terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Florbela Espanca "A Oferta do Destino"



Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve,
deu-me uns sapatos e disse-me:
- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha...
Caminha sempre, sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e
não te detenhas, não pares nunca!... A estrada da vida tem
trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a
escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto
sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os
malmequeres, deixa cantar os rouxinois. Quer seja lisa, quer
seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre!
Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se;
deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim, os olhos
perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que
há-de prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor
da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes,
cantavam nas matas os rouxinois... Outras vezes, ao sol
ardente do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como
beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como
farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de
corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um
perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso
abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e
do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma
imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade,
onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só
instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos
caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar
um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem
anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu
frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma
fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada,
os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca
embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o
sempre?!...

Florbela Espanca

Florbela Espanca "O Dominó Preto"



Havia já mais de oito anos que andava atrás dela. E só agora conseguira que ela se
resolvesse a ouvi-lo. Há tantos anos, santo Deus! Ainda ele estava moço na mercearia da
Rua dos Olivais, ainda nem sonhava que lhe haviam de dar sociedade na casa, nem
tinha amealhado os seis contos de réis que tinha agora na Caixa Geral de Depósitos, já
gostava dela, já gostava de a ver passar, pisando no seu passinho grácil e desenvolto a
calçada de pedras pontiagudas. Os gritinhos que ela dava quando punha o pé em falso,
o pé de boneca calçado de sapatinhos de verniz com saltos de palmo e meio! E quando
entrava na loja! O cubículo escuro, sujo, feio, era de repente um grande salão feérico
todo cheio de luzes, deslumbrante de asseio, bonito como nenhum. O pobre caixeirito,
de mãos deformadas pelas frieiras, de larga cara bonacheirona e ingénua, ridículo no
seu fato de cotim da mangas curtas, de cabeleira encrespada e sobrancelhas hirsutas,
ficava a olhar para ela, esquecido do que lhe haviam pedido, vendo apenas na sua
frente a boca fresca e os olhos gaiatos da rapariguinha risonha que, sem piedade,
troçava dele constantemente. Mas que lindo riso o dela! Muito aberto, muito sonoro,
enchia a casa de trilos de pássaros, mostrava-lhe os dentes todos muito sãos, muito
brancos, e toda branca por dentro, muito cor-de-rosa como a polpa carnuda e
sumarenta dum morango acabado de colher numa manhã de Primavera.
No banco da avenida, sob a acácia já cheinha de folhas, noite escura, o Joaquim
entretinha-se a passar religiosamente as contas do seu rosário de recordações dos
longos anos que passara atrás dela, inutilmente, mendigando sem se cansar um
bocadinho de amor que matasse a fome e a sede ao seu corpo de adolescente casto
que nunca se atrevera a seguir uma mulher pelas ruas escusas, pelos cantos misteriosos,
quando a cidade cúmplice fecha os olhos e finge que dorme.
Sempre gostara daquela, daquela só, e um dia – já lá iam dois anos! – enchera-se de
coragem e dissera-lho. A gargalhada que ela lhe dera na cara! Tinha-a Aida nos ouvidos,
aquela divertida e escarnecedora gargalhada que lhe fizera chegar as lágrimas aos
olhos.
Ele era um pobre diabo, mas queria-a, queria-a como sabem querer os rústicos das suas
montanhas, queria-a como todo o ardor dos seus vinte anos, cheios de seiva como um
chaparro novo, queria ganhá-la custasse o que custasse, embora tivesse de andar de
rastos atrás dela a vida inteira. Tinha tempo! E assim fez: trabalhou sem descanso e sem
desalento meses e meses, todos os dias do ano, quer de Inverno quer de Verão, mal luzia
o Sol no alto até noite fechada, sem domingos nem dias santos. Mal pago e mal
alimentado, mourejou e fez vontades, foi servo de toda a gente, com a tenaz ideia fixa
encasquetada a martelo no estúpido bestunto, sem querer saber de mais nada, não
dando conta do que ia pelo mundo, do que se passava para além do encardido balcão
de pinho, aonde lhe ia correndo a mocidade, agrilhoado ao trabalho como um escravo.
