sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

R.K Brocket - O Fantasma




O apartamento era frio e escuro. Ficava o dia todo fechado, pois ele trabalhava oito horas de seus dias em um escritório nojento e cheirando a nicotina. O trabalho era repetitivo e irritante, mas precisava dele.
Quinta-feira. Mais um dia antes de encher a cara novamente. Toda a sexta-feira embriagava-se para agüentar mais uma noite de solidão, revolta e impotência em relação à vida.
Fechou a porta e entrou. A única iluminação era a das luzes da cidade e de outros apartamentos ali presentes. Morava no décimo segundo andar de um prédio antigo e cinza fazia quase sete anos. Sem esperanças de mudar para um local melhor. Andando pela já acostumada escuridão, chegou ao interruptor e o apertou. Uma luz amarelada e suja fez-se no meio do teto da sala de estar. Dois sofás escuros, um tapete recheado de desenhos abstratos, uma pequena mesa onde existia um cinzeiro e três restos de cigarro, uma toalha verde e um copo usado. Cansadamente caminhou até o sofá e sentou.
Não ligaria a televisão. Odiava qualquer programa televisivo desde a adolescência. Odiava as novelas falsas, cheias de gente rica e muito bem-sucedida. Ou seja, o seu contrário. Não queria admitir, mas nos últimos anos de sua vida estava odiando mais coisas e situações possíveis. E sentia-se bem por isso.
Os amigos o esqueceram. Antes o apartamento onde estava era muito movimentado, cheio de risadas ressoando pelas paredes e conversas animadas. Bebidas, risadas, amigos. Tudo evaporou.
Checou a secretária-eletrônica presente em um pequeno suporte ao lado do sofá. Uma ligação de sua mãe, dizendo estar preocupada e que fazia mais de duas semanas que ele não ligava. Nada mais. Não iria ligar para sua mãe. Com o tempo ela o esqueceria também.
Levantou-se e caminhou até a cozinha. Um caos de louças sujas dentro da pia enferrujada e restos de comida de microondas sobre a mesa manchada com diversos tipos de cores imagináveis. Era um relaxado, ele bem sabia. Mas não se importava muito com isso. Afastou os espessos e compridos cabelos escuros do rosto pálido e caminhou até a geladeira. Tinha uma garrafa de vodka, ele sabia. Que se dane sexta-feira, vou encher a cara hoje mesmo, ele pensou amargamente.
Era uma garrafa de Smirnoff. Tomaria pura e meditaria sobre sua vida miserável mais uma vez, como todas as noites desde o acidente. Pegou um copo simples e junto com a garrafa encaminhou-se à sala. Resolveu ligar a televisão.
Uma explosão de cores, sorrisos e mulheres surgiu na tela de vinte polegadas. Novela das oito, talvez. Teve a absoluta certeza quando escutou o construtivo diálogo de duas personagens. "Nossa, como você agüenta ficar tanto tempo sem um homem? Se fosse comigo, estaria subindo pelas paredes agora..."
"Miserável" ele sussurrou para a sala vazia, tomando um bom gole da vodka pura. O líquido passou por sua garganta queimando lentamente e quando atingiu o interior de seu corpo, provocou uma sensação não muito agradável, mas já conhecida.
Ele já tivera garotas. Uma boa porção delas. E a maioria o deixou enlouquecido de ódio. A sua última garota o deixou fazia seis anos. Não agüentou a barra. Desde então, nunca mais tocara em uma mulher. Elas sentiam repulsa, ele sabia. Outro gole, outra chama nas entranhas.
Observou a janela da sala. Podia ver a torre de uma igreja no meio de edifícios tão cinzas quanto onde estava. Uma coleção de pequenos quadrados brilhantes - as janelas de outros apartamentos. Será que alguém se encontrava nessa mesma situação? Caminhou até a janela. Por duas vezes em três anos chegou a colocar um dos pés no parapeito. Faltou pouco para dizer adeus à vida e encontrar o asfalto duro lá embaixo. Mas não teve coragem - ondas de frio e calor percorriam seu corpo e lágrimas intrometidas surgiam em seus olhos. Nessas duas vezes amaldiçoou-se em silêncio e foi rapidamente para a cama, onde ficara sob as cobertas durante o dia todo. Quando o pessoal do escritório ligou para seu apartamento, ele falou que estava indisposto, talvez fosse uma gripe. Nada que um chá quente curasse.
Foram as únicas vezes que pensara em suicídio.
Naquela noite apenas olhava o universo de pequenos quadrados brilhantes. Pensou ter vislumbrado uma silhueta qualquer... Contudo, poderia ser somente sua imaginação. A televisão conversava sozinha no meio da sala, assim como continuara sua vida triste após aquele acidente. Já não freqüentava restaurantes e bares, pois enojava as pessoas. As crianças tinham medo de sua fisionomia. Mas o que doía como uma punhalada de aço quente em seu coração era o abandono - amigos, namorada, família. Não queriam que descobrissem ele, o pequeno segredo sujo de cada um, algo demasiado horrendo para se revelar.
Ele amava Thaís mais do que tudo... Entretanto ela provou que não o amava tanto, como costumava dizer a ele deitada em sua cama, após terem se amado lenta e deliciosamente, em um gozo apaixonado e um tanto adolescente.
Maldito acidente de moto.
Desviara uma pequena criança que subitamente entrou no meio da estrada, em uma tarde de sábado. Era agosto. Ainda lembra dos médicos consolando a sua mãe.
Se ele não estivesse usando o capacete, agora poderia ser tarde demais.
O calor do asfalto deformou a parte direita de seu rosto e a forte batida contra o cimento ocasionou uma lesão em seu cérebro, a qual o deixara impossibilitado de comunicar-se adequadamente. O desgosto o tornou impotente e Thaís simplesmente não agüentou tudo aquilo. A ferida não cicatrizava, sempre com a presença de pus. Idas e voltas a médicos, dinheiro gasto sem possibilidade nenhuma de reconstrução de seu rosto e de sua integridade.
Enquanto recuperava-se do acidente, Thaís o visitava em seu leito de hospital. Mas a fisionomia da linda garota mudou completamente quando observou a imensa cicatriz em seu rosto, aquela massa de carne deformada como um tumor maligno que insistia em sair de sua pele.
Thaís não aparecera mais. Seus amigos relutaram em lhe contar que ela estava saindo com um colega da faculdade antes deles mesmos sumirem de sua vida. No fundo até ficou feliz por ela. Amava-a, não queria que ela carregasse aquela cruz deformada para o resto de sua vida. Era jovem ainda, muito jovem.
"Deus foi injusto comigo" ele pensou, tomando mais um gole de vodka e sentindo e efeito em seu organismo. "Se Deus realmente me amasse, não permitiria que eu estivesse usando aquele maldito capacete. E agora eu estaria longe daqui... descansando talvez."
Depois de certo tempo, sua mãe também se mudou, deixando o apartamento para ele. Ela falou que seria para o bem dele, para uma melhor privacidade, afinal já era um homem. Mentira.
Sete anos aquela noite. Sete anos em que morrera para o mundo. Lembrou de sua mãe, do perfume de seus cabelos macios e de sua pequena estatura. De como corriam pelo jardim de sua casa há muito tempo atrás. Ajoelhou-se no meio da sala e colocou a mão esquerda sob os olhos. As lágrimas eram quentes e tristes.
Mãe.
Essa única palavra que pode ocasionar risos alegres ou um choro silencioso. Infância, brinquedos, aniversários, sorrisos. Família.
Levantou-se, enxugou o rosto pálido e marcado para sempre. Tomou a última dose de vodka e caminhou em direção ao quarto. Ficaria ali, em sua cama desfeita e solitária, acalmando-se até que o sol surgisse no meio daquela cidade tão cinza. Tal como um fantasma na madrugada, impedido de seguir, preso ao passado e sem chances de se libertar. A dor dilacerava a alma, mas ainda assim era melhor; era uma companhia.
Seus olhos fecharam quando o relógio marcou duas horas da madrugada.