheres... Mas
onde estava afinal a divindade delas? Até nas mais fracas
havia a sombra daquele conhecimento que não se adquire
com a inteligência. Inteligência das coisas cegas. Poder da
pedra que tombando empurra outra que vai cair no mar e
matar um peixe. Às vezes encontrava-se o mesmo poder em
mulheres apenas ligeiramente mães e esposas, tímidas
fêmeas do homem, como a tia, como Armanda. No entanto
aquela força, a unidade na fraqueza... Oh, estava exagerando
talvez, talvez a divindade das mulheres não fosse específica,
estivesse apenas no fato de existirem. Sim, sim, aí estava a
verdade: elas existiam mais do que os outros, eram o símbolo
da coisa na própria coisa. E a mulher era o mistério em si
mesmo, descobriu. Havia em todas elas uma qualidade de
matéria-prima, alguma coisa que podia vir a definir-se mas
que jamais se realizava, porque sua essência mesma era a de
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"tornar-se". Através dela exatamente não se unia o passado
ao futuro e a todos os tempos?
Lídia e Joana calaram um longo momento. Não se
sentiam propriamente juntas, mas sem necessidade de
palavras, como se na realidade se tivessem encontrado
apenas para se olhar e retirar-se então. A estranheza da
situação tornou-se mais nítida quando as duas mulheres
sentiram que não estavam lutando. Em ambas houve um
movimento de impaciência, ainda havia um dever a cumprir.
Joana afastou-o, subitamente saciada:
— Bem — o tom da própria voz acordou-a
desagradavelmente —, creio que está finda a entrevista.
Lídia assombrou-se. Mas como? pois se nada tinham
dito! Sobretudo, repugnava-lhe a idéia de uma coisa
inacabada:
— Nós nada dissemos ainda... E precisamos falar...
Joana sorriu. Nesse sorriso começou a agir, não com
força — o cansaço — mas exatamente como eu a
impressionaria. Que tolice estou pensando afinal?
— Não sente — disse Joana — que nos afastamos do
motivo que nos reuniu? Se falássemos nele seria pelo menos
agora sem interesse nem ardor... Deixemos tudo para outro
dia.
Por um instante a figura do homem apareceu-lhes
apagada, inoportuna. Mas Lídia sabia que mal aquela mulher
desaparecesse, desapareceria também a inércia e o torpor em
que ela a deixara, tirando- lhe a vontade de se mover. E de
novo desperta, quereria o filho. A pequena família. Fazia
esforço por sair daquele sono, por abrir os olhos e lutar.
— É absurdo perdermos essa ocasião...
Sim, compremos o artigo, compremos o artigo. Minha
moleza vem de que me preparei demais para a festa. Joana
riu novamente, sem alegria.
— Sei que nada posso esperar de sua parte, retomou a
grávida subitamente com força — uma nuvem destapando o
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sol, tudo rebrilhando de novo, insuflado de vida. Também
Joana se aclarou, sentiu a nuvem descobrindo o sol, tudo
borbulhando levemente de mãos dadas numa roda suave,
como de crianças.
— Conheço-a bem, continuou Lídia. As palavras caíram
serenamente enfaradas no lago, depositavam-se no seu
fundo, sem conseqüência.
Mas de repente a moça se empurrou e à sua gravidez,
num último esforço para despertar:
— Conheço-a, sei quanto é firme sua maldade. Agora a
sala revivia.
— Ah, sabe?
Sim, revivia, acordou Joana. Que estou dizendo? Como ouso
vir aqui? Estou longe, longe. Basta olhar para essa mulher
para compreender que não se poderia gostar de mim. O aço
encostou subitamente em seu coração. Ah, o ciúme, era isso
o ciúme, a mão fria amassando-a lentamente, apertando-a,
diminuindo sua alma. Comigo acontece o seguinte ou senão
ameaça acontecer: de um momento para outro, a certo
movimento, posso me transformar numa linha. Isso! numa
linha de luz, de modo que a pessoa fica só a meu lado, sem
poder me pegar e à minha deficiência. Enquanto Lídia tem
vários planos. A cada gesto revela-se outro aspecto de sua
dimensão. Ao seu lado ninguém escorrega e se perde, porque
se apóia sobre seus seios — sérios, plácidos, pálidos,
enquanto os meus são fúteis — ou sobre sua barriga onde até
um filho cabe. Não exagerar sua importância, em todos os
ventres de mulheres pode nascer um filho. Como é bela e é
mulher, serenamente matéria-prima, apesar de todas as
outras mulheres. O que há no ar? estou sozinha. Os lábios
grandes de Lídia, de linhas vagarosas, tão bem pintados de
claro, enquanto eu de batom escuro, sempre escarlate,
escarlate, escarlate, o rosto branco e magro. Esses seus olhos
castanhos, enormes e tranqüilos, talvez nada tenham a dar,
mas recebem tanto que ninguém poderia resistir, muito
menos Otávio. Sou um bicho de plumas. Lídia de pêlos,
Otávio se perde entre nós, indefeso. Como escapar ao meu
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brilho e à minha promessa de fuga e como escapar à certeza
dessa mulher? Nós duas formaríamos uma união e
forneceríamos à humanidade, sairíamos de manhã cedo de
porta em porta, tocaríamos a campainha: qual é que a
senhora prefere: meu ou dela? e entregaríamos um filhinho.
Compreendo por que Otávio não se desligou de Lídia: ele está
sempre disposto a se lançar aos pés daqueles que andam
para frente. Nunca vê um monte sem enxergar apenas sua
firmeza, nunca vê uma mulher de busto grande sem pensar
em deitar a cabeça sobre ele. Como sou pobre junto dela, tão
segura. Ou me acendo e sou maravilhosa, fugazmente
maravilhosa, ou senão obscura, envolvo-me em cortinas.
Lídia, o que quer que seja, é imutável, sempre com a mesma
base clara. As minhas mãos e as dela. As minhas — esboçadas,
solitárias, traços lançados para a frente e para trás,
descuido e rapidez num pincel molhado em tinta brancotriste,
estou sempre levando a mão à testa, sempre
ameaçando deixá-las no ar, oh como sou fútil, só agora
compreendo. As de Lídia — recortadas, bonitas, cobertas por
uma pele elástica, rosada, amarelada, como uma flor que vi
em alguma parte, mãos que repousam em cima das coisas,
cheias de direção e sabedoria. Eu toda nado, flutuo, atravesso
o que existe com os nervos, nada sou senão um desejo, a
raiva, a vaguidão, impalpável como a energia. Energia? mas
onde está minha força? na imprecisão, na imprecisão, na
imprecisão... E vivificando-a, não a realidade, mas apenas o
vago impulso para diante. Quero deslumbrar Lídia, tornar a
conversa algo estranho, fino, escapando, mas não, mas sim,
não, mas por que não? Lembrou-se subitamente de Otávio,
mexendo e soprando a xícara de café para esfriá-la, o ar sério,
interessado e ingênuo. Surpreender Lídia, sim, arrastá-la...
Como naquele tempo do internato, quando subitamente
precisava pôr à prova seu poder, sentir a admiração das colegas,
com quem geralmente pouco falava. Então representava
friamente, inventando, brilhando como numa vingança. Do
silêncio em que se escondia, saía para a luta:
— Olhem aquele homem... Toma café com leite de
manhã, bem devagar, molhando o pão na xícara, deixando
escorrer, mordendo-o, levantando-se depois pesado, triste...
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As colegas olhavam, viam um homem qualquer e no
entanto, apesar de surpreendidas e intencional- mente
distantes a princípio, no entanto... era milagrosamente exato!
Elas chegavam a ver o homem se levantando da mesa... a
xícara vazia... algumas moscas... Joana continuava a ganhar
tempo, a avançar, os olhos acesos:
— E aquele outro... De noite tira com esforço os
sapatos, joga-os longe, suspira, diz: o que importa é não
desanimar, o que importa é não desanimar...
As mais fracas murmuravam já sorridentes, dominadas:
é mesmo... como é que você sabe? As outras retraíam-se.
Porém terminavam ao redor de Joana, esperando que ela lhes
mostrasse mais alguma coisa. Seus gestos a essa altura se
tornavam leves, febris, e inspirada cada vez mais tocava em
todas:
— Vejam os olhos daquela mulher... redondos,
transparentes, tremem, tremem, de um instante para outro
podem cair numa gota d'água...
— E aquele olhar? — às vezes Joana era mais
audaciosa, encontrando súbita timidez naquelas meninas que
liam certos livros nos corredores da escola. E aquele olhar?
de quem busca prazer onde quer que o encontre...
As colegas riam, mas aos poucos nascia alguma coisa de
inquieto, doloroso e incômodo na cena. Elas terminavam por
rir demais, nervosas e insatisfeitas. Joana, animada, subia
sobre si mesma, prendia as moças à sua vontade e à sua
palavra, cheia de uma graça ardente e cortante como ligeiras
chicotadas. Até que, finalmente envoltas, elas aspiravam o
seu brilhante e sufocante ar. Numa súbita saciedade, Joana
parava então, os olhos secos, e corpo trêmulo sobre a vitória.
Desamparadas, sentindo o rápido afastamento de Joana e
seu desprezo, também elas tombavam murchas, como
envergonhadas. Alguma dizia antes de se dispersarem,
cansadas umas das outras:
— Joana fica insuportável quando está alegre...
Lídia corou. O "Ah, sabe?" de Joana soara tão curto,
110
distraído e curioso, tão longe da emoção de Lídia.
— Não tem importância, não tem importância — tentou
Joana apaziguá-la. É claro que você não pode saber o que é
maldade. Então vai ter um filho..., continuou. Quer Otávio, o
pai. É compreensível. Por que não trabalha para sustentar o
guri? Certamente você estava esperando de mim grandes
bondades, apesar do que disse agora sobre minha maldade.
Mas a bondade me dá realmente ânsias de vomitar. Por que
não trabalha? Assim não precisaria de Otávio. Não estou
disposta a lhe ceder exatamente tudo. Mas me conte antes
seu romance com Otávio, me conte como conseguiu que ele
voltasse para você. Ou melhor: o que ele pensa de mim. Diga
sem medo. Eu o faço muito infeliz?
— Não sei, não tocamos no seu nome.
Eu estava então sozinha? e essa alegria de dor, o aço
franzindo minha pele, esse frio que é ciúme, não, esse frio
que é assim: ah, andaste tudo isso? pois tens que voltar. Mas
dessa vez não recomeçarei, juro, nada reconstruirei, ficarei
atrás como uma pedra lá longe, no começo do caminho. Há
qualquer coisa que roda comigo, roda, roda, me atordoa, me
atordoa, e me deposita tranqüilamente no mesmo lugar.
Dirigiu-se à grávida:
— Não é possível... Ele não se libertaria tão facilmente.
— Mas ele de certo modo detesta você! — gritara Lídia.
Ah, bem.
— Você também sente isso? — perguntara Joana. —
Sim, sim... Não é ódio somente, apesar de tudo. — A noite de
ontem, minha ternura, não importa, no fundo eu sabia que
estava só, nem ao menos fui enganada, porque sabia, sabia.
— E se fosse medo também?
— Medo? Não compreendo, surpreendia-se Lídia, medo
de quê?
— Talvez porque eu seja infeliz, medo de se aproximar.
Talvez seja isso: medo de ter que sofrer também...
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— É infeliz? — indagara a outra baixo.
— Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver
com a maldade, rira Joana. — O que houve afinal? Não estou
presente, não estou presente, o que houve, o cansaço,
vontade de sair chorando. Eu sei, eu sei: gostaria de passar
pelo menos um dia vendo Lídia andar da cozinha para a sala,
depois almoçando ao seu lado numa sala quieta — algumas
moscas, talheres tilintando —, onde não entrasse calor,
vestida num largo e velho robe florido. Depois, de tarde,
sentada e olhando-a coser, dando-lhe aqui e ali uma pequena
ajuda, a tesoura, a linha, à espera da hora do banho e do
lanche, seria bom, seria largo e fresco. Será um pouco disso o
que sempre me faltou? Por que é que ela é tão poderosa? O
fato de eu não ter tido tardes de costura não me põe abaixo
dela, suponho. Ou põe? Põe, não põe, põe, não põe.
