domingo, 13 de março de 2011

Jô Oliveira - Recomeço





Beatriz entra em seu apartamento, como todos os dias, às 18:38. Dessa vez encontra móveis quebrados, livros jogados no chão, vasos estilhaçados. Pensa se tratar de um assalto e procura, nervosa, seu celular dentro da bolsa. Liga 19...
- Desliga! Diz um homem do qual ela só consegue ver a silhueta.
- O que você quer?
- Desliga!
- Ok, ok... estou desligando... Ela coloca o aparelho sobre o sofá.
- Senta!
- Essa voz... não acredito!
- Cala a boca, sua vadia!
O homem sai da penumbra e ela confirma suas suspeitas. O olhar de medo dela é recebido com um tapa que ecoa pelo pequeno apartamento. Beatriz põe a mão no rosto e lança um olhar de ódio para o homem a sua frente. Ele, com um sorriso no canto dos lábios e uma pistola na mão esquerda, a olha com ar superior.
- Você achou mesmo que a humilhação que me fez passar não teria volta?
- Maurício, isso já faz dois anos! Você disse que tinha me perdoado...
- Perdoar? Você é mesmo muito cínica.
- Ah, quer saber? Se vai atirar, atira logo e acaba com esse papo de marido traído, que de coitadinho nessa história você não tem nada... Disse Beatriz se levantando e indo à cozinha pegar uma cerveja.
- Então o culpado da sua safadeza sou eu agora?
- Safadeza? Eu só transei com meu chefe e com dois amigos seus, meu querido. Podia ser pior. Ou melhor, depende do ponto de vista.
- Eu sempre odiei essa sua ironia.
- E eu sempre odiei o seu cheiro, a sua voz, a sua barba sempre bem feita. Não sei nem por que me casei com você.
- Eu sei, porque você queria uma pessoa que lhe apoiasse quando seus pais morreram. Foi só pra isso que eu servi.
- Serviu? Nem isso você consegui, seu verme! Anos de terapia... Eu era uma menina... Sabe que aquela terapia era muito mais pra agüentar aquele casamento morno que a gente tinha do que pra lidar com a morte dos meus pais? Cinco anos da minha vida... Que desperdício!
Maurício apontou a arma para Beatriz. E olhou-a de cima a baixo. Aproximou-se abrindo o zíper das calças. Ela corre para trás do sofá e olha-o:
- Como você é patético... nunca me fez gozar em cinco anos que ficamos casados e agora me vem com esse ar de grande amante... Pois fique sabendo que eu dou pra qualquer homem, menos pra você.
Ele a agarrou pelos cabelos, jogou-a no chão. E enquanto carregava a arma, disse:
- Ou você transa comigo ou meto uma bala no meio dessa sua carinha linda.
- Bem... até que pode ser bom... de repente a raiva, o orgulho ferido te aqueceram... Mas deixa que eu te mostro como eu fazia com os homens com os quais te traí.
Tirando a arma da mão dele, Beatriz tira sua roupa e as calças do ex-marido. Exibe-se para ele. Domina-o. Enlouquece-o. Mordidas, arranhões, risadas, suspiros, murmúrios, gemidos... Horas a fio os dois se confundem na sombra que projetam na parede.
Exausto, Maurício se atira à cama ofegante e sonolento. Fecha os olhos. Ela, então, espera a respiração ficar mais profunda, levanta-se, olha-se no espelho... os cabelos estão desgrenhados e a maquiagem dos olhos escorrendo. Vai ao banheiro, lava o rosto e ajeita os cabelos. Veste-se. Vê a pistola em cima da cama. Pega. Olha o revólver e o ex-marido. Ali está a solução dos seus problemas. Em dois anos de separação, ela já havia se mudado três vezes. Ele sempre a encontrava. Ele e aquele maldito sentimento masculino de posse. Beatriz não agüentava mais olhar para aquele homem. Os telefonemas de madrugada, os xingamentos, os empregos que ele a fez perder.