O patrão, com o andar dos tempos deu finalmente por ele, observou-o, e um belo dia,
deitando contas ao lucro que podia tirar duma bela acção, mandou-o ensinar a ler. À
noite, depois da loja varrida e tudo arrumado, que o patrão não se ensaiava para lhe
pregar dois murros bem puxados, o rapazito descia os dois degraus que fazia comunicar
a lojeca com a húmida toca onde dormia. Ah, se as paredes pudessem falar! Um coto de
vela a arder sobre a única cadeira de pau e, sentado na cama de tábuas, as mãos
crispadas nos cabelos rijos, cabelos de fome, a cabeça tonta, doido de sono, o pobre lá
ia decifrando as letras, soletrando, juntando as sílabas, estudando a lição para o outro
dia, à custa de esforços desesperados e duma força de vontade que nenhuma força
poderia vencer. Quando compreendia, a larga cara bonacheirona iluminava-se-lhe num
sorriso que, entre aquelas quatro paredes, onde as aranhas teciam tranquilamente as
suas teias de seda e prata fosca, era por si só um belo milagre de amor! O manancial de
águas claras que na planície vai matar sedes e reverdecer os campos, jorra do seio das
duras pedras das montanhas em sítios agrestes, longe e alto!
Uma noite, ao estudar a lição, deu com o nome dela: “Maria”. Soletrou-lhe as duas
sílabas, de olhos arregalados, boca aberta, num êxtase, e os grossos lábios, subitamente,
sem ele saber como, foram pousar-lhe no livro roto e cheio de nódoas, sobre as sílabas
mágicas, enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos e os soluços lhe enchiam o peito.
Esteve mais de meia hora a soletrar-lhe o nome: “Ma-ria”, a olhar para as letras, sinais
cabalísticos que queriam dizer tudo o que ele tinha para dizer, traços que faziam surgir,
como varinhas de condão, um mundo de coisas boas, de coisas que ele nem sabia
porque eram tão lindas e tão boas!
E assim foram passando os anos. A pouco e pouco foi subindo, juntando dinheiro, à custa
de se privar de tudo, de economias insensatas, ia-se matando; mas conseguira juntar os
seis contos de réis, que tinha na Caixa, que eram bem dele, só dele, e alcançar
sociedade na casa, sociedade que também lhe dava um lucrozinho certo que não era
nada para desdenhar…
E o Joaquim ria-se baixinho com um riso feliz, no seu banco da avenida, debaixo da
acácia já cheinha de folhas, onde os pardais dormiam muito encostadinhos uns aos
outros por causa do frio. Já tinha com que pôr a casa, um quarto ou quinto andar numa
casinha acabada de construir, numa rua sossegada e limpa, que ele tinha já debaixo de
o lho, ali para os lados do rio. E não ficava muito longe da mercearia… poderia ir e vir
todos os dias a pé, para poupar o dinheiro do eléctrico… Uma mobília de quarto, de
guarda-vestidos com portas de espelho… um aparador de pedra mármore… cadeiras de
palhinha e um canapé para a sala… uma casa de luxo sólido, de coisas boas, que ele
tinha dinheiro e não se importava de o gastar todo. Para a vida, lá se iria ganhando, e
nunca haveria de faltar à Maria: o casaco de pelúcia, o seu vestidinho de seda de vez
em quando e os sapatos de verniz para sair à rua… Nada! Que ele não a queria ver feita
uma pobretona, de xale pelas costas e lenço na cabeça. Havia de ser uma senhora,
mais linda e mais bem posta que algumas feitas à pressa que ele via por essas ruas, a
fingir que eram grande coisa… A sua Maria havia de ter tudo o que ela quisesse e, para
começo, já amanhã lhe iria comprar aqueles brincos compridos de pedras azuis que
tinha visto na ourivesaria ao lado e que tão bem deviam ficar-lhe, a baloiçarem-se na
pontinha rosada da orelha, naquele gesto que ela fazia com tanta graça, a dizer que
“não” e “não”, a marota! Sempre, a todos os seus rogos, a todas as suas promessas, a
tudo o que fizera para a captar, para a seduzir de há oito anos até… até ontem, Ah,
ontem!