Eu sei o que quero: uma mulher feia e limpa, com seios
grandes, que me diga: que história é essa de inventar coisas?
nada de dramas, venha cá imediatamente! — E me dê um
banho morno, me vista uma camisola branca de linho, trance
meus cabelos e me meta na cama, bem zangada, dizendo: o
que então? fica aí solta, comendo fora de hora, capaz de pegar
uma doença, deixe de inventar tragédias, pensa que é grande
coisa na vida, tome essa xícara de caldo quente. Me levanta a
cabeça com a mão, me cobre com um lençol grande, afasta
alguns fios de cabelo de minha testa, já branca e fresca, e me
diz antes de eu adormecer mornamente: vai ver como em
pouco tempo engorda esse rosto, esquece as maluquices e
fica uma boa menina. Alguém que me recolha como a um cão
humilde, que me abra a porta, me escove, me alimente, me
queira severamente como a um cão, só isso eu quero, como a
um cão, a um filho.
— Você gostaria de estar casada — casada de verdade
— com ele? — indagou Joana.
Lídia olhara-a rapidamente, procurava saber se havia
sarcasmo na pergunta:
— Gostaria.
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— Por quê? — surpreendeu-se Joana. Não vê que nada
se ganha com isso? Tudo o que há no casamento você já tem
— Lídia corou, mas eu não tinha malícia, mulher feia e limpa.
— Aposto como você passou toda a vida querendo casar.
Lídia teve um movimento de revolta: era tocada bem na
ferida, friamente.
— Sim. Toda mulher... — assentiu.
— Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me
casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que
não casei... Julgava mais ou menos isso: o casamento é o fim,
depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine:
ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. —
Meu Deus! — não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser
uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino
traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava:
nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta
consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que
a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E
mesmo o cansaço da vida ter certa beleza quando é suportado
sozinha e desesperada — eu pensava. Mas a dois, comendo
diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria
derrota na derrota do outro... Isso sem contar com o peso dos
hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do leito comum,
da mesa comum, da vida comum, preparando e
ameaçando a morte comum. Eu sempre dizia: nunca.
— Por que casou? — indagava Lídia.
— Não sei. Só sei que esse "não sei" não é uma
ignorância particular, em relação ao caso, mas o fundo das
coisas. — Estou fugindo da questão, daqui a pouco ela me
olhará daquele jeito que eu já conheço. — Casei certamente
porque quis casar. Porque Otávio quis casar comigo. É isso,
é isso: descobri: em lugar de pedir para viver comigo sem
casamento, sugeriu-me outra coisa. Aliás daria no mesmo. E
eu estava tonta, Otávio é bonito, não é?
Não me lembrei de mais nada. — Pausa — Como é que
você o quer: com o corpo?
113
— Sim, com o corpo — balbuciara Lídia.
— É amor.
— E você? — atreveu-se Lídia.
— Não tanto.
— Mas ele me disse, ao contrário...
Lídia interrompera-se. Olhava-a com cuidado. Como
Joana parecia inexperiente. Falava do amor com tanta
simplicidade e clareza porque certamente nada ainda lhe
tinha sido revelado através dele. Ela não caíra nas suas
sombras, ainda não sentira suas transformações profundas e
secretas. Senão teria, como ela própria, quase vergonha de
tanta felicidade, manter-se-ia vigilante à sua porta,
protegendo da luz fria aquilo que não deveria crestar-se para
continuar a viver. No entanto aquela vivacidade de Joana... o
que compreendera através de Otávio... que existia vida dentro
dela... Mas seu amor não abrigava, nem a Joana mesma,
sentiu Lídia. Inexperiente, íntegra, intocada, podia confundirse
com uma virgem. Lídia olhava-a e tentava explicar-se o que
havia de oscilante e lúcido naquele rosto. Certamente o amor
não a ligava nem mesmo ao amor. Enquanto ela própria,
Lídia, quase um instante após o primeiro beijo, transformarase
em mulher.
— Sim, sim, mas nada altera, prosseguia Joana serena.
Eu o quero também mais friamente, como a uma criatura,
como a um homem. — Será que ela vai olhar daquele jeito
medroso, assombrado, reverente: oh, por que você fala em
coisas difíceis, por que empurra coisas enormes num
momento simples, me poupe, me poupe. Mas dessa vez tenho
culpa, porque realmente nem sei o que pretendia dizer. Porém
é assim que eu a vencerei. Lídia hesitava:
— Isso não é mais do que amor?
— Pode ser, disse Joana surpresa. O que importa é que
já não é amor. — E de repente eis que vem o cansaço, o
grande "para quê" me envolvendo, e eu sei que vou dizer
alguma coisa. — Fique com Otávio. Tenha seu filho, seja feliz
114
e me deixe em paz.
— Sabe o que está dizendo? — gritara a outra.
— Sei, é claro.
— Não gosta dele...
— Gosto. Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou
das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde
pequena. Talvez se eu gostasse realmente com o corpo...
Talvez me ligasse mais... — São confidencias, Deus meu.
Agora vou dizer assim: — Otávio foge de mim porque eu não
trago paz a ninguém, dou aos outros sempre a mesma taça,
faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu
tinha, agora é que a desejo.
— Mesmo assim... acho — ninguém pode se lamentar...
Nem Otávio... suponho que nem eu... — Lídia não soubera
explicar, quedara-se vaga, as mãos não pousavam sobre as
coisas.
— O quê?
— Não sei. — Olhava para Joana e procurava alguma
coisa no seu rosto, intrigada, movendo a cabeça.
— O que é? — repetiu Joana.
— Não consigo compreender.
Joana enrubesceu de leve:
— Também eu. Nunca penetrei no meu coração.
Alguma coisa estava dita.
Joana caminhou até a janela, espiou o jardim onde
brincaria o filho de Lídia, que estava agora no ventre de Lídia,
que seria alimentado pelos seios de Lídia, que seria Lídia. Ou
Otávio, fruto verde? Não, Lídia, a que se transmite. Se a
abrissem ao meio — ruído de folhas frescas se partindo —
veriam-na como uma romã aberta, sadia e rosada,
translúcida como olhos claros. A base de sua vida era mansa
como um regato correndo no campo. E nesse campo ela
própria se movia segura e serena como um animal a pastar.
115
Comparou-a com Otávio, para quem a vida nunca passaria de
uma estreita aventura individual. E com ela mesma, usando
os outros para fundo sombrio onde se recortasse sua figura
brilhante e alta. A poesia de Lídia: só este silêncio é minha
prece, Senhor, e não sei dizer mais; sou tão feliz em sentir
que me calo para sentir mais; foi em silêncio que nasceu em
mim uma teia de aranha tenra e leve: esta suave
incompreensão da vida que me permite viver. Ou era tudo
mentira? Oh, Deus, quando mais precisava agir perdia-se em
pensamentos inúteis. Tudo certamente mentira, era até possível
que Lídia fosse muito menos pura do que imaginava.
Mas mesmo assim receava continuar ao seu lado, olhá-la sem
querer com um pouco de força, fazer com que ela tomasse
consciência de si própria. Preservá-la, não transformar sua
cor, sua preciosa voz.
— Ele me contou aquilo do velhinho... Jogou o livro
sobre ele, tão velho... Antes eu compreendi, mas agora não
sei como pôde... — perguntara Lídia.
— Mas foi verdade.
Lídia olhava-a, os lábios entreabertos, esperando-a. E de
repente sentiu com clareza que não queria lutar contra
aquela mulher. Balançou a cabeça desnorteada. Seu rosto
dissolveu-se, tremeu, seus traços hesitaram em busca de
uma expressão:
— Eu não fiz isso por querer, sabe? Não, eu não fiz... —
Lídia continuava inquieta, o rosto picado por
estremecimentos rápidos. — Por que haveria eu de querer
enganá-la? Não, não é isso que eu quero dizer, não é isso...
E subitamente, sem que Joana pudesse prevê-lo,
rompeu num choro livre e forte. Ela vai ter um filho, está
nervosa, pensou Joana. A outra se arrastava penosamente:
— Eu não me incomodaria de tirar Otávio de outra
mulher. Mas não sabia que havia você... Não uma pessoa
qualquer como eu, mas alguém tão... tão boa... tão sublime...
Joana sobressaltou-se. Ah, eu estive trabalhando para isso:
consegui ser sublime... como nos antigos tempos... Não, não é
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inteiramente assim, não forcei a situação, como o poderia
com o aço franzino e esfriando meu corpo? Não me colocar a
essa luz, com o sulco na testa tão evidente. Procurar aquele
grau de luz e sombra em que me torno subitamente polpuda,
o batom escurecido em mancha velha de sangue, o rosto
esbranquiçado sob os cabelos... Encostam-me de novo a
lâmina de aço no coração. Quando eu for embora ela me desprezará
é apenas no momento que está deslumbrada. Sou
fugazmente maravilhosa... Deus, Deus... caminho correndo,
alucinada, o corpo voando, hesitando... para onde? Há uma
substância assustada e leve no ar, eu consegui obtê-la, é
como o instante que precede o choro de uma criança.
Naquela noite, não sei quando, havia escadarias, leques se
movendo, luzes ternas balançando os doces raios como
cabeças de mães tolerantes, havia um homem olhando para
mim lá da linha do horizonte, eu era uma estranha, mas
vencia de qualquer modo, mesmo que fosse desprezando
alguma coisa. Tudo deslizava suave, em combinação muda.
Já era no fim — fim de quê? da escadaria nobre e lânguida,
inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e
orgulhoso corrimão, o fim da noite — quando eu resvalara
para o centro da sala, suave como uma bolha de ar. E
subitamente, forte como um trovão, porém mudo como um
espanto mudo, e, subitamente, mais um passo e não pude
continuar! A barra de meu vestido de gaze estremeceu num
esgar, lutou, torceu-se, rasgou-se no canto agudo do móvel e
lá ficou trêmula, arquejante, perplexa sob meu olhar estupefato.
E de repente as coisas haviam endurecido, uma
orquestra rebentara em sons tortos e silenciara imediatamente,
havia alguma coisa triunfante e trágica no ar. Eu
descobri que no fundo não havia em mim surpresa: que tudo
caminhava lentamente para aquilo e agora se precipitara no
seu verdadeiro plano. Eu queria sair correndo, chorando com
meu pobre vestido sem barra, roto e aflito. Agora as luzes
brilhavam com força e orgulho, os leques desvendavam caras
resplandecentes e astuciosas, lá de longe do horizonte o
homem ria para mim, o corrimão retraiu-se, fechou os olhos.
Ninguém precisava mais mentir, uma vez que eu já sabia
tudo! Também agora me precipitarei em outro estado. Por
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quê? Por quê? Vou embora daqui, vou para casa, de um instante
para outro o rasgão no vestido, ouvir o grito lancinante
da orquestra e subitamente o silêncio, todos os músicos
caídos mortos sobre o estrado, no grande salão zangado e
vazio. Olhar de frente para o rasgão, mas sempre tive medo
de rebentar de sofrimento, como o grito da orquestra.
Ninguém sabe até que ponto posso chegar quase em triunfo
como se fosse uma criação: é uma sensação de poder extrahumano
conseguida em certo grau de sofrimento. Porém um
minuto mais e a gente não sabe se é de poder ou de absoluta
impotência, assim como querer com o corpo e o cérebro
movimentar um dedo e simplesmente não consegui-lo. Não é
simplesmente não consegui-lo: mas todas as coisas rindo e
chorando ao mesmo tempo. Não, seguramente não inventei
esta situação, e é isso o que mais me surpreende. Porque
minha vontade de experiência não chegaria a provocar esse
ferro frio encostando na carne morna, finalmente morna da
ternura de ontem. Oh, não se fazer de mártir: você sabe que
não continuaria no mesmo estado por muito tempo: de novo
abriria e fecharia círculos de vida, jogando-os de lado,
murchos... Também aquele momento passaria, mesmo que
Lídia não reclamasse Otávio, mesmo que eu jamais viesse a
saber que Otávio não a abandonara embora casado comigo.
Não é que estou misturando a essa ameaça de dor certa
alegria doce e irônica? não é que estou me querendo nesse
momento? Só quando sair daqui me permitirei olhar o rasgão
do vestido. Nada aconteceu, só que ontem eu iniciara a
renovação e agora me retraio porque essa mulher está
nervosa porque espera um filho de Otávio. Sobretudo não
houve transformação essencial, tudo isso já existia, houve
apenas o rasgão do vestido indicando as coisas. E realmente,
realmente, dor de cabeça, cansaço, realmente tudo
caminhava para isso.
— Eu também posso ter um filho, disse alto. A voz soou
bela e límpida.
— Sim — murmurara Lídia assombrada.
— Eu também posso. Por que não?
118
— Não...
— Não? Mas sim... Eu lhe darei Otávio, não agora,
porém quando eu quiser. Eu terei um filho e depois lhe
devolverei Otávio.
— Mas isso é monstruoso! — gritara Lídia.
— Mas por quê? É monstruoso ter duas mulheres?