- Acorda! Acorda, seu bosta!
- O que você vai fazer?
- Um favor à humanidade.
- Por favor, Beatriz, pelos anos que nós vivemos juntos...
- Os piores da minha vida. Tenta outra coisa, seu idiota!
- Eu imploro, não atira. Maurício se ajoelha aos pés da ex-esposa.
- Essa imagem é a que mais combina com você. Submisso, suplicante, decadente. Eu sempre tive vergonha de apresentar você pras minhas amigas... Sempre com essa cara de homem correto, chefe de família, bom marido... Sem novidades, sem emoção. Eu dormia fazendo sexo com você.
- Beatriz... por favor...
- Abre a boca!
O disparo foi seco. A parede cinza ficou manchada de vermelho.
- Droga, vou ter que pintar de novo...
Contemplou o corpo caído, inerte, com um olhar de pânico. Empurrou o cadáver com o pé, para ter certeza de que não havia possibilidade de ter sobrevivido. Sentando no sofá, Beatriz colocou as mãos atrás da cabeça e ficou a pensar no que faria. Minutos depois, vai ao quarto, pega um lenço branco numa gaveta e esfrega-o na pistola. Em seguida, coloca a arma na mão direita de Maurício... Pára, pensa e corrige, ele era canhoto. Com o dedo dele aperta o gatilho e dispara a arma. Analisa: cena perfeita para um suicídio... o marido inconformado com a separação, vai à casa da ex-mulher e se mata, para afetá-la. Arma e pólvora na mão, digitais... tudo.
Voltando ao quarto, Beatriz coloca em uma bolsa duas ou três peças de roupa, dinheiro, chaves e um livro. Sai do apartamento, pega um táxi e pede ao motorista que a leve ao aeroporto. Lembra de um ex-namorado que trabalha numa companhia aérea.
- Nunca pensei que aquele imbecil me seria tão útil. Murmura consigo mesma.
Chegando ao aeroporto, dirige-se ao guichê e pergunta à recepcionista se ela poderia falar com Ricardo; ela informa que ele está em uma reunião com a presidência da empresa, mas que já deve estar no fim. Menos de cinco minutos depois, Beatriz está num café conversando com o ex-namorado.
- Quem diria, não? Você... gerente... Casou?
- E tive filhos.
- Jura?
- Você me abandonou, eu queria ter uma família, você sabe.
- Sei, sei sim... Hum... Ricardo, eu tenho um pouco de pressa, queria te pedir um favor.
- E o que eu ganho com isso?
- O que quiser, é só pedir. Respondeu Beatriz com um sorriso malicioso.
- Você não mudou nada... Que ótimo. Diga. Do que se trata?
- Eu preciso de uma passagem pra qualquer lugar, não importa. O importante é que a data de embarque seja alterada. Tem que constar que eu embarquei ontem. Você consegue isso?
- Consigo o que você quiser, meu bem. Mas o que você andou aprontando, hein?
- Nada que lhe interesse. Mas pago bem, você já teve chance de conhecer os meus serviços. Disse, sorrindo e piscando para Ricardo.
Dentro de duas horas, Beatriz estava sentada, num avião a caminho de qualquer lugar. Pediu água à comissária e olhou pela janela, pensativa. Esperaria a notícia da morte do ex-marido, que provavelmente só seria encontrado quando começasse a feder, não que ele não fedesse em vida. A intimação para depor deveria chegar em seguida. E ela já preparava sua melhor expressão de surpresa e horror.
Abriu a bolsa, tirou o livro que trouxera e recomeçou a lê-lo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Jô Oliveira - Uma Qualquer





Sentada numa cadeira de uma delegacia qualquer, Eulália passa a língua nos dentes pensativa. Estão quebrados. Ela lembra então do episódio da noite anterior. Um cliente. Fez de tudo e no fim da noite não quis pagar os serviços prestados. Devido a sua reação agressiva e indignada, deu-lhe um soco que lhe quebrou os dentes incisivos e a deixou desacordada. Quando despertou, sabe-se lá quanto tempo depois, estava sozinha naquele quarto que fedia a enxofre e mofo. Sua bolsa estava aberta e todo seu dinheiro havia sido levado. Aborrecida e desgrenhada, ela sai do quarto, conversa com o dono daquele lugar chinfrim, onde costumava ir com seus clientes, e acerta o pagamento do pernoite para mais tarde.