E o Joaquim via na noite escura brilhos de lua cheia, escancarava a boca até às orelhas
num largo riso silencioso. Ontem!... E o Joaquim fechava os olhos esverdeados que
luziam como os de um gato bravo no ardor do desejo, no triunfo de a sentir finalmente
conquistada, finalmente muito sua, depois de tantos torvos anos de miséria e de angústia,
depois de por ela ter passado fome e frio, depois de a ter querido como sabem querer as
almas simples e rudes, na persistência da ideia fixa, invencível e tenaz, encaixada no
cérebro branco como silva agarradiça de moita brava.
Ontem!... E o Joaquim via a rua mal iluminada do bairro pobre, a gente que passava
afadigada, carregada de embrulhos, gente do povo, gente humilde de volta a casa
depois de um dia de fadiga, os eléctricos cheios, num grande ruído de ferragens, tim,
tim.. tim, tim... Ladeira abaixo; via-a a ela, onde luzia o ouro duma medalhinha de Nossa
Senhora da Conceição; ouvia-lhe o riso garoto cheio de reticências, evocador de
carícias proibidas e desejadas, o riso que às vezes lhe fazia vir à ideia coisas em que
seria melhor não pensar.
Pobre rapariga! Ia agora fazer caso das coisas que lhe diziam! Não tinha sido nem uma
nem duas vezes que lhe tinham dito mal dela; as referências que lhe faziam não eram
nada boas, lá isso não! Que não era séria, que não tinha mesmo juizinho nenhum, que o
não queria a ele, mas que talvez quisesse outros, que andava metida com gente de
teatro, que mais isto e mais aquilo, enfim, um ror de coisas que às vezes o entristeciam.
Nada tinham poupado para lhe fazerem perder aquela cisma, para o arredarem daquele
fado em que o viam andar há anos, mas tudo tinha sido em vão. Podia lá acreditar uma
coisa daquelas! Mentiras! Más palavras de má gente! Invejas!... E o Joaquim cerrava os
punhos num gesto de rancor. A sua vontade era esganar toda aquela gente que dizia
mal dela, cortar-lhes a língua aos bocados como a blasfemos sem honra nem vergonha
que se atreviam a pôr a boca numa órfã honesta e trabalhadora. Costurava para o
teatro, era verdade, e então? É por acaso algum crime trabalhar, ganhar a sua vida, a
triste côdea e o direito duma telha que a abrigasse do frio e da chuva?! Gente mais
ruim!...
Mas agora, no banco da avenida, deitando para trás das costas os maus pensamentos, o
Joaquim era feliz, era amado, estava à espera dela, que tinha prometido vir: “Às dez
horas lá estarei, no primeiro banco à direita de quem sobe, um pouco acima do Avenida,
lá estarei, espere por mim, sem falta.”
Logo ao anoitecer fora para lá, não fosse a ela dar-lhe na cabeça ir mais cedo ou ele ter
ouvido mal. Talvez ela tivesse dito às oito horas, já não se lembrava bem, Ele estava
como doido! Não era admiração nenhuma ter trocado as horas, ter-se enganado. Ah,
ontem!... Sabia ele lá bem de que freguesia era, ao ouvir-lhe dizer, pela primeira vez na
sua vida, que sim, que iria falar com ele, combinarem a sua vida, trocarem as suas
promessas, falarem de amor. De amor!...
Numa tremura, como se estivesse com uma forte sezão, tacteou o banco onde ela, dali a
pouco, se sentaria ao lado dele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. A sua Maria! Os
pensamentos do seu cérebro zumbiam como abelhas ao sol; não podia seguir o fio de
nenhuma ideia; era como se tivesse dentro da cabeça um novelo de fio de ouro,
emaranhado, num torvelinho, num rodopio, enrolando-se e desenrolando-se, bordando
vertiginosamente visões de sonho, demasiado belas, demasiado douradas para que os
seus pobres olhos de simples as pudessem ver sem ficar deslumbrados. Pobre morcego
de olhos piscos no resplendor dum meio-dia a arder em sol!
Mas já deviam ser horas. É verdade, que horas seriam? Esteve para ali amodorrado, a
falar sozinho, sem prestar atenção a coisa alguma, em ricos de ela passar e não a ver.
Tacteou no bolso do colete o grande relógio de prata. Ao puxar por ele, para ver as
horas, as mãos enrodilharam-se-lhe no dominó preto que vestia. Sorriu, satisfeito. Mais um
capricho do demónio da rapariga, que era levadinha da breca! De que ela se havia de
lembrar? Como era Terça-Feira Gorda...