Você bem sabe que não. É bom estar grávida, imagino. Mas
basta para alguém esperar um filho ou ainda é pouco?
— A gente se sente bem, dissera Lídia arrastada, os
olhos abertos.
— Bem?
— Também se tem medo do parto às vezes, respondia a
outra mecanicamente.
— Não se assuste, qualquer animal tem filhos. Você
terá um parto fácil e também eu. Nós duas temos a bacia
larga.
— Sim...
— Eu também quero as coisas da vida. Por que não?
Pensa que sou estéril? Nem um pouco. Não tive filhos porque
não quis.
Eu me sinto segurando uma criança, pensou Joana.
Dorme, meu filho, dorme, eu lhe digo. O filho é morno e eu
estou triste. Mas é a tristeza da felicidade, esse
apaziguamento e suficiência que deixam o rosto plácido,
longínquo. E quando meu filho me toca não me rouba
pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der
leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de
minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará
de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei
burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir
um filho e nada sei. Deus receberá minha humildade e dirá:
pude parir um mundo e nada sei. Estarei mais perto d'Ele e
da mulher da voz. Meu filho se moverá nos meus braços e eu
me direi: Joana, Joana isso é bom. Não pronunciarei outra
palavra porque a verdade será o que agradar aos meus
119
braços.


O HOMEM


ENTRE UM INSTANTE e outro, entre o passado e o futuro, a
vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um
minuto a outro no círculo do relógio . O fundo dos
acontecimentos erguendo-se calado e morto, um pouco da
eternidade.
Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho
da vida ao seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em
tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo,
vindo de longe, — um pássaro negro, um ponto crescendo do
horizonte, aproximando-se da consciência como uma bola
arremessada do fim para o princípio. E explodindo diante dos
olhos perplexos em essência de silêncio. Deixando depois de
si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar.
Renascer depois, guardar a memória estranha do intervalo,
sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o
pequeno ponto vazio — deslumbrado e virgem, demasiado
fugaz para se deixar desvendar.
Joana sentiu-o enquanto atravessava o pequeno jardim
de Lídia, ignorando aonde iria, sabendo apenas que deixava
atrás de si tudo o que vivera. Quando fechou o portãozinho,
afastou-se de Lídia, de Otávio, e, de novo sozinha em si
mesma, caminhava .
Um começo de tempestade acalmara e o ar fresco
circulava docemente. Subiu de novo o morro e seu coração
ainda batia sem ritmo. Procurava a paz daqueles caminhos
àquela hora, entre a tarde e a noite, uma cigarra invisível
sussurrando o mesmo canto. Os velhos muros úmidos em
ruína, invadidos de heras e trepadeiras sensíveis ao vento.
Parou e sem os seus passos ouvia o silêncio mover-se. Só seu
corpo perturbava aquela serenidade. Imaginava-a sem sua
presença e adivinhava a frescura que deveriam ter aquelas
coisas mortas misturadas às outras, frágil-mente vivas como
no início da criação.
120
As altas casas fechadas, recolhidas como torres.
Chegava-se a um dos casarões por uma longa rua sombria e
quieta, o fim do mundo. Apenas junto dele enxergava-se um
declive, o nascimento de outra rua e compreendia-se que não
era o fim. O casarão baixo e largo, os vidros quebrados, as
venezianas cerradas, cobertas de poeira. Conhecia bem
aquele jardim onde se misturavam fofos tufos de erva, rosas
vermelhas, velhas latas enferrujadas. Sob os jasmineiros em
flor encontraria os jornais desbotados, pedaços de madeira
úmida de antigos enxertos. Entre as árvores pesadas e
envelhecidas os pardais e os pombos beliscando desde
sempre o chão. Um passarinho pousava do vôo, passeava pelos
arredores até sumir-se numa das moitas. O casarão
orgulhoso e doce em seus escombros. Morrer ali. Àquela casa
só se podia chegar quando viesse o fim. Morrer naquela terra
úmida tão boa para rece- ber um corpo morto. Mas não era
morte o que ela queria, tinha medo também.
Um fio d'água corria sem cessar pela parede escura.
Joana parou um instante, olhou-o vazia, impassível. Num de
seus passeios ela já se sentara junto do portãozinho
enferrujado, o rosto comprimido às grades frias, procurando
mergulhar no cheiro úmido e escuro do quintal. Aquela
quietude fechada, o perfume. Mas isso fora há muito tempo.
Agora ela se separara do passado.
Continuou a andar. Não sentia mais o calor da febre que
a conversa com Lídia provocara. Estava pálida e o excesso de
cansaço deixava-a agora quase leve, os traços mais finos,
purificados. De novo esperava um fim, o fim que jamais vinha
completar seus momentos. Que descesse sobre ela algo
inevitável, queria ceder, submeter-se. Às vezes seus passos
erravam na direção, pesavam-lhe, as pernas mal se moviam.
Mas ela se empurrava, guardava-se para cair mais longe.
Olhava para o chão, as ervas louras que renasciam
humildemente após cada esmagamento.
Levantou os olhos e viu-o. Aquele mesmo homem que a
seguia freqüentemente, sem jamais se aproximar. Já o vira
muitas vezes naquelas mesmas ruas, no passeio da tarde.
Não se surpreendeu. Alguma coisa teria que vir de algum
121
modo, ela sabia. Afiado como uma faca. Sim, ainda na noite
anterior, deitada ao lado de Otávio, ignorante do que
sucederia no dia seguinte, ela se lembrara desse homem .
Afiado como uma faca... Numa ligeira vertigem, ao tentar
divisá-lo de longe, viu-o multiplicado em inúmeros vultos que
enchiam trêmulos e formes o caminho. Quando passou a
escuridão da vista, a testa úmida de suor, viu-o em contraste
como um ponto único e pobre andando para ela, perdido na
longa rua deserta. Certamente ele apenas a seguiria, como
das outras vezes. Mas ela estava cansada e parou.
Cada vez mais a figura do homem se aproximava e
crescia, cada vez mais Joana se sentiu afundando no
irremediável. Ainda poderia recuar, ainda poderia voltar as
costas e ir embora, evitando-o. Nem seria fugir, ela
adivinhava a humildade do homem. Nada a retinha ali imóvel
claramente à espera de sua aproximação. Nada a retinha,
nem o medo. Mas mesmo que agora se aproximasse a morte,
mesmo a vileza, a esperança ou de novo a dor. Parara
simplesmente. Estavam cortadas as veias que a ligavam às
coisas vividas, reunidas num só bloco longínquo, exigindo
uma continuação lógica, mas velhas, mortas. Só ela própria
sobrevivera, ainda respirando. E à sua frente um novo
campo, ainda sem cor a madrugada emergindo. Atravessar
suas brumas para enxergá-lo. Não poderia recuar, não sabia
por que recuar. Se ainda hesitava diante do estranho cada
vez mais perto é que temia a vida que de novo se aproximava
implacável. Procurava agarrar-se ao intervalo, nele existir
suspensa, naquele mundo frio e abstrato, sem se mesclar ao
sangue.
Ele vinha. Parou a alguns passos dela. Permaneceram
em silêncio. Ela de olhos fixos, largos e cansados. Ele
trêmulo, hesitante. Ao redor as folhas se moviam à brisa, um
pássaro pipilava monotonamente.
O silêncio se prolongava à espera do que pudessem
dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de
alguma palavra. Fundiam-se ambos na quietude. Aos poucos
ele deixou de palpitar, seus olhos pousaram mais fundo no
corpo da mulher, apoderaram-se suavemente dele e de seu
122
cansaço. Olhava-a esquecido de si próprio e de sua timidez.
Joana sentia-o penetrá-la e deixou-o.
Quando ele falou ela ergueu imperceptivelmente o corpo.
Parecia-lhe longuíssimo o tempo que decorrera, mas quando
ele pronunciou as primeiras palavras sem tentar um início de
conversação soube que na verdade distanciara-se
incomensuravelmente do princípio.
— Moro naquela casa, disse ele. Ela esperava.
— Quer descansar?
Joana assentiu e ele olhou mudamente a aura luminosa
que seus cabelos despenteados traçavam em torno da cabeça
pequena. Foi na frente e ela seguiu-o.
Quando ele falou ela ergueu imperceptivelmente o corpo,
abaixou as cortinas e a sombra estendeu-se pelo assoalho,
até a porta fechada. Aproximou-lhe uma poltrona velha e
macia, onde ela mergulhou, as pernas encolhidas. Ele mesmo
sentou-se no bordo da cama estreita, coberta com um lençol
amarrotado. Ficou imóvel, as mãos juntas, olhando-a.
Joana fechou os olhos. Ouvia ruídos macios se
prolongarem longinquamente pela casa, a exclamação de
suave surpresa de uma criança. Como de outro mundo, soou
o grito fresco de um galo distante.
Atrás de tudo, água leve correndo, a respiração
arquejante e compassada das árvores.
Um movimento pressentido perto de si fê-la abrir os
olhos. Não o percebeu a princípio, na meia escuridão do
aposento. Divisou-o aos poucos ajoelhado junto à cama, o
rosto vacilando entre as mãos. Quis chamá-lo e não sabia
como. Não queria tocá-lo. Porém cada vez mais vinha a
angústia do homem para ela mesma e Joana moveu-se sobre
a poltrona, esperando seu olhar.
Ele ergueu a cabeça e Joana surpreendeu-se. Os lábios
entreabertos do homem brilhavam úmidos como se uma luz o
iluminasse interiormente. Seus olhos resplandeciam, mas
não se poderia saber se de dor ou de misteriosa alegria. Sua
123
testa alargara-se para o alto, seu corpo mal se equilibrava no
esforço de se conter, de não vibrar.
— O quê? — sussurrou Joana fascinada. Ele olhava-a.
— Tenho medo, disse por fim. Fitaram-se um segundo.
E ela não teve medo, mas sentiu uma alegria compacta, mais
intensa que o terror, possuí-la e encher-lhe todo o corpo.
— Eu voltarei a essa casa, disse.
Ele encarou-a subitamente apavorado, sem respirar. Por
um instante ela esperou que ele gritasse ou inventasse um
movimento louco de que ela nem podia adivinhar o começo.
Os lábios do homem tremeram um segundo. E mal se
libertando do olhar de Joana, dele fugindo como doido,
escondeu bruscamente o rosto nas mãos longas e magras.



O ABRIGO NO HOMEM


JOANA. Joana, pensava o homem aguardando sua vinda.
Joana, nome nu, santa Joana, tão virgem. Como era inocente
e pura. Via-lhe os traços infantis, as mãos eloqüentes como
as de um cego. Ela não era bonita, pelo menos desde homem
nunca sonhara com aquela criatura, nunca a esperara. Talvez
por isso a tivesse seguido tantas vezes na rua, mesmo sem
aguardar seu olhar, talvez... Não sabia, gostara sempre de vêla.
Não era bonita. Ou era? Como saber? Tão difícil descobrir
como se nunca a tivesse visto, como se não a tivesse
abraçado tantas vezes. Uma ameaça de transformação no
rosto, nos movimentos, instante por instante. Mesmo no repouso
ela era alguma coisa que ia se erguer. E o que entendia
ele agora e sentia tão milagrosamente, como se ela lhe tivesse
explicado? — perguntava-se. Fechou os olhos, os braços ao
longo da cama. Mas apenas até o momento em que soassem
os passos de Joana lá fora. Porque ele nunca ousara
abandonar-se em sua presença. Inclinava-se sobre ela,
esperava-a cada segundo, absorvendo-a. Não se cansava,
porém, e aquela atitude não lhe tirava a naturalidade. Apenas
lançava-o numa outra até então desconhecida. Ele era dois,
124
agora, mas aos poucos seu novo ser nascente crescia e
dominava o passado do outro. Apertou os lábios. Parecia-lhe
que misteriosamente havia lógica em ter experimentado
certas torturas, as serenas baixezas, a falta despreocupada
de caminho, para agora receber Joana enfim. Não que o
tivessem alguma vez impelido para a lama e contra seu
desejo, não que se julgasse um mártir. Jamais aguardara
solução. Mesmo quanto às mulheres, que ele espiava, espiava
e largava. Mesmo aquela mulher na casa de quem ele agora
se instalara preguiçosamente, apesar de mal suportar sua
presença, uma sombra cansativa e terna. Ele caminhara
sobre seus próprios pés, o corpo consciente, experimentando
e sofrendo sem ternura para consigo mesmo, tudo
concedendo friamente, ingenuamente à sua curiosidade.