Ainda pensativa, lembra da morte da mãe. Assassinada pelo namorado que acreditava em uma possível, mas não confirmada, traição. Crimes passionais são sempre tão risíveis... Não há de ser à toa que está entre os pecados capitais, que são, diga-se, os melhores de se cometer.
Tais pensamentos levam-na ainda a outro acontecimento. Remete-se ao dia em que seu pai a acordou no meio da noite, não cheirava à bebida, como de costume, no entanto, chegou a sua cama cambaleante. Fingimento? Talvez. Disse que ela estava virando mocinha e que os rapazes em breve começariam a desejá-la. E que ele, como pai, tinha direito de tê-la antes de todos os outros. Aos dez anos, não compreendera muito bem o que ele quisera dizer com "direito de tê-la". Até que ele começou a passar a mão em suas coxas e tentar beijá-la. Oferecendo alguma resistência e tentando fazer algum barulho para que sua mãe, que dormia profundamente no quarto ao lado ouvisse, escutava ameaças sussurradas pelo pai.
É só do que consegue lembrar. Os demais detalhes foram apagados por sua memória seletiva. Lembra, porém, que depois foi a uma delegacia fazer corpo de delito, mas não antes de ir a um hospital com um forte sangramento. Recorda-se também que seu pai respondeu a um longo processo e passou um dia preso. Acabou solto por um habeas corpus impetrado por sua advogada.
Dispersa em seus pensamentos, Eulália estava totalmente alheia aos insultos e gracejos de dois policiais que tomavam café perto de onde ela se encontrava. Ainda imersa em reminiscências, ela pensava com que dinheiro ia pagar o aluguel miserável do cubículo ainda mais miserável que a abrigava. O maldito cliente da noite anterior não só não pagou o programa como roubou o dinheiro que ela separara para o aluguel. Teria que trabalhar dobrado. "Mulher de vida fácil?", pensou e fez um muxoxo.
Caindo em si, levantou-se e disse ao delegado que precisava ir embora, mas que a fiança ela pagaria a ele com a única coisa que ela sabia fazer profissionalmente, porque dinheiro, esse ela não tinha. Ele deu um sorriso com o canto dos lábios e disse: "Apareço no meu apartamento mais tarde. Se é que se pode chamar aquele muquifo de apartamento". Ela deu um sorriso triste e se retirou. Já na rua movimentada e barulhenta acendeu um cigarro e parou num boteco de esquina para tomar uma cerveja.
Eulália não era bonita, nem jovem, não tinha charme algum e elegância definitivamente não era o seu forte. Seu olhar trazia a sombra que traz o olhar das pessoas sofridas e resignadas. Nunca se imaginara em outra profissão, embora já sentisse a perda numerosa de clientes por conta da idade avançada. No entanto, se sentia igualmente velha para uma mudança de vida. Não tinha família nem amigos. Era uma solitária, mas não por opção. A vida que levava exigia isso dela.
Tomando sua cerveja pensou que quando morresse não haveria velório, enterro... provavelmente iria para o IML com um adesivo escrito "indigente" colocado em seu dedão do pé direito. Tal pensamento a angustiava. Quem choraria sua morte? Alguém sentiria sua falta? Talvez o dono do prédio suburbano em que morava, quando fosse cobrar o aluguel e a porta não fosse atendida. Talvez o dono do motel barato ao qual ela levava seus parcos clientes. Ou nem eles.