“Leve um dominó preto, com um laço azul no ombro, para o conhecer. Havemos de nos
divertir muito!” E ele fizera-lhe a vontade, pois é claro! Mirou-se complacentemente de
alto a baixo: o dominó de setineta preta que lhe chegava quase aos pés, comprido
como sotaina de clérigo, o farfalhudo laço de seda azul sobre o ombro... Tal qual ela
havia dito...
O Joaquim ria, mas, ao ver as horas, o sorriso gelou-se-lhe repentinamente nos lábios.
Teve um sobressalto como de quem acorda com um encontrão. Dez horas e meia! Que
estaria ela a fazer que não chegava? Já teria passado? Enquanto estivera para ali a
cismar, era capaz de ter passado por ele sem ter dado por isso. Murmurou aflito: valhame
Deus! Levantou-se, lançou em torno um olhar esgazeado. Na avenida, a fila
ininterrupta dos autos continuava a desenrolar-se. À porta do Avenida, estacionava
ainda um grupo palrador; gente corria à sua vida, aos seus prazeres, ao seu destino; duas
mulheres passaram por ele numa grande algazarra, rindo muito, fazendo grandes gestos.
Pensativo, contornou o maciço de flores vagarosamente, deu mais uns passos para cima,
mas, lembrando-se de repente de que ela podia chegar e ir-se embora sem o ver, voltou
a correr para o banco.
Mas, afinal, que tolice estar assim a afligir-se por uma demora de meia hora! A rapariga
era séria, que diabo Não ia agora duvidar dela, da sua boa fé! O dito, dito. Era ter
paciência! Isto de mulheres, nunca estão prontas a horas, é mais um alfinete para aqui,
mais uma besuntadela para acolá, mais um laço, mais uma fita... E para largarem o
espelho é o cabo dos trabalhos!... E, à doce visão da sua Maria a enfeitar-se para ele, a
ver-se ao espelho para lhe parecer bonita a ele, o coração dilatou-se-lhe num suspiro de
consolo, e um sorriso radioso entreabriu-lhe novamente os lábios que o sofrimento
contraíra.
Agitou-se no banco, envolveu-se melhor no dominó, que a noite ia-se pondo fria, e
resolveu esperar com resignação. Passou, porém, uma hora, duas, e ela sem aparecer...
A inquietação mordeu-lhe novamente a alma... Porque não viria? Onde estaria àquelas
horas da noite?...
Continuavam a passar autos, continuava a passar gente, e ela nada! Nem sombras dela
sequer!... Ele bem olhava para todos os lados, bem perscrutava, de olhos muito abertos,
as trevas lá no fundo, por onde ela havia de vir. Nada!...
As luzes do Avenida cegavam-no, fechava os olhos para as não ver. A inquietação, a
angústia, a mortal aflição dos que esperam sem esperança corroíam-no lá por dentro
como chumbo derretido. E o pobre, no meio da multidão folgazã duma noite de Entrudo,
tremia como se estivesse num deserto sem vivalma, sem gota de água ou folha de
palmeira povoando a imensidade desolada e tétrica, até aos confins do horizonte, até ao
fim do mundo!
O polícia de giro, adivinhando do que se tratava, deu uma volta em redor do banco e
seguiu, sem lhe dirigir a palavra. Um perdigueiro novo, preto como azeviche, veio
rebolar-se na relva a dois passos dele, dando latidos de alegria por se ver solto. Filhofamília
com tinetas de boémio conseguiu, com as suas cabriolas, arrancá-lo por um
instante aos seus lancinantes pensamentos. Estendeu a mão para o acariciar, mas o
cãozito, esquivo e desconfiado, fugiu-lhe e perdeu-se nas pesadas sombras duma rua ao
lado.
Que horas seriam?... Viu outra vez o relógio: três horas! Ela já não vinha! Era impossível!...