Considerava-se até feliz. E agora viera-lhe Joana, ela, Joana
que... Quis acrescentar ao pensamento confuso mais uma
palavra, a verdadeira, a difícil, porém assaltou-o de novo a
idéia de que não precisava mais pensar, não precisava de
nada, de nada... ela viria daqui a pouco. Daqui a pouco. Mas
escute: daqui a pouco... Era assim: Joana o libertara. Cada
vez mais ele necessitava de menos para viver: pensava menos,
comia menos, dormia quase nada. Ela era sempre. E viria
daqui a pouco.
Fechou os olhos mais intensamente, mordeu os lábios,
sofrendo sem saber por quê. Abriu-os em seguida e no quarto
— o quarto vazio! — subitamente não descobriu a marca da
passagem de Joana. Como se fosse mentira a sua
existência... Ergueu-se. Vem, gritou qualquer coisa nele
ardente e mortal. Vem, repetiu baixinho, cheio de temor, o
olhar perdido. Vem...
Passos quase silenciosos pisavam lá fora as folhas
secas. De novo Joana vinha... de novo ela o ouvia de longe.
Ele quedou-se de pé junto da cama, os olhos ausentes,
um cego ouvindo música distante. Aproximava-se,
aproximava-se... Joana. Seus passos eram cada vez mais
uma realidade, a única realidade. Joana. Com a
subitaneidade de uma punhalada, a dor estalou dentro de
seu corpo, iluminou-o de alegria e perplexidade.
125
Quando a porta se abriu para Joana ele deixou de
existir. Escorregara muito fundo dentro de si, pairava na
penumbra de sua própria floresta insuspeita. Movia-se agora
de leve e seus gestos eram fáceis e novos. As pupilas
escurecidas e alargadas, de súbito um animal fino, assustado
como uma corça. No entanto a atmosfera tornara-se tão
lúcida que ele perceberia qualquer movimento de coisa viva
ao seu redor. E seu corpo era apenas memória fresca, onde se
moldariam como pela primeira vez as sensações.
O pequeno navio branco flutuava sobre grossas ondas,
verdes, brilhantes e mal feitas — via ela deitada, espiando o
pequeno quadro da parede.
— No dia 3, continuou Joana e fazia a voz clara, leve,
com pequenos intervalos redondos, no dia 3 houve uma
grande parada em benefício dos que nasciam. Era muito
engraçado ver as pessoas cantando e empunhando bandeiras
cheias de todas as não-cores. Então ergueu-se um homem
tênue e rápido como a brisa que sopra quando a gente está
triste e disse de longe: eu. Ninguém ouviu, mas ele estava
quase satisfeito. Foi quando se ergueu a grande ventania que
sopra do noroeste e caminhou sobre todos com os grandes
pés fogosos. Todos voltaram para suas casas, murchos,
crestados de calor. Tiraram os sapatos, desafogaram os
colarinhos. Todos os sangues corriam lentamente,
pesadamente em todas as veias. E um grande não-ter-o-quefazer
arrastava-se nas almas. Nesse ínterim a terra continuava
a rodar, Foi quando nasceu um menino chamado um
nome. Ele era lindo, o menino. Grandes olhos que viam,
lábios finos que sentiam, rosto magro que sentia, testa alta
que sentia. A cabeça grande. Ele caminhava como quem sabe
exatamente o lugar, esgueirando-se sem esforço entre a
multidão. Quem fosse atrás dele chegaria. Quando ele se
emocionava, quando se surpreendia, balançava a cabeça,
assim, devagar, em não, como quem recebe mais do que
esperou. Ele era lindo. E sobretudo estava vivo. E sobretudo
eu o amava. Eu nascia, e meu coração era novo quando eu o
via. Eu nascia, eu nascia, eu nascia. Agora um verso. O que
eu quero, meu bem, é te ver sempre, meu bem. Como te vi
126
hoje, meu bem. Mesmo que morreres, meu bem. Outro: Ouvi
um dia uma flor cantando e tranqüilamente me alegrei;
depois me aproximei e, milagre, não era a flor que cantava
mas um passarinho sobre a flor.
Joana falava sonolentamente no fim. Pelos olhos
semicerrados o navio flutuava torto no quadro, as coisas do
quarto espichavam-se, luminosas, o fim de uma dando a mão
ao começo de outra. Pois se ela já sabia "que tudo era um",
por que continuar a ver e a viver? O homem, de olhos
fechados, mergulhara no seu ombro e ouvia sonhando sem
dormir. A intervalos ela escutava dentro do silêncio vivo da
tarde de verão movimentos abafados e vagarosos no assoalho
frouxo de madeira. Era a mulher, a mulher, aquela mulher.
Nas primeiras vezes em que Joana viera à casa grande,
desejara perguntar ao homem assim: ela é agora como sua
mãe? não é mais sua amante? mesmo eu existindo ela ainda
quer você em casa? Mas adiara sempre. No entanto, tão forte
era a presença da outra na casa, que os três formavam um
par. E jamais Joana e o homem se sentiam inteiramente sós.
Joana também já quisera perguntar à própria mulher: mas
onde, mas onde se desenrola a alma atrás de vocês? Isso
porém fora um pensamento antigo. Porque um dia a
enxergara de relance, as costas gordas concentradas num
bloco indissolúvel de angústia sob o vestido de renda preta.
Percebera-a também em outros momentos, rápidos, passando
de um quarto à sala, sorrindo depressa, escapando horrível.
Então Joana descobrira que ela era alguém vivo e negro.
Orelhas grossas, tristes e pesadas, com um fundo escuro de
caverna. O olhar terno, fugitivo e risonho de prostituta sem
glória. Os lábios úmidos, emurchecidos, grandes, tão
pintados. Como ela devia amar o homem. Os cabelos fofos
eram ralos e avermelhados pelas pinturas sucessivas. E o
quarto onde o homem dormia e recebia Joana, aquele quarto
com as cortinas, quase sem poeira, ela o arranjara
certamente. Como quem cose a mortalha do filho. Joana,
aquela mulher e a esposa do professor. O que as ligava
afinal? As três graças diabólicas.
— Amêndoas... — disse Joana, voltando-se para o
127
homem. O mistério e a doçura das palavras: amêndoa... ouça,
pronunciada com cuidado, a voz na garganta, ressoando nas
profundezas da boca. Vibra, deixa-me longa e estirada e
curva como um arco . Amêndoa amarga, venenosa e pura.
As três graças amargas, venenosas e puras.
— Conte aquilo... — disse-lhe o homem.
— O quê?
— Do marinheiro. Se amares um marinheiro terás
amado o mundo inteiro.
— Horrível... — riu Joana. Eu sei: eu mesma disse que
deveria ser tão verdade que já nascia com rima. Pois já nem
me lembro mais.
— Que fazia domingo na praça. O cais do porto. . . —
ajudou o homem.
Um dia, rompendo a quietude em que ficava junto de
Joana ele tentara falar:
— Eu sempre não fui nada.
— Sim, respondeu ela.
— Mas tudo o que houve não faria você ir embora...
— Não.
— Mesmo essa mulher... essa casa... É diferente, você
sabe?
— Sei.
— Sempre fui como um mendigo, eu sei. Mas nunca
pedia nada, nem precisava, nem sabia. Você veio, sabe? Eu
pensava antes: nada era ruim. Mas agora... Por que você me
diz sempre coisas tão loucas, juro, não posso...
Ela então se levantara sobre o cotovelo, subitamente
séria, o rosto debruçado sobre ele:
— Você acredita em mim?
— Sim... — respondeu ele assustado com sua violência.
128
— Você sabe que eu não minto, que nunca minto,
mesmo quando... mesmo sempre? Sente? Diga, diga. O resto
então não importaria, nada importaria... Quando digo essas
coisas... essas coisas loucas, quando não quero saber de seu
passado, e não quero contar sobre mim, quando eu invento
palavras... Quando eu minto você sente que eu não minto?
— Sim, sim...
Ela deixara-se cair de novo sobre a cama, os olhos
fechados, cansada. Não importa, não importa se depois ele
não acreditar, se correr de mim como o professor. Por
enquanto junto dele podia pensar. E por enquanto também é
tempo. Abriu os olhos, sorriu para ele. Um menino, é isso que
ele é. Deve ter tido muitas mulheres, muito amado, atraente,
com os grandes cílios, os olhos frios. Até agora foi mais
consistente, eu o dissolvi um pouco. Aquela mulher espera
que eu vá embora um dia finalmente. Que ele volte.
— Que fazia domingo na praça? A praça é larga e
solitária, disse afinal lentamente procurando recordar e
atender ao pedido do homem. Sim... Tanto sol, preso ao chão
como se nascesse dele. O mar, a barriga do mar, calada,
arquejante. Os peixes em domingo, volteando rapidamente as
caudas e serenos continuando a abrir caminho. Um navio
parado. Domingo. Os marinheiros passeando pelo cais, pela
praça. Um vestido cor-de-rosa aparecendo e desaparecendo
numa esquina. As árvores cristalizadas em domingo —
domingo é qualquer coisa como árvores de Natal —, brilhando
silenciosas, contendo, assim, assim, a respiração. Um homem
passando com uma mulher de vestido novo. O homem quer
não ser nada, anda ao lado dela olhando-a quase de frente,
indagando, indagando: diga, mande, pise. Ela não
respondendo, sorrindo, puro domingo. Satisfação, satisfação.
Pura tristeza sem mágoa. Tristeza que parece vir de trás da
mulher de cor-de-rosa. Tristeza de domingo no cais do porto,
os marinheiros emprestados à terra. Essa tristeza leve é a
constatação de viver. Como não se sabe de que modo usar
esse conhecimento súbito, vem a tristeza .
— Dessa vez a história foi diferente — queixou-se ele
129
depois de uma pausa.
— Ê que estou apenas contando o que vi e não o que
vejo. Não sei repetir, só sei uma vez as coisas — explicou-lhe
ela.
— Foi diferente, mas tudo o que você vê é perfeito .
Ele usava ao redor do pescoço uma correntezinha como
uma pequena medalha de ouro. De um lado Santa Teresinha,
de outro S. Cristóvão. Ele era devoto dos dois:
— Mas não ligo muito a coisas de santos. Só às vezes.
Ela contara-lhe certa vez que em pequena podia brincar
uma tarde inteira com uma palavra. Ele pedia-lhe então para
inventar novas. Nunca ela o queria tanto como nesses
momentos.
— Diga de novo o que é Lalande — implorou a Joana.
— É como lágrimas de anjo. Sabe o que é lágrimas de
anjo? Uma espécie de narcisinho, qualquer brisa inclina ele
de um lado para outro. Lalande é também mar de
madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia, quando
o sol não nasceu. Toda a vez que eu disser: Lalande, você
deve sentir a viração fresca e salgada do mar, deve andar ao
longo da praia ainda escurecida, devagar, nu. Em breve você
sentirá Lalande... Pode crer em mim, eu sou uma das pessoas
que mais conhecem o mar.
Ele não sabia em instantes se vivia ou se estava morto,
se tudo o que tinha era pouco ou demais. Quando ela falava,
inventava doida, doida! A plenitude enchia-o tão grande como
um vazio e sua angústia era a da limpidez do largo espaço
acima das águas. Por que ficava estarrecido diante dela, estupefato
como uma parede branca ao luar? Ou talvez fosse
acordar de repente, gritar: quem é esta? ela é demais na
minha vida! não posso... quero voltar... Mas ele não o poderia
mais — sentia subitamente e assustava-se perdido.
— Querido — disse ela interrompendo os pensamentos
do homem.
— Sim, sim... — Ele escondeu o rosto naquele ombro macio e
130
ela ficou sentindo sua respiração percorrê-la de ida e de volta,
de ida e de volta. Eles dois eram duas criaturas. Que mais
importa? — pensava ela. Ele moveu-se, ajeitou a cabeça na
sua carne como... como uma ameba, um protozoário
procurando cegamente o núcleo, o centro vivo. Ou como uma
criança. Lá fora o mundo se escoava, e o dia, o dia, depois a
noite, depois o dia. Alguma vez haveria de partir, de separarse
de novo. Ele também. Dela? Sim, em breve ela se tornaria
pesada a ele com seu excesso de milagre. Como as outras
pessoas, inexplicavelmente envergonhado de si próprio
ansiaria por ir embora. Mas uma vingança: ele não se
libertaria inteiramente. Terminaria maravilhado consigo
mesmo, comprometendo-se, cheio de uma responsabilidade
indefinida e angustiosa. Joana sorriu. Ele terminaria por
odiá-la, como se ela exigisse dele alguma coisa. Como sua tia,
seu tio que a respeitavam contudo, pressentindo que ela não
amava os seus prazeres. Confusamente supunham-na
superior e desprezavam-na. Oh Deus, de novo estava
recordando, contando a si mesma sua história, justificandose...