Ao terminar a cerveja, tira da bolsa seu batom vermelho, passa em seus lábios murchos, cochicha algo ao ouvido do dono do boteco e vai embora sem rumo. Certamente volta para a vida anônima e não sentida que a angustia mais que a morte com as mesmas características.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Lílian Maial - Dia Seguinte





Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela - seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espremido entre prédios altos e algumas árvores insistentes. No fundo, gostaria de morar frente ao mar e ser acordada pela brisa fresca, com cheiro de peixe vivo. Mas já era conformada com a fumaça, os barulhos urbanos e os pássaros da resistência.
Deu sua espiada matinal até onde seu campo de visão permitia. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de combustível no carro (sim, morava em frente a um posto de gasolina e suas histórias). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do frentista ao percebê-la em trajes de dormir.
Era um dia cinzento e frio. Notou faces carrancudas, castigadas pela vida. Um homem sem grandes expectativas busca consolo nos copos de botequim, antes de ser subjugado pela obediência às normas. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, abraçando a mochila, como que a esconder os jovens seios teimosos a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma segunda-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada da sirene da garagem. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, porém ele não parecia ser do tipo que fecha janelas por queda de temperatura. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
A buzina estridente dos carros, no sinal de trânsito, a desviaram por segundos - ambulância pedindo passagem. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na esquadria, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta à janela algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Há quanto tempo nem recebia lista telefônica... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro distraída, aquilo em sua mente. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Conversa com as pessoas apenas com uma parte do cérebro. A outra está lá. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a velocidade dos ansiosos. Liga a televisão, mas não consegue acompanhar a taxa do dólar e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, no quarto andar. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar, aguardando a porta da garagem abrir-se ao primeiro que chegasse ou saísse do prédio. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela - seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espraiado no horizonte, no encontro entre céu e mar. A brisa marinha a embaraçar-lhe os cabelos. No fundo, o cheiro de peixe a deixava enjoada. Gostaria de morar longe do mar e ser acordada pelo canto suave de pássaros no campo, com cheiro de café e pão de queijo. Mas já era conformada com a corrosão do sal, o condomínio de emergentes e os engarrafamentos do bairro mais caro da cidade.
Deu sua espiada matinal até onde sua varanda alcançava. Do décimo quinto andar podia ver até o umbigo de Deus. Ventava muito. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de margarina com zero por cento de gordura no desjejum (sim, morava em frente a um casal de meia idade e com meia-vida). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz do apartamento em diagonal ao seu, quando a viu em trajes de dormir.
Era um dia claro e ensolarado. Notou as pessoas miúdas, feito formigas atarefadas, com prováveis níveis de glicose acima do recomendável. Gravatas, "notebooks", celulares, malhas colantes em corpos excessivos, crianças esquisitas, domésticas indomesticáveis. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata com a criança. Lança-lhe alguns impropérios e reúne forças de macho para mais um dia carregando pedras. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, com a mochila nas costas, exibindo os jovens seios adestrados a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma terça-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se no apartamento em frente. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava calor, era fato, e ele não parecia ser do tipo que fecha janelas para não entrar poeira. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
Os gritos da criança esquizofrênica do vizinho de porta, em novo surto, a desviaram por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na quina da varanda, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro agoniada. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Não conversa com ninguém. Seu cérebro está em regime de emergência. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a pasmaceira dos deprimidos. Liga o "home theater", mas não consegue acompanhar a queda da bolsa e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela - seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, encoberto pela neblina entre as montanhas. O vento cortante a eriçar-lhe os pêlos. No fundo, o cheiro de pão de queijo a engordava. Gostaria de morar na cidade, no burburinho, onde as coisas acontecem. Ser acordada por buzinas e sirenes. Ver gente e seus problemas, de casa para a lida. Mas já era conformada com a vidinha pacata e preguiçosa, com as casas parecidas na rua privativa de moradores.