Que estava ele ali a fazer naquele maldito banco, sozinho?... Num supremo esforço de
toda a sua vontade, retesou os músculos, levantou-se. Um homem que ia a passar recuou
assustado, ao ver de súbito na sua frente aquele fantasma negro; depois de passar, olhou
ainda para trás, curioso. O polícia de serviço, que já não era o mesmo, perguntou-lhe
desabridamente o que estava ali a fazer, há que tempos, naquele banco. Num humilde
sorriso, que mais parecia um esgar de choro, respondeu-lhe, esforçando-se por dar ao
seu todo um ar pândego, que estava à espera duma rapariga para irem cear, para
festejarem a Terça-Feira Gorda... O polícia, satisfeito com a explicação, piscou o olho,
indulgente, e seguiu à sua vida. Ele tornou a sentar-se. Podia ser, podia muito bem ser
que ela viesse ainda. Ainda não era tarde! Podia ter adoecido... Mas a estes enganos
com que pretendia iludir-se, o pobre coração, que era como uma chaga em sangue
dentro do seu peito, revoltava-se num sobressalto das suas últimas energias, numa
náusea de nojo perante a perfídia imerecida. Ah, Maria, Maria!
Era então verdade todo o mal que diziam dela, todo o mal que lhe tinham dito! Sem
vergonha, sem juízo, sem consciência, passava a vida a desgraçar homens, a
desgraçada! Mas então a sua casinha, a sua casinha nova na rua limpa e sossegada, as
suas economias, todos os seus sonhos, toda a sua vida?! Que seria feito daquilo tudo,
santo deus?! Ah, a mentira, a ilusão de todos esses miseráveis anos que tinham passado,
o escárnio de engano que tinha sido o ar que respirara, o pão que comera a viver para
ela, a trabalhar para ela, a sofrer por ela! Não a teria nunca, nunca! Não lhe saberia
nunca o gosto à boca, àquela boca de tentação, vermelha e húmida, como um cravo a
abrir!
Soluços violentos faziam-lhe estalar o peito, a emoção apertava-lhe a garganta em
tenazes de ferro, caíam-lhe lágrimas em fio pela cara abaixo. Na sua grotesca
humildade era um espantalho desprezível. Mascarado, ridículo, lavado em lágrimas, era
mais infeliz que as pedras e dava vontade de rir!
Quatro horas! O riso dela, rio cheio de reticências, riso canalha e escarninho, fustigou-o
como uma chicotada na cabeça, ao evocá-lo. Tinha feito pouco dele! Nunca fizera
tensões de vir! Onde estaria ela?... Ah, Maria, Maria!...
Num arranco, apalpou no bolso das calças, com a mão crispada, o canivete que trazia
sempre; de olhos fechados, a boca torcida num ricto odioso, abriu-o e, num gesto de
doido, enterrou fundo no pulso a estreita lâmina afiada. O sangue jorrou como um repuxo
e salpicou-lhe os dedos. Sem pensamentos, a cabeça a fugir-lhe, tonto, desvairado,
soltou um grito rouco, abafado como um rugido de fera ferida, dobrou-se sobre si mesmo
como um fantoche e, de olhos muito abertos, ficou-se a contemplar, num ar pasmado, o
sangue a correr-lhe pela mão, em grossos traços negros até ao chão.
Para as bandas do oriente o céu tomava uns vagos tons de nácar. O perdigueiro boémio,
cansado de folgar, veio a passos lentos para ele, cheio de gravidade, desconfiado,
farejando de longe o sangue. Os pardais, aconchegados na acácia que a Primavera
enchera já de folhas tenras, começavam a mexer-se e a pipiar docemente.
O Joaquim quis levantar-se, mas não pôde, quis abrir os olhos, não teve forças. Um
grande bem-estar invadia-lhe o corpo todo, um estranho entorpecimento tornava-lhe as
pernas e os braços moles como trapos. A cabeça pendeu-lhe paras as costas do banco.
O sangue continuava a correr pelo braço, pela sotaina negra, num ténue fiozinho tépido.
De repente, aos ouvidos do moribundo chegou vagamente, como num sonho, um ruído
de passos. Fez um grande esforço para se endireitar, para pensar: Seria ela?... Os passos
aproximavam-se... Nas primeiras claridades ainda indecisas da madrugada adivinhou-se
um grupo de homens e mulheres vestidos de dominós pretos. Vinham conversando e
rindo animadamente, de volta de um baile, talvez...
Ao passar por ele, uma das mulheres exclamou:
- Olha aquele no banco, parece um faz-tudo.
- Está bêbado – disse a outra.
E uma gargalhada estridente acordou a manhã como um gorjeio de pássaro. Ao ouvir
aquele riso que se afastava, o agonizante, no seu banco, estremeceu. Num medonho
esforço conseguiu desembaraçar-se da mortalha que o envolvia já, conseguiu expulsar
o fantasma da morte que rondava perto e pôde mexer os braços, abrir os olhos. Ele bem
sabia que ela havia de vir, ele bem sabia!...
O rido juvenil extinguia-se na sombra, em notas de clarim... O grupo afastava-se, sumiase
ao longe...
O moribundo tornou a deixar cair os braços, tornou a fechar os olhos e ficou-se muito
rígido, muito estendido no seu banco, com um sorriso nos lábios, iludido e contente...
O céu num pálido azul-esverdeado, acentuava os tons de madrepérola como uma
grande concha aberta, dourava-se levemente na orla... Uma andorinha, a primeira,
passou veloz como uma seta, tente à cara dele, com um gritinho agudo de alegria...
Despontava a madrugada.

Ironia do Destino



Rogério, 21 anos, trabalhava em um banco na Rua 15 de Novembro. Sofia, 19 anos, em um escritório bem na esquina da Rua 15 com a Rua Direita. Eles sempre almoçavam no mesmo restaurante. Ele sempre sozinho sentava-se no mesmo lugar. Ela sempre com as três amigas, eram inseparáveis, também tinham uma mesa preferida, de frente para a mesa dele. Ambos eram órfãos de pai e mãe. Tanto ele como ela trabalhavam há dois anos nas empresas pegavam o mesmo ônibus, e às vezes sentavam lado a lado. Moravam no mesmo bairro, na mesma rua, apenas um ponto de diferença. Sempre apressados para não chegarem atrasados em seus respectivos empregos, nunca repararam um no outro, até que um dia, na ida para o trabalho uma freada brusca do ônibus fez escapar das mãos de Sofia uma pasta cheia de serviços. Ao se abaixar para pegar a pasta bateu cabeça com Rogério, que também se abaixava para pegar a pasta, num gesto de gentileza. Com sorrisos simultâneos desculparam-se ao mesmo tempo, outro sorriso simultâneo e se entre olharam. Ela sentiu uma sensação estranha, suas pernas bambearam, seu coração disparou, nunca havia sentido algo igual. Ficou sem fala. Ele pediu desculpas pelo bater de cabeças e entregou a pasta à garota tocando levemente em sua mão. Nunca havia sentido um perfume tão suave. Por mais rápido que tinha sido o toque em sua mão deu para sentir o quão macia era sua pele. Foi amor à primeira vista. Depois deste dia nunca mais seria a mesma coisa, tudo mudaria em suas vidas.
Toda vez que se encontravam no ônibus cumprimentavam-se. Sentavam-se juntos e conversavam o trajeto todo. Passaram a almoçar juntos e ele a levá-la até a porta de sua casa. Foi quando surgiu o primeiro beijo. Apaixonaram-se e se amaram. Viveram um amor intenso e cheio de aventuras. Passaram a dividir tudo, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas. Gostavam das mesmas músicas, dos mesmos filmes. Foram feitos um para o outro, decidiram se casar. Tornaram-se bem sucedidos profissionalmente. Ele deu para ela a casa dos seus sonhos em um bairro nobre de São Paulo.
Passaram-se 15 anos. O que eles mais queriam era um filho, mas este nunca veio, fizeram vários tratamentos, queriam um filho para completar o ciclo de suas vidas, poder compartilhar todas as suas alegrias, dar tudo de bom e do melhor. Talvez Deus não quizesse assim. Passaram-se 20 anos e o sonho se realizou, Sofia estava grávida. Sofia tivera a melhor gravidez, suas amigas a invejavam, pois sofreram demais quando ficaram grávidas. Passou pelos melhores médicos. Parou de trabalhar para curtir aquele momento único de ter um ser dentro do seu ventre, estava gerando uma nova vida, a vida que compartilharia todas as alegrias e conquistas do casal. Era maravilhoso. Tudo estava dando certo.
Toda noite Rogério chegava com um ramalhete de flores, sentava-se ao lado de Sofia para acariciar sua barriga, sempre brincava que estava fazendo cócegas nos pezinhos do bebê, era muito divertido. Já sabiam que era um menino, se chamaria Victor. Victor por causa de todas as realizações e vitórias conquistadas pelo casal. As amigas de Sofia sempre perguntavam para ela. que homem era aquele? Não existiria outro igual a ele no mundo, nem nos próximos 20 séculos.
Sofia estava só em casa quando sentiu a primeira contração. Era a hora, chegou o momento que ela mais esperava. Pôs em prática tudo aquilo que aprendeu no pré-natal. A mala com roupas para ela e o bebê já estava pronta. Primeiro ligou para Rogério, caixa postal, ele havia dito que estaria em uma reunião importantíssima. Ligou para o seu médico. Em 10 minutos uma ambulância estacionava em sua garagem. Pegou sua bolsa e o celular. Ligaria da ambulância para o seu amado, a mala o enfermeiro havia levado. Tentou mais uma, duas, três vezes, teve outra contração. Ela não acreditava. No dia mais importante de suas vidas ele não estaria presente. Tentou novamente, desta vez para a secretária que no segundo toque atendeu, bem na hora de outra contração. Mesmo assim Sofia pediu para ela interromper a reunião e a secretária, ouvindo os gritos de dor, não pensou duas vezes, abriu a porta da sala de reuniões sem bater, olhou para Rogério, não precisou dizer nada ele já havia entendido. Despediu-se da reunião largando tudo na mesa, pegou sua carteira e saiu em disparada.
Algo inesperado aconteceu, Sofia sentiu mais uma contração, mas essa era diferente, uma dor aguda seguida de um grito que assustou os enfermeiros dentro da ambulância. Sangue apareceu escorrendo por entre as pernas de Sofia. O enfermeiro pede então para o motorista ir mais rápido, já colocando uma agulha no braço de Sofia, mas o trânsito era infernal. Mudou o trajeto para sair do trânsito.
Rogério era quem tentava ligar para Sofia agora, mas ninguém atendia. Dentro da ambulância estavam preocupados com o estado dela, não dava para ela atender o celular. O trânsito também fez Rogério mudar o trajeto para o hospital. Com ruas livres acelerou seu carro. Não podia perder aquele momento. Mais uma tentativa de ligar para Sofia e na distração não viu o cruzamento chegar. Quando soltou o celular e olhou para frente era tarde demais. Acertou bem no meio de uma ambulância que vinha passando. A pancada foi tão forte que o carro e a ambulância se fundiram formando uma massa de metal retorcida. Várias pessoas se aglomeraram em volta do acidente. 15 minutos foi o tempo que tiveram que esperar pelo socorro. Ninguém podia fazer nada: Rogério estava preso nas ferragens, na ambulância nada se ouvia. O único som que se ouvia era de Rogério chamando por Sofia. Só os mais sádicos olhavam aquela cena sem nada sentir no coração. Os para-médicos chegaram. Havia duas equipes. Rogério já não tinha mais forças apenas balbuciava para o bombeiro que segurava uma de suas mãos que sua mulher estava dando a luz e ele tinha que chegar na maternidade, ela o esperava, ele já estava perdendo os sentidos, perdera muito sangue. Foi nessa hora que o bombeiro que cortava as ferragens e o para-medico se olharam. Não havia mais jeito.
Dentro da ambulância todos os esforços estavam voltados para manter os sinais vitais de Sofia, para pelo menos salvar o bebê. Isso mesmo Rogério bateu na ambulância em que estava Sofia. Rogério ainda preso nas ferragens e quase sem forças viu os bombeiros tirando uma maca da ambulância, sangue e lagrimas escorriam pelo seu rosto, era Sofia, a sua amada. Tentou dizer seu nome, mas não deu tempo, seus olhos se fecharam e seu coração parara de bater, sua respiração cessara. No hospital Sofia só teve tempo de sussurrar alguma coisa no ouvido da enfermeira e se foi. Tentaram de todas as formas reanimá-la, mas tudo em vão. O que podiam fazer era salvar o bebê.
Tudo que relatei aqui nesta carta consegui com os diários que minha mãe e meu pai deixaram junto com o império que eles construíram, e que herdei. Os relatos finais consegui com os sobreviventes da ambulância, bombeiros e para-médicos que participaram do resgate.
Meu nome é Victor tenho 15 anos, fui criando pela enfermeira que ouviu o pedido de minha mãe. Hoje estou aqui, deitado em uma cama de hospital com um câncer raro e em estagio terminal. Talvez ironia do destino? Trocaria tudo que meus pais deixaram para tê-los ao meu lado, apenas para segurar em minhas mãos.