Poderia pedir dados ao homem: eu sou assim? Mas o que
sabia ele? Afundava o rosto no seu ombro, escondia-se,
possivelmente feliz naquele instante. Sacudi-lo, contar-lhe;
homem assim era Joana, homem. E assim fez-se mulher e
envelheceu. Acreditava-se muito poderosa e sentia-se infeliz.
Tão poderosa que imaginava ter escolhido os caminhos antes
de neles penetrar — e apenas com o pensamento. Tão infeliz
que, julgando-se poderosa, não sabia o que fazer de seu
poder e via cada minuto perdido porque não o orientara para
um fim. Assim cresceu Joana, homem, fina como um
pinheiro, muito corajosa também. Sua coragem desenvolverase
dentro do quarto e à luz fechada mundos luminosos se
formavam sem medo e sem pudor. Ela aprendeu desde cedo a
pensar e como não vira de perto nenhum ser humano senão a
si mesma, deslumbrou-se, sofreu, viveu um orgulho doloroso,
às vezes leve mas quase sempre difícil de se carregar.
Como terminar a história de Joana? Se pudesse colher e
acrescentar o olhar que surpreendera em Lídia: ninguém te
amará... Sim, terminar assim: apesar de ser das criaturas
soltas e sozinhas no mundo, ninguém jamais pensou em dar
131
alguma coisa a Joana. Não amor, entregavam-lhe sempre
outro sentimento qualquer. Viveu sua vida, ávida como uma
virgem — isso para o túmulo. Fez-se muitas perguntas, mas
nunca pôde se responder: parava para sentir. Como nasceu
um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de
executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as
coisas eram ricas . — Desejaria deter seu tempo na pergunta.
Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas retas...
harmônico e misterioso como um arpejo. Onde se guarda a
música enquanto não soa? — indagava-se. E rendida
respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu
morrer.
O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto
sobre as ondas, movendo-se. Bastava menear a cabeça para
que as ondas a acompanhassem. Mas ela tivera coisa, ah isso
tivera. Um marido, seios, um amante, uma casa, livros,
cabelos cortados, uma tia, um professor. Titia, ouça-me, eu
conheci Joana, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca
em relação às coisas. Tudo lhe parecia às vezes preciso
demais, impossível de ser tocado. E, às vezes, o que usavam
como ar de respirar, era peso e morte para ela. Veja se
compreende a minha heroína, titia, escute. Ela é vaga e
audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria
notando-o como Lídia, outra mulher —uma jovem mulher
cheia do próprio destino —, observou-o. No entanto o que há
dentro de Joana é alguma coisa mais forte que o amor que se
dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se
recebe. Compreende, titia? Eu não a chamaria de herói como
eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um medo
enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e
compreensão. — Me ocorreu agora isso: quem sabe, talvez a
crença na sobrevivência futura venha de se notar que a vida
sempre nos deixa intocados. — Compreende, titia? — esqueça
a interrupção da vida futura — compreende? Vejo teus olhos
abertos, me olhando com medo, com desconfiança, mas
querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha, agora
morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por
cima de minha aspereza. Pobre!, a maior revolta que senti em
ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquele
132
frase quase diária que ainda ouço, misturada ao teu cheiro
que não posso esquecer: "oh, não poder sair à rua na roupa
em que se está!" Que mais te contar? Tenho os cabelos
cortados, castanho, às vezes uso franja. Vou morrer um dia.
Nasci também. Havia o quarto com os dois. Ele era bonito. O
quarto rodava um pouco. Tornava-se transparente e morno
um véu um véu se aproximando vindo. Eles três formavam
um casal e a quem contar isso? Poderia adormecer porque o
homem nunca dormia e vigiaria como a chuva caindo. Otávio
também era bonito, olhos. Esse era uma criança uma ameba
flores brancura mornidão como o sono por enquanto é tempo
por enquanto é vida mesmo que mais tarde... Tudo como a
terra uma criança Lídia uma criança Otávio terra de
profundis...



A VÍBORA


QUE TRANSPONHO suavemente alguma coisa...
Otávio lia enquanto o relógio estalava os segundos e
rompia o silêncio da noite com 11 badaladas .
Que transponho suavemente alguma coisa... Ê a
impressão. A leveza vem vindo não sei de onde. Cortinas
inclinam-se sobre as próprias cinturas languidamente. Mas
também a marcha negra, parada, dois olhos fitando e nada
podendo dizer. Deus pousa numa árvore pipilando e linhas
retas se dirigem inacabadas, horizontais e frias. É a
impressão... Os momentos vão pingando maduros e mal
tomba um ergue-se outro, de leve, o rosto pálido e pequeno.
De repente também os momentos acabam. O sem-tempo
escorre pelas minhas paredes, tortuoso e cego. Aos poucos
acumula-se num lago escuro e quieto e eu grito: vivi!
A noite calava as coisas lá fora, algum sapo coaxava a
intervalos. Cada arbusto era um vulto imóvel e recolhido.
Longe brilhavam e tremiam pequenas luzes
avermelhadas, olhos insones. Na escuridão como da água.
Os girassóis altos e finos aclaravam o jardim em pausas.
133
O que pensar naquele instante? Ela estava tão pura e
livre que poderia escolher e não sabia. Enxergava alguma
coisa, mas não conseguiria dizê-la ou pensá-la sequer, tão
diluída achava-se a imagem na escuridão de seu corpo.
Sentia-a apenas e olhava expectante pela janela como se
olhasse seu próprio rosto na noite. Seria esse o máximo que
atingiria? Aproximar-se, aproximar-se, quase tocar, mas
sentir atrás de si a onda sugando-a em refluxo firme e suave,
sorvendo-a, deixando-lhe após a assombrada e impalpável
lembrança de uma alucinação... Mesmo naquele momento,
percebendo a noite e seus próprios pensamentos indistintos,
ela ainda restava separada deles, sempre um pequeno bloco
fechado, assistindo, assistindo. A luzinha brilhando silenciosamente,
afastada, solitária, inconquistada. Jamais se
entregava.
Olhou ao redor de si mesma, a sala arfando de leve,
fracamente iluminada como numa vertigem. Alçou
ligeiramente a cabeça, perscrutou o espaço e tinha
consciência do resto da casa que se perdia na escuridão, os
objetos sérios e vagos flutuando pelos cantos. Teria que andar
às apalpadelas mal atravessasse a porta. E sobretudo se fosse
uma criança, na casa da tia, acordando de noite, a boca seca,
indo à procura de água. Sabendo as pessoas isoladas cada
uma dentro do sono intransponível e secreto. Sobretudo se
fosse aquela criança e como naquela noite ou naquelas
noites, ao atravessar a copa surpreendesse o luar parado no
quintal como num cemitério, aquele vento livre e indeciso...
Sobretudo se fosse a criança amedrontada esbarraria no
escuro em objetos imprecisos e a cada toque eles se
condensariam subitamente em cadeiras e mesas, em
barreiras, de olhos abertos, frios, inapeláveis. Mas também
aprisionados então. Depois da pancada a dor, o luar
desnudando o terraço de cimento, a sede subindo pelo corpo
como uma lembrança. A quietude profunda na casa, os
telhados vizinhos imóveis e lívidos...
De novo Joana procurou voltar à sala, à presença de
Otávio. Estava solta das coisas, de suas próprias coisas, por
ela mesma criadas e vivas. Largassem-na no deserto, na
134
solidão das geleiras, em qualquer ponto da Terra e
conservaria as mesmas mãos brancas e caídas, o mesmo
desligamento quase sereno. Tomar uma trouxa de roupa, ir
embora devagar. Não fugir, mas ir. Isso, tão doce: não fugir,
mas ir... Ou gritar alto, alto e reto e infinito, com os olhos
fechados, calmos. Andar até encontrar as luzinhas
vermelhas. Tão trêmulas como num começo ou num fim.
Também ela estava a morrer ou a nascer? Não, não ir: ficar
presa ao instante como um olhar absorto se prende ao vácuo,
quieta, fixa no ar...
A trepidação de um bonde longínquo atravessou-a como
num túnel. Um trem noturno num túnel. Adeus. Não, quem
viaja à noite apenas olha pela janela e não dá adeus.
Ninguém sabe onde estão os casebres, os corpos sujos são
escuros e não precisam de luz.
— Otávio — disse porque estava perdida.
A voz de Joana riscou o quarto inexpressiva, leve, direta.
Ele ergueu os olhos:
— O que é? — indagou. E sua voz era cheia de sangue e
de carne, reuniu a sala na sala, designou e definiu as coisas.
Um sopro reavivando as labaredas. Na praça vazia entrara a
multidão.
Debateu-se um momento, tremeu, acordou. Tudo
rebrilhava sob a lâmpada, tranqüilo e alegre como num lar.
Dentro da penumbra de seu corpo a inutilidade da espera
atravessou-a sonâmbula como um pássaro pela noite.
— Otávio — repetiu.
Ele aguardava. Então de novo consciente da sala, do
homem e de si mesma, suas próprias chamas cresceram um
pouco, ela soube que deveria prosseguir logicamente, que o
homem esperava uma continuação. Procurou um aviso, um
pedido, a palavra certa:
— Tenho a impressão de que você só veio para me dar
um filho, disse e só agora tivera oportunidade de cumprir a
promessa feita a Lídia. Mesmo continuar a querer o filho seria
135
ligar-se ao futuro.
Otávio fitou-a um instante assustado, sem ternura.
— Mas — murmurou ele depois de um tempo e sua voz
era hesitante, tímida e rouca —, mas você não acha que tudo
está quase terminado entre nós? — E quase desde o
princípio... — aventurou.
— Só terminará quando eu tiver um filho — repetiu ela
vaga, obstinada.
Otávio abriu os olhos em sua direção, o rosto pálido e
subitamente cansado sob a lâmpada da mesa, onde o livro
jazia aberto.
— Talvez um pouco forçada a idéia, não? — perguntou
com ironia.
Ela não a notou:
— O que houve entre nós por si só não basta. Se eu
ainda não lhe dei tudo, talvez você me procure um dia ou eu
sinta sua falta. Enquanto que depois de um filho nada nos
restará senão a separação.
— E o filho? — indagou ele. — Qual será o papel do
pobre em todo este sábio arranjo?
— Oh, ele viverá — respondeu.
— Só isso? — tentou ele o sarcasmo.
— Que é que se pode fazer além disso? — lançou ela no
ar a pergunta, de leve, sem aguardar resposta.
Otávio, julgando-a à espera, apesar da timidez e da raiva
em obedecer-lhe, concluiu hesitante:
— Ser feliz, por exemplo.
Joana ergueu os olhos e espiou-o de longe com surpresa
e certa alegria — por quê? — indagou-se Otávio assustado.
Enrubesceu como se tivesse dito uma graça ridícula. Ela viuo
raivoso e encolhido no fundo da cadeira, ofendido e pisado
como se lhe tivessem cuspido no rosto. Imóvel, inclinou-se no
entanto para ele, cheia de piedade e mais que piedade —
136
apertou os lábios, confusa — um amor cheio de lágrimas.
Fechou os olhos um instante, procurando não vê-lo, não
querê-lo mais. No fundo ainda poderia unir-se a Otávio, mal
sabia ele quanto. Bastava talvez falar-lhe sobre seus próprios
medos, por exemplo, resumindo em palavras aquela sensação
de vergonha e timidez quando chamava o garçom bem alto,
todos ouviam e só ele não escutava. Ela riu. Otávio gostaria
de saber disso. Também ligar-se-ia a ele resumindo-lhe sua
vontade de fugir quando se via entre homens e mulheres
risonhos e ela própria não sabia como colocar-se entre eles e
provar seu corpo. Ou talvez estivesse errada e a confissão não
os aproximasse. Do mesmo modo por que em pequena
imaginava que, se pudesse contar a alguém o "mistério do
dicionário", ligar-se-ia para sempre a esse alguém... Assim:
depois do i era inútil procurar o i... Até o l, as letras eram camaradas,
esparsas como feijão espalhado sobre a mesa da
cozinha. Mas depois do l, elas se precipitavam sérias,
compactas e nunca se poderia achar por exemplo uma letra
fácil como a entre elas. Sorriu, descerrou os olhos aos poucos
e agora tranqüila, enfraquecida, já podia enxergá-lo
friamente.
— Você bem sabe que não se trata disso. Oh, Otávio,
Otávio... — murmurou depois de um instante, as chamas
subitamente reavivadas — que nos acontece afinal, o que nos
acontece?
A voz de Otávio era áspera e rápida quando ele
respondeu:
— Você sempre me deixou só.
— Não... — assustou-se ela. — É que tudo o que eu
tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer
de sede diante de mim. A solidão está misturada à minha
essência...
— Não — repetiu ele, obstinado, os olhos turvos . —
Você sempre me deixou só porque quis, porque quis.
— Não tenho culpa — gritou Joana —, acredite ... Está
gravado em mim que a solidão vem de que cada corpo tem
137
irremediavelmente seu próprio fim, está gravado em mim que
o amor cessa na morte... Minha presença sempre foi essa
marca...
— Quando eu me aproximei — disse ele sardônico —,
pensava que você ia me ensinar alguma coisa mais do que
isso. Eu precisava — prosseguiu mais baixo — daquilo que
adivinhava em você e que você sempre negou.
— Não, não... — falou ela fragilmente. — Acredite,
Otávio, meus conhecimentos mais verdadeiros atravessaram
minha pele, me vieram quase traiçoeiramente... Tudo o que
sei nunca aprendia e nunca poderia ensinar.
Silenciaram um instante. Num rápido momento Joana
viu-se sentada junto ao pai, um laço no cabelo, numa sala de
espera. O pai despenteado, um pouco sujo, suado, o ar
alegre. Ela sentia o laço acima de todas as coisas. Estivera
brincando com os pés na terra e calçara apressada os sapatos
sem lavá-los e agora eles rangiam ásperos dentro do couro.
Como podia o pai estar despreocupado, como não notava que
os dois eram os mais miseráveis, que ninguém os olhava
sequer? Mas ela queria provar a todos que continuaria assim,
que o pai era dela, que o protegeria, que jamais lavaria os
pés. Viu-se sentada junto do pai e não sabia o que sucedera
um instante antes da cena e um instante depois. Só uma
sombra e ela recolheu-se a ela ouvindo a música da confusão
murmurar em suas profundezas, impalpável, cega.
— No entanto — prosseguia Otávio — você mesma
disse: há certo instante na alegria de poder que ultrapassa o
próprio medo da morte. Duas pessoas que vivem juntas —
continuou mais baixo — procuram talvez atingir esse
instante. Você não quis.
Ela não respondeu. Quando ela não lhe respondia, ele
se assustava, voltava ao tempo de criança, as pessoas
zangadas e ele obrigado a prometer, a agradar, cheio de
remorsos. Lembrou-se de uma antiga culpa em relação a
Joana e procurou livrar-se dela imediatamente, que ela
nunca mais lhe pesasse. E mesmo sabendo que ia falar fora
de propósito, não pôde conter-se:
138
— Você tem razão, Joana: tudo o que nos vem é matéria
bruta, mas nada existe que escape à transfiguração —
começou e imediatamente seu rosto cobriu-se de vergonha
diante das sobrancelhas erguidas de Joana. Forçou-se a
continuar. — Não lembra que um dia você me disse: "a dor de
hoje será amanhã tua alegria; nada existe que escape à
transfiguração". Não lembra? Talvez não tenha sido
exatamente assim...
— Lembro.
— Bem.. . Naquele instante não julguei simples suas
palavras. Tive até raiva, suponho...
— Sei — disse Joana. — Você me disse que se tivesse
dor de fígado eu viria depor aos seus pés a mesma
magnificência inútil.
— Sim, sim, foi isso mesmo — disse Otávio depressa
assustado. Você nem se intimidou, parece-me Mas... olhe,
acho que não lhe contei: depois compreendi que não havia
riqueza supérflua no que você dissera... Acho que jamais
confessei isso a você, ou já? Olhe, até suponho que nessa
frase esteja a verdade. Nada existe que escape à transfiguração...
— Corou. — Talvez o segredo esteja aí, talvez seja isso o
que eu adivinhei em você... Há certas presenças que
permitem a transfiguração.
Como ela continuasse calada, ele empurrou-se mais
uma vez.
— Você promete demais... Todas as possibilidades que
você oferece às pessoas, dentro delas próprias, com um
olhar... não sei.
E do mesmo modo como ela não se mostrara altiva ou
diminuída quando ele ironizara da primeira vez sobre a
magnificência inútil, agora ela não se rejubilava com a
humildade de Otávio. Ele olhou-a. De novo não soubera ligarse
àquela mulher. De novo ela o vencia.
Havia silêncio na sala e a luz e o vazio repousavam
sobre as teclas brancas do piano aberto. Alguma coisa era
139
morta, lenta e verdadeira. Seria vão reatar a alegria de viver
àquele instante.
— O que vem agora? — murmurou Otávio e dessa vez
ele sucumbira ao fundo das coisas, fora arrastado à verdade
de Joana.
— Não sei — disse.
Otávio perscrutou-a. Em que refletia ela, tão distante?
Parecia pairar no centro de alguma coisa móvel, o corpo
flutuante, sem apoio, quase inexistente. Como quando ela se
punha a contar fatos passados e quando ele adivinhava que
ela mentia. A cabeça de Joana vagava então leve, ela
inclinava suavemente a testa, erguia-a, balbuciava, havia um
núcleo sólido e astucioso a princípio mas depois tudo era
fluido e inocente. A inspiração guiava seus movimentos. E
Otávio olhava-a esquecido de si próprio. A angústia terminava
apertando seu coração, porque se ele quisesse tocá-la não
poderia, havia um círculo intransponível e impalpável ao
redor daquela criatura, isolando-a. A amargura tomava-o
então porque ele não a sentia como mulher e sua qualidade
de homem tornava-se inútil e ele não podia ser outra coisa
senão um homem. No jardim da prima Isabel cresciam
outrora rosas brancas. Ele olhava-as muitas vezes perplexo,
sem saber de que modo tê-las, porque diante delas seu único
poder, o de criatura, era vão. Encostava-as ao rosto, aos
lábios, aspirava-as. Elas continuavam a tremer
delicadamente viçosas. Se ao menos elas tivessem grossas
pétalas — costumava pensar —, se ao menos fossem duras...
se ao menos ao tombarem se espatifassem no solo com um
ruído seco... Sentindo penetrá-lo a graça crescente das flores,
como a de Joana, como a de Joana quando mentia, ele era
presa de um furor impotente: amassava-as, mastigava-as,
destruía-as.
Olhando-a agora, sem saber definir aquele rosto, quis
reconstituir a antiga sensação, voltar ao jardim da prima
Isabel.
Mas em lugar de qualquer outro pensamento,
subitamente compreendeu que Joana iria embora. Sim, ele
140
continuaria, havia Lídia, o filho, ele mesmo. Ela iria embora,
ele sabia... Mas que importava, ele não precisava de Joana.
Não, "não precisava", mas "não podia". E de repente não
entendeu mesmo como vivera ao seu lado tanto tempo e
parecia-lhe que depois de sua partida ele simplesmente teria
que unir o presente àquele passado longínquo, da casa da
prima Isabel, de Lídia-noiva, dos projetos de um livro sério,
de suas próprias torturas mornas, doces e repugnantes como
um vício, àquele passado apenas interrompido por Joana.
Seria bom livrar-se dela, fazer o plano do livro de direito civil.
Já se via caminhando entre suas coisas com intimidade.
Mas viu também, com estranha e súbita clareza, a si
mesmo numa tarde talvez, sentindo no peito uma dor fina,
franzindo os olhos, sabendo as mãos vazias sem olhá-las. A
indefinível sensação de perda quando Joana o deixasse... Ela
surgiria nele, não na sua cabeça como uma lembrança
comum, mas no centro de seu corpo, vaga e lúcida,
interrompendo sua vida como o badalar súbito de um sino.
Ele sofreria como se estivesse mentindo coisas loucas, mas
como se não pudesse expulsar a alucinação e a aspirasse
cada vez mais como a um ar que no interior do corpo pudesse
benditamente se transformar em água. Sentiria o espaço
aberto e límpido no seu coração, onde nenhuma das
sementes de Joana pudera cobrir de floresta, porque ela era
impossuída como o pensamento futuro. No entanto ela era
dele, sim, profundamente, difusamente como uma música
ouvida. Minha, minha, não partas! — implorou do fundo do
seu ser.
Mas ele não pronunciaria tais palavras porque desejava
que ela partisse, não saberia o que fazer de Joana se ela
ficasse. Voltaria para Lídia, grávida e larga. Aos poucos soube
que escolhera a renúncia do que era mais precioso em seu
ser, daquela pequena porção sofredora que ao lado de Joana
conseguia viver. E depois de um momento de dor, como se
abandonasse a si próprio, os olhos fulgurando de cansaço, ele
sentiu a impotência de desejar mais alguma coisa para o
futuro. Perplexo, assistia afinal a sua purificação violenta e
estranha, como se entrasse lentamente num mundo
141
inorgânico.
— Quer mesmo um filho? — perguntou ele porque,
medroso da solidão em que avançara, quis subitamente ligarse
à vida, apoiar-se em Joana até poder apoiar-se em Lídia,
como quem ao atravessar um abismo agarra-se às pedras
pequenas até galgar a maior.
— Nós não saberíamos como fazê-lo viver..., veio a voz
de Joana.
— Sim, tem razão... — disse ele assustado. E queria
violentamente a presença de Lídia. Voltar, voltar para sempre.
Compreendeu que esta seria a sua última noite com Joana, a
última, a última...
— Não... talvez eu tenha razão, prosseguia Joana.
Talvez não se pense em nada disto antes de ter um filho.
Acende-se uma lâmpada bem forte, tudo fica claro e seguro,
toma-se chá todas as tardes, borda-se, sobretudo uma
lâmpada mais clara do que esta. E o filho vive. Isso é bem
verdade... tanto que você não temeu pela vida do filho de
Lídia...
Nenhum músculo do rosto de Otávio se moveu, seus
olhos não pestanejaram. Mas todo ele se condensou e sua
palidez brilhou como uma vela acesa. Joana continuava a
falar vagarosamente, mas ele não a ouviu porque aos poucos,
quase sem pensamentos, a cólera veio-lhe subindo do coração
pesado, ensurdeceu-lhe os ouvidos, enublou-lhe os olhos. O
que..., debatia-se nele a raiva trôpega e arquejante, então ela
sabia sobre Lídia, sobre o filho... sabia e silenciava... Ela me
enganava... — A carga asfixiante cada vez pesava mais fundo
dentro dele. — Admitia minha infâmia serenamente...
continuava a dormir junto de mim, a me suportar... desde
quando? Por quê? mas, santo Deus, por quê?!...
— Infame.
Joana sobressaltou-se, levantou a cabeça rapidamente.
— Vil.
Sua voz mal se continha na garganta intumescida, as
142
veias do pescoço e da testa altejavam grossas, nodosas, em
triunfo.
— Foi tua tia quem te chamou de víbora. Víbora, sim.
Víbora! Víbora! Víbora!
Agora ele gritava histérico sem se dominar. Víbora. Cada
grito, mal se libertava da fonte convulsa, vibrava quase alegre
no ar. Ela o observava a bater os punhos sobre a mesa
enlouquecido, chorando de ira. Quanto tempo? Porque Joana
tinha consciência, como de uma música longínqua, de que
tudo continuava a existir e os gritos não eram setas isoladas,
mas fundiam-se no que existia. Até que subitamente exausto
e vazio ele sentou-se numa cadeira, devagar. O rosto flácido,
os olhos mortos, pôs-se a fitar um ponto no chão.
Os dois mergulharam em silêncio solitário e calmo.
Passaram-se anos talvez. Tudo era límpido como uma estrela
eterna e eles pairavam tão quietos que podiam sentir o tempo
futuro rolando lúcido dentro de seus corpos com a espessura
do longo passado que instante por instante acabavam de
viver.
Até que a primeira claridade da madrugada começou a
dissolver a noite. No jardim a escuridão esgarçava-se num
véu e os girassóis tremiam à brisa nascente. Porém as
luzinhas ainda vacilavam no fundo da distância como do mar.



A PARTIDA DOS HOMENS



No DIA SEGUINTE ela recebeu um bilhete do homem,
despedindo-se:
"Tive que ir embora por um tempo, tive que ir, vieram
me buscar, Joana. Eu volto, eu volto, espere por mim. Você
sabe que não sou nada, eu volto. Eu nem chegaria a ver
mesmo e a ouvir se não fosse você. Se me abandonar, ainda
vivo um pouco, o tempo que um passarinho fica no ar sem
bater asas, depois caio, caio e morro. Joana. Só não morro
agora porque volto, não posso explicar mas posso ver através
de você. Deus me ajude e Te ajude, única, eu volto. Nunca
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falei tanto a você, mas por obséquio: eu não estou quebrando
a promessa, estou? Eu te entendo tanto tanto, tudo o que
Você precisar de mim eu tenho que fazer. O Senhor te
abençoe, vai aí minha medalhinha com S. Cristóvão e Santa
Teresinha."
Dobrou a carta devagar. Lembrou-se do rosto do
homem, nos últimos dias, seus olhos molhados, turvos, de
gato doente. E ao redor a pele escurecida e arroxeada, como
um crepúsculo. Para onde fora? A vida dele certamente era
confusa. Confusa em fatos. E de certo modo ele lhe parecia
sem ligação com esses fatos. A mulher que o sustentava,
aquela distração em relação a si mesmo, como quem não teve
um começo nem espera um fim... Para onde fora? Sofrerá
muito nos últimos dias. Ela deveria ter-lhe falado,
pretendera-o mesmo, mas depois, distraída e egoísta,
esquecera.
Para onde fora? — indagou-se, os braços vazios. O
turbilhão rodava, rodava, e ela era recolocada no início do
caminho. Olhou o bilhete onde a letra era fina e indecisa, as
frases escritas com cuidado e dificuldade. Reviu o rosto do
amante e amava levemente aqueles traços claros. Fechou os
olhos um instante, sentiu novamente o cheiro que vinha dos
corredores sombrios daquela casa inexplorada, com apenas
um aposento revelado, onde conhecera de novo o amor.
Cheiro de maçãs velhas, doces e velhas, que vinha das
paredes, de suas profundezas. Reviu a cama estreita que fora
substituída por uma larga e fofa, a timidez alegre com que o
homem abrira a porta nesse dia e espiara o rosto de Joana
surpreendendo sua surpresa. O naviozinho sobre as ondas
excessivamente verdes, quase submerso. Entrecerravam-se
as pálpebras e o navio movia-se. Mas tudo deslizara sobre
ela, nada a possuíra... Em resumo apenas uma pausa, uma
só nota, fraca e límpida. Ela que violentara a alma daquele
homem, enchera-a de uma luz cujo mal ele ainda não
compreendera. Ela própria mal fora tocada. Uma pausa, uma
nota leve, sem ressonância...
Agora de novo um círculo de vida que se fechava. E ela na
casa quieta e silenciosa de Otávio; sentindo sua ausência em
144
cada lugar onde no dia anterior ainda haviam existido seus
objetos e onde agora havia um vazio ligeiramente empoeirado.
Bom que não o vira sair. E bom que, nos primeiros instantes,
ao notar dolorosamente a sua partida, julgara ainda possuir o
amante. "Ao notar a partida de Otávio" ... ? — pensou ela.
Mas por que mentir? Quem partira fora ela mesma e também
Otávio o sabia.
Despia a roupa que vestira para ir ver o homem. A
mulher de lábios úmidos e frouxos deveria estar sofrendo,
sozinha e velha na casa grande. Joana nem sabia o nome
dele... Não desejara sabê-lo, dissera-lhe: quero te conhecer
por outras fontes, seguir para tua alma por outros caminhos;
nada desejo de tua vida que passou, nem teu nome, nem teus
sonhos, nem a história do teu sofrimento; o mistério explica
mais que a claridade; também não indagará3 de mim o que
quer que seja; sou Joana, tu és um corpo vivendo, eu sou um
corpo vivendo, nada mais.
Ó tola, tola, talvez tivesse sofrido então e amado se
soubesse de seu nome, de suas esperanças e dores. É
verdade que o silêncio entre eles fora assim mais perfeito.
Mas de que valia... Apenas corpos vivendo. Não, não, ainda
melhor assim: cada um com um corpo, empurrando-o para
frente, querendo sofregamente vivê-lo. Procurando cheio dó
cobiça subir sobre o outro, pedindo cheio de covardia astuciosa
e comovente para existir melhor, melhor. Interrompeuse
com o vestido na mão, atenta, leve. Tomou consciência da
solidão em que se achava, no centro de uma casa vazia.
Otávio estava com Lídia, sentiu, foragido junto daquela
mulher grávida, cheia de sementes para o mundo.
Aproximou-se da janela, sentiu frio nos ombros nus,
olhou a terra onde as plantas viviam quietas. O globo moviase
e ela estava sobre ele de pé. Junto a uma janela, o céu por
cima, claro, infinito. Era inútil abrigar-se na dor de cada
caso, revoltar-se contra os acontecimentos, porque os fatos
eram apenas um rasgão no vestido, de novo a seta muda
indicando o fundo das coisas, um rio que seca e deixa ver o
leito nu.
145
A frescura da tarde arrepiou sua pele, Joana não
conseguiu pensar nitidamente — havia alguma coisa no
jardim que a deslocava para fora de seu centro, fazia-a
vacilar. . . Ficou de sobreaviso. Algo tentava mover-se dentro
dela, respondendo, c pelas paredes escuras de seu corpo
subiam ondas leves, frescas, antigas. Quase assustada, quis
trazer a sensação à consciência, porém cada vez mais era
arrastada para trás numa doce vertigem, por dedos suaves.
Como se fosse de manhã. Perscrutou-se, subitamente atenta
como se tivesse avançado demais. De manhã?
De manhã. Onde estivera alguma vez, cm que terra
estranha e milagrosa já pousara para agora sentir-lhe o
perfume? Folhas secas sobre a terra úmida. O coração
apertou-se-lhe devagar, abriu-se, ela não respirou um
momento esperando... Era de manhã, sabia que era de
manhã... Recuando como pela mão frágil de uma criança,
ouviu, abafado como em sonho, galinhas arranhando a terra.
Uma terra quente, seca... o relógio batendo tin-dlen... tin...
dlen... o sol chovendo em pequenas rosas amarelas e vermelhas
sobre as casas... Deus, o que era aquilo senão ela
mesma? mas quando? não sempre...
As ondas cor-de-rosa escureciam, o sonho fugia. Que foi que
perdi? que foi que perdi? Não era Otávio, já longe, não era o
amante, o homem infeliz nunca existira. Ocorreu-lhe que este
deveria estar preso, afastou o pensamento impaciente,
fugindo, precipitando-se... Como se tudo participasse da
mesma loucura, ouviu subitamente um galo próximo lançar
seu grito violento e solitário. Mas não é de madrugada, disse
trêmula, alisando a testa fria... O galo não sabia que ia
morrer! O galo não sabia que ia morrer! Sim, sim: papai, que
é que eu faço? Ah, perdera o compasso de um minueto...
Sim... o relógio batera tin-dlen, ela erguera-se na ponta dos
pés e o mundo girara muito mais leve naquele momento.
Havia flores em alguma parte? e uma grande vontade de se
dissolver até misturar seus fios com os começos das coisas.
Formar uma só substância, rósea e branda — respirando
mansamente como um ventre que se ergue e se abaixa, que
se ergue e se abaixa... Ou estava errada e aquele sentimento
146
era atual? O que havia naquele instante longínquo era
alguma coisa verde e vaga, a expectativa da continuação,
uma inocência impaciente ou paciente? espaço vazio... Que
palavra poderia exprimir que naquele tempo alguma coisa
não se condensara e vivia mais livre? Olhos abertos flutuando
entre folhas amarelecendo, nuvens brancas e muito embaixo
o campo estendido, como envolvendo a terra. E agora... Talvez
tivesse aprendido a falar, só isso. Mas as palavras
sobrenadavam no seu mar, indissolúvel, duras. Antes era o
mar puro. E apenas restava do passado, correndo dentro
dela, ligeira e trêmula, um pouco da antiga água entre
cascalhos, sombria, fresca sob as árvores, as folhas mortas e
castanhas forrando as margens. Deus, como ela afundava
docemente na incompreensão de si própria. E como podia,
muito mais ainda, abandonar-se ao refluxo firme e macio. E
voltar. Haveria de reunir-se a si mesma um dia, sem as
palavras duras e solitárias... Haveria de se fundir e ser de
novo o mar mudo brusco forte largo imóvel cego vivo. A morte
a ligaria à infância.
Mas a grade do portão era feita por homens; e lá estava
brilhando sob o sol. Ela notou-a e no choque da súbita
percepção era de novo uma mulher. Estremeceu perdida do
sonho. Quis voltar, quis voltar. Em que pensava? Ah, a morte
a ligaria à infância. A morte a ligaria à infância. Mas agora
seus olhos, voltados para fora, haviam esfriado, agora a morte
era outra, desde que homens faziam a grade do portão e
desde que ela era mulher... A morte... E de súbito a morte era
a cessação apenas... Não! gritou-se assustada, não a morte.
Corria agora à frente de si mesma, já longe de Otávio e
do homem desaparecido. Não morrer. Porque... na verdade
onde estava a morte dentro dela? — indagou-se devagar, com
astúcia. Dilatou os olhos, ainda não acreditando na pergunta
tão nova e cheia de deslumbramento que se permitira
inventar. Caminhou até o espelho, olhou-se — ainda viva! O
pescoço claro nascendo dos ombros delicados, ainda viva! —
procurando-se. Não, ouça! ouça! não existia o começo da
morte dentro de si! E como atravessasse o próprio corpo
violentamente, em busca, sentiu levantar-se de seu interior
147
uma aragem de saúde, todo ele abrindo-se para respirar...
Não podia pois morrer, pensou então lentamente. Aos
poucos o pensamento frágil tomou uma longa inspiração,
cresceu, tornou-se compacto e inteiriço como um bloco que se
ajustasse dentro de seus contornos. Não havia espaço para
outra presença, para a dúvida. O coração batendo com força,
ouviu-se atenta. Riu alto, um riso trêmulo e gorjeado. Não...
Mas era tão claro... Não morreria porque... porque ela não
podia acabar. Isso, isso. Uma rápida visão, a de um velhinho,
talvez uma mulher, uma mistura de fisionomias indistintas
numa só, balançando a cabeça, negando, envelhecendo. Não,
disse-lhes suavemente do fundo da nova verdade, não... As
fisionomias se esfumaçaram, pois se ela fora sempre. Pois seu
corpo nunca precisara de ninguém, era livre. Pois se ela
andava pelas ruas. Bebia água, abolira Deus, o mundo, tudo.
Não morreria. Tão fácil. Estendeu as mãos sem saber o que
fazer delas depois que sabia. Talvez alisar-se, beijar-se, cheia
de curiosidade e de gratidão reconhecer-se. Já sem se
prender a raciocínios, pareceu-lhe tão ilógico morrer, que se
deteve agora estupefata, cheia de terror. Eterna? Violenta...
Reflexões rapidíssimas e brilhantes como faíscas que se
entrecruzavam eletricamente, fundindo-se mais em sensações
do que pensamentos. Mudava sem transição, em saltos leves,
de plano a plano, cada vez mais altos, claros e tensos. E de
instante a instante caía mais fundo dentro de si própria, em
cavernas de luz leitosa, a respiração vibrante, cheia de medo
e felicidade pela jornada, talvez como as quedas quando se
dorme. A intuição de que eram frágeis aqueles momentos
fazia-a mover-se de leve com receio de se tocar, de agitar e
dissolver aquele milagre, o tenro ser de luz e de ar que
tentava viver dentro dela.
Novamente deslizou para a janela, respirando
cuidadosamente. Mergulhada numa alegria tão fina e intensa
quase como o frio do gelo, quase como a percepção da
música. Ficou de lábios trêmulos, sérios. Eterna, eterna.
Brilhantes e confusos sucediam-se largas terras castanhas,
rios verdes e faiscantes, correndo com fúria e melodia.
Líquidos resplandecentes como fogos derramando-se por
148
dentro de seu corpo transparente de jarros imensos... Ela
própria crescendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em
milhares de partículas vivas, plenas de seu pensamento, de
sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez
sem névoas levemente, andando, voando...
Um pássaro lá fora voou obliquamente!
Atravessou o ar puro e desapareceu na densidade de
uma árvore.
O silêncio ficou palpitando atrás dele em pequenos
sussurros. Há quanto tempo estivera observando-o, sem
sentir.
Ah, então ela morreria.
Sim, que morreria. Simples como o pássaro voara. Inclinou a
cabeça para um lado, suavemente como uma louca mansa:
mas é fácil, tão fácil... nem é inteligente... é a morte que virá,
que virá... Quantos segundos haviam decorrido? Um ou dois.
Ou mais. O frio. Percebeu que por um milagre tomara agora
consciência daqueles pensamentos, que eles eram tão
profundos que haviam decorrido sob outros materiais e
fáceis, simultaneamente... Enquanto ela vivera o sonho,
observara as coisas ao redor, usara-as mentalmente,
nervosamente, como quem crispa as mãos na cortina
enquanto olha a paisagem. Fechou os olhos, docemente
serena e cansada, envolvida em longos véus cinzentos. Um
momento ainda sentiu a ameaça de incompreensão nascendo
do interior longínquo do corpo como um fluxo de sangue.
Eternidade é o não ser, a morte é a imortalidade — boiavam
ainda, soltos restos de tormenta. E ela não sabia mais a que
ligá-los, tão cansada.
Agora a certeza de imortalidade se desvanecera para
sempre. Mais uma vez ou duas na vida — talvez num fim de
tarde, num instante de amor, no momento de morrer — teria
sublime inconsciência criadora, a intuição aguda e cega de
que era realmente imortal para todo o sempre.
149



A VIAGEM


IMPOSSÍVEL EXPLICAR. Afastava-se aos poucos daquela
zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem
um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na
região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas
vagas e frescas como as da madrugada. Da madrugada
erguendo-se no campo. Na fazenda do tio acordara no meio
da noite. As tábuas da casa velha rangiam. De lá do primeiro
andar, solta no espaço escuro, afundara os olhos na terra,
procurando as plantas que se torciam enrodilhadas como
víboras. Alguma coisa piscava na noite, espiando, espiando,
olhos de um cão deitado, vigilante. O silêncio pulsava no seu
sangue e ela arfava com ele. Depois a madrugada nasceu
sobre as campinas, rosada, úmida. As plantas eram de novo
verdes e ingênuas, o talo fremente, sensível ao sopro do
vento, nascendo da morte. Já nenhum cão vigiava a fazenda,
agora tudo era um, leve, sem consciência. Havia então um
cavalo solto na campina quieta, a mobilidade de suas pernas
apenas adivinhada. Tudo impreciso, mas de súbito na
imprecisão encontrara uma nitidez que ela apenas adivinhara
e não pudera possuir inteiramente. Perturbada pensara:
tudo, tudo.
As palavras são seixos rolando no rio. Não fora felicidade
o que sentira então, mas o que sentira fora fluido, docemente
amorfo, instante resplandecente, instante sombrio. Sombrio
como a casa que ficava na estrada coberta de árvores
folhudas e poeira do caminho. Nela morava um velho
descalço e dois filhos, grandes e belos reprodutores. O mais
novo tinha olhos, sobretudo olhos, beijara-a uma vez, um dos
melhores beijos que jamais sentira, e alguma coisa erguia-se
no fundo de seus olhos quando ela lhe estendia a mão. Essa
mesma mão que agora repousava sobre o espaldar de uma
cadeira, como um pequeno corpinho aparte, saciado,
negligente. Quando era pequena costumava fazê-la dançar,
como a uma mocinha tenra. Dançara-a mesmo para o homem
que fugia ou fora preso, para o amante — e ele fascinado e
angustiado terminara por apertá-la, beijá-la como se
150
realmente a mão sozinha fosse uma mulher. Ah, vivera muito,
a fazenda, o homem, as esperas. Verões inteiros, onde as
noites decorriam insones, deixavam-na pálida, os olhos
escuros. Dentro da insônia, várias insônias. Conhecera
perfumes. Um cheiro de verdura úmida, verdura aclarada por
luzes, onde? Ela pisara então na terra molhada dos canteiros,
enquanto o guarda não prestava atenção. Luzes pendendo de
fios, balançando, assim, meditando indiferentes, música de
banda no coreto, os negros fardados e suados. As árvores
iluminadas, o ar frio e artificial de prostitutas. E sobretudo
havia o que não se pode dizer: olhos e boca atrás da cortina
espiando, olhos de um cão piscando a intervalos, um rio
rolando em silêncio e sem saber. Também: as plantas
crescendo de sementes e morrendo. Também:
longe em alguma parte, um pardal sobre um galho e alguém
dormindo. Tudo dissolvido. A fazenda também existia naquele
mesmo instante e naquele mesmo instante o ponteiro do
relógio ia adiante, enquanto a sensação perplexa via-se
ultrapassada pelo relógio.
Dentro de si sentiu de novo acumular-se o tempo vivido.
A sensação era flutuante como a lembrança de uma casa em
que se morou. Não da casa propriamente, mas da posição da
casa dentro de si, em relação ao pai batendo na máquina, em
relação ao quintal do vizinho e ao sol de tardinha. Vago, longínquo
mudo. Um instante... acabou-se. E não podia saber se
depois desse tempo vivido viria uma continuação ou uma
renovação ou nada, como uma barreira. Ninguém impedia
que ela fizesse exatamente o contrário de qualquer das coisas
que fosse fazer: ninguém, nada... não era obrigada a seguir o
próprio começo... Doía ou alegrava? No entanto sentia que
essa estranha liberdade que fora sua maldição, que nunca
ligara nem a si própria, essa liberdade era o que iluminava
sua matéria. E sabia que daí vinha sua vida e seus momentos
de glória e daí vinha a criação de cada instante futuro.
Sobrevivera como um germe ainda úmido entre as
rochas ardentes e secas, pensava Joana. Naquela tarde já
velha — um círculo de vida fechado, trabalho findo —,
naquela tarde em que recebera o bilhete do homem, escolhera
151
um novo caminho. Não fugir, mas ir. Usar o dinheiro intocado
do pai, a herança até agora abandonada, e andar, andar, ser
humilde, sofrer, abalar-se na base, sem esperanças.
Sobretudo sem esperanças.
Amava sua escolha e a serenidade agora alisava-lhe o
rosto, permitia vir à sua consciência momentos passados,
mortos. Ser uma daquelas pessoas sem orgulho e sem pudor
que a qualquer instante se confiam a estranhos. Assim antes
da morte ligar-se-ia à infância, pela nudez. Humilhar-se
afinal. Como pisar-me bastante, como abrir-me para o mundo
e para a morte?
O navio flutuava levemente sobre o mar como sobre
mansas mãos abertas. Inclinou-se sobre a murada do convés
e sentiu a ternura subindo vagarosamente, envolvendo-a na
tristeza.
No convés os passageiros andavam de um lado para
outro, suportando mal a espera do lanche, ansiosos por
reunir o tempo ao tempo. Alguém disse, a voz magoada: olhe
a chuva! Realmente aproximava-se a névoa cinzenta, olhos
cerrados. Daí a pouco viam-se pingos largos caírem sobre as
tábuas do convés, o barulho de alfinetes tombando, e sobre a
água, furando-lhe imperceptivelmente a superfície. O vento
esfriou, levantaram-se as golas dos casacos, os olhares
subitamente inquietos, fugindo da melancolia como Otávio
com seu medo de sofrer. De profundis...
De profundis? Alguma coisa queria falar... De profundis...
Ouvir-se! prender a fugaz oportunidade que dançava com os
pés leves à beira do abismo. De profundis. Fechar as portas
da consciência. A princípio perceber água corrompida, frases
tontas, mas depois no meio da confusão o fio de água pura
tremulando sobre a parede áspera. De profundis. Aproximarse
com cuidado, deixar escorrerem as primeiras vagas. De
profundis... Cerrou os olhos, mas apenas viu penumbra. Caiu
mais fundo nos pensamentos, viu imóvel uma figura magra
debruada de vermelho-claro, o desenho com um dedo úmido
de sangue sobre um papel, quando se arranhara e enquanto
o pai procurava iodo. No escuro das pupilas, os pensamentos
152
alinhados em forma geométrica, um superpondo-se ao outro
como um favo de mel, alguns casulos vazios, informes, sem
lugar para uma reflexão. Formas fofas e cinzentas, como um
cérebro. Mas isso ela não via realmente, procurava imaginar
talvez. De profundis. Vejo um sonho que tive: palco escuro
abandonado, atrás de uma escada. Mas no momento em que
penso "palco escuro" em palavras, o sonho se esgota e fica o
casulo vazio. A sensação murcha e é apenas mental. Até que
as palavras "palco escuro" vivam bastante dentro de mim, na
minha escuridão, no meu perfume, a ponto de se tornarem
uma visão penumbrosa, esgarçada e impalpável, mas atrás
da escada. Então terei de novo uma verdade, o meu sonho.
De profundis. Por que não vem o que quer falar? Estou
pronta. Fechar os olhos. Cheia de flores que se transformam
em rosas à medida que o bicho treme e avança em direção ao
sol do mesmo modo que a visão é muito mais rápida que a
palavra, escolho o nascimento do solo para... Sem sentido. De
profundis, depois virá o fio de água pura. Eu vi a neve tremer
cheia de nuvens rosadas sob a função azul das vísceras
cobertas de moscas ao sol, a impressão cinzenta, a luz verde
e translúcida e fria que existe atrás das nuvens. Fechar os
olhos e sentir como uma cascata branca rolar a inspiração.
De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim.
Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai
sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras
são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a
parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha
vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não
existes dentro de mim? por que me fizeste separada de ti?
Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó
e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu
só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meus dedos e
encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso
fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto
que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece,
quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei
que existi daqui a poucos anos, o que me resta para
viver é pouco e o que me resta para viver no entanto
continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim?
153
que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus, dai-me o que
preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como
um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas,
vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é
sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver
em lágrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu
auxílio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo
por vós e nada responde e meu desespero é seco como as
areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilhame,
Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou
nada, das profundezas chamo por vós, das profundezas chamo
por vós das profundezas chamo por vós das profundezas
chamo por vós...
Agora os pensamentos já se solidificavam e ela respirava
como um doente que tivesse passado pelo grande perigo.
Alguma coisa ainda balbuciava dentro dela, porém seu
cansaço era grande, tranqüilizava seu rosto em máscara Usa
e de olhos vazios. Das profundezas a entrega final. O fim...
Mas das profundezas como resposta, sim como resposta,
avivada pelo ar que ainda penetrava no seu corpo, ergueu-se
a chama queimando lúcida e pura... Das profundezas
sombrias o impulso inclemente ardendo, a vida de novo se
levantando informe, audaz, miserável. Um soluço seco como
se a tivessem sacudido, alegria rutilando em seu peito intensa,
insuportável, oh o turbilhão. Sobretudo aclarava-se
aquele movimento constante no fundo do seu ser — agora
crescia e vibrava. Aquele movimento de alguma coisa viva
procurando libertar-se da água e respirar. Também como
voar, sim como voar... andar na praia e receber o vento no
rosto, os cabelos esvoaçantes, a glória sobre a montanha...
Erguendo-se, erguendo-se, o corpo abrindo-se para o ar,
entregando-se à palpitação cega do próprio sangue, notas
cristalinas, tintilantes, faiscando na sua alma... Não havia
desencanto ainda diante de seus próprios mistérios, ó Deus,
Deus, Deus, vinde a mim não para me salvar, a salvação
estaria em mim, mas para abafar-me com tua mão pesada,
com o castigo, com a morte, porque sou impotente e medrosa
em dar o pequeno golpe que transformará todo o meu corpo
154
nesse centro que deseja respirar e que se ergue, que se
ergue... o mesmo impulso da maré e da gênese, da gênese! o
pequeno toque que no louco deixa viver apenas o pensamento
louco, a chaga luminosa crescendo, flutuando, dominando.
Oh, como se harmonizava com o que pensava e como o que
pensava era grandiosamente, esmagadoramente fatal. Só te
quero, Deus, para que me recolhas como a um cão quando
tudo for de novo apenas sólido e completo, quando o
movimento de emergir a cabeça das águas for apenas uma
lembrança e quando dentro de mim só houver
conhecimentos, que se usaram e se usam e por meio deles de
novo se recebem e se dão coisas, oh Deus.
O que nela se elevava não era a coragem, ela era
substância apenas, menos do que humana, como poderia ser
herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e
o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre
em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua
força selvagem o ar ao seu redor e ninguém nunca o
perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma
nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua
pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de
quentes pensamentos brotavam e alastravam-se pelo seu
corpo assustado e o que neles valia é que encobriam um
impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de
seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criandose,
erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a
superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda
não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo
aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância
e de sua dolorosa imaturidade rebentaria seu próprio ser,
enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E
um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão
vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu
fizer será cegamente seguramente inconscientemente,
pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente
lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um
dia virá em que todo meu movimento será criação,
nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de
mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o
155
que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu
princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um
gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura
submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a
alma de um animal e quando eu falar serão palavras não
pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de
vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o
que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum
espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os
homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de
mim para notar sequer que estarei criando instante por
instante, não instante por instante: sempre fundido, porque
então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei
brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o
que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas,
ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a
incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos
porque basta me cumprir e então nada impedirá meu
caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou
descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.

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