Deu sua espiada matinal até onde sua janela alcançava e seu jardim permitia. A neblina já estava se desfazendo e o orvalho havia deixado seus rastros úmidos nos banquinhos de jardim, nas pétalas e em algumas faces. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de camisa limpa e passada (sim, morava em frente a um casal evangélico, que pregava a vinda do Messias, que só chegava bem mais tarde, quando o marido já havia ido para a igreja). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz que entregava o pão e leite na porta, ao arrancar-lhe, com a imaginação adolescente, os trajes de dormir.
Era um dia claro, embora sem sol. Notou as pessoas fechadas em seus casacos e seus mundinhos,
feito ostras friorentas. Sobretudos, sobre nada. Senhores e senhoras varrendo quintais e suas próprias folhas de outono. Esposas lânguidas e gordas. Crianças rosadas, livres e mal educadas. Domésticas domesticadas. Mocinhas em bandos, com seus seios jovens e pontudos, disputando os galanteios grosseiros dos rapazes. Casacos, jaquetas, suéteres. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata, que passa com a criança, e na branquinha em sua terceira dose, para suportar a dose que é seu trabalho de recolher os lixos. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma quarta-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se na casa do outro lado da rua. O carro branco não saía da toca. As janelas estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, mas ele não parecia ser do tipo que fecha janelas. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
O mugido da vaca que passava solene pela rua, a desviou por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, debruça o mais que pode no parapeito da janela, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em fazer ruídos no portão. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a casa. Silêncio.
Trabalha o tempo todo desesperada. Não se recorda do trajeto e nem dos colegas. Não conversa. Não parece ter cérebro. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a solidão dos homens. Liga o rádio, mas não consegue lembrar a letra daquela música sertaneja, nem acompanhar as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Lílian Maial - Sete Vidas




Um dia de plena atividade no escritório: papéis, telefones, documentos, lamentos, pessoas pra lá e pra cá, urgências e carências. Sílvia ainda estranhava esses sons, embora já estivesse nesse setor havia mais de dois anos. Vez por outra, concentrava-se nas tarefas de tal forma, que nem percebia as conversas ao redor, como se ficasse isolada numa redoma.
Estava num desses momentos, completamente absorta, quando arrancada dos pensamentos por uma voz muito pouco amistosa:
- "Abre esse cartão aí!"
Ela custou a entender a ordem e reconhecer de quem partia. Voltou-se e viu José Renato com uma expressão de ira, rosto vermelho e contraído, olhos apertados, fixos na tela do computador.
À princípio, Sílvia não compreendeu o comando; olhou novamente para a tela e viu que havia deixado a caixa de entrada de seu provedor aberta, com a listagem de todos os e-mails recebidos, em seu microcomputador. Dentre eles, um cartão de Jader, seu amigo de longa data, colega de trabalho dos tempos do outro setor, com quem convivera por mais de 10 anos, e com quem mantinha correspondência desde que mudara para essa nova função. Não havia nada de mais, era apenas troca de gentilezas, notícias pessoais e das famílias, coisas de amigos que sempre se viam e se falavam, mas que as contingências haviam separado do espaço físico.
Nada de mais, poderia perfeitamente abrir o cartão, não tinha nada a esconder, porém, de repente, aquela invasão de sua privacidade, a falta de confiança, além da agressividade na voz e nos olhos de José Renato a tiraram do sério. Ela ainda tentou mostrar a bobagem que ele estava fazendo, insistindo que não havia maldade nos e-mails que trocava, mas nada parecia adiantar. José Renato ia ficando mais e mais autoritário, quase gritando:
- "Abre esse cartão aí!"
Sílvia, mais uma vez, como que tentando salvar a situação, dispara:
- "Você sabe bem o que está fazendo, José? Sabe o que isso significa? Sabe o que vai acontecer, se insistir nisso?"
- "Não me interessa!" - retrucou ele. - "Quero ver esse cartão!"
Muito decepcionada, vendo-se pressionada pela situação, Sílvia concorda em abrir todas as mensagens que ele quisesse, mas informou que tudo estaria acabado entre eles.
Mesmo assim, ele mantém a posição, e Sílvia sente o gosto de morte em sua boca, a morte de um sonho, de um lindo amor.
Ela se conhecia muito bem, sabia que a carne era fraca, que facilmente cederia a um beijo ou uma carícia de José Renato, como já acontecera antes, em outras demonstrações de ciúme desmedido, quando ele sempre a agredia e ofendia. Ela cedia depois, quando ele pedia desculpas, alegando fazer aquilo por ciúme, por "amar demais". No entanto, o que talvez ele não percebesse era que, a cada vez, o amor morria um pouquinho. Como um gato, com sete vidas, só que ela não sabia quantas vezes mais sobreviveria. E aquele gosto na boca era bem conhecido, seguido da enchente muda nos olhos.
Obedeceu, como sempre.
Abriu o cartão, deixando que José Renato lesse as palavras de encorajamento, vindas do amigo fiel e presente, que sabia de sua alma inquieta e generosa, de mãe amorosa, de profissional séria, de mulher sensível.
Não satisfeito José Renato a obriga a abrir todas as outras mensagens do amigo Jader. Numa delas, bastante longa, falando de coisas espirituais, José Renato sequer lê o texto, e manda que ela desça a mensagem até seu final, onde ele pôde ler as palavras: - Que a Paz de Jesus lhe acompanhe em todos os dias de sua vida".
Sílvia olha para ele, num misto de raiva, mágoa, dor e vitória, pela pureza do que ele acabara de ler. Entre os dentes, ela consegue dizer para ele deixá-la em paz, para sumir dali, que não queria mais vê-lo. Ele tenta falar, mas ela estava tão transtornada, que qualquer coisa ali cairia mal, e ele saiu. E ela sentiu uma espécie de alívio transitório, até que a dor do fim tomasse conta do seu coração.
- "Melhor assim" - pensou para si - "Ele não pode achar que faz o que quer e fica por isso mesmo. E a minha dignidade? E a minha palavra? E meu amor próprio? Não, dessa vez não vou ceder, estou disposta a ir até o fim (sabia que, se ele lesse seus pensamentos, duvidaria dessa convicção toda, tão acostumado estava com a falta de vergonha de Sílvia, que sempre voltava pra ele)".
Por muito tempo Sílvia se questionara o porquê de aceitar esse comportamento condenável de José Renato. Achava um absurdo essas mulheres que se submetem a situações de agressão física, verbal e moral, em nome de amor. Sempre acreditara que "quem ama não mata" e que também não humilha, não ofende, não invade, não magoa gratuitamente. No entanto, l estava ela, mulher independente, interessante, bonita e talentosa, atrelada a uma posição que combatia energicamente. O que acontecia? Por que não se livrava simplesmente daquele homem tão diferente de seus ideais masculinos de companheirismo?
Percebeu que aquele amor era como uma dependência química, como uma adição. O amor era a droga ilícita que era injetada em suas veias, em doses quase letais, que geravam uma overdose de paixão, uma alteração em seu comportamento, em seu juízo, seu julgamento. Sabia que era errado, mas não conseguia reagir.
Ainda naquela manhã ele tentou ligar, mas Sílvia não suportaria mais agressões, mais atrevimentos. Decidiu não atender.
Saiu mais cedo e notou que ele a seguira. Ela não parou, não titubeou, tomou seu rumo e se orgulhou disso. Estava firme.
No dia seguinte, à noite, já mais serena, recebeu um telefonema dele no celular, mas também não atendeu.
No outro dia, pela manhã, como de praxe, ele telefona para combinar de vê-la. Sílvia estava morta de saudade, sabia que não resistiria ao cheiro da pele de José Renato, ao seu calor, seu abraço, e pensou em recusar vê-lo. Porém, quando ia deixar quieto, imaginando que ele se desculparia, ele pede que ela vá para lhe devolver o talismã, legado de seu pai, que ele havia deixado com ela, como prova do imenso amor que sentia.
Ao fazer tal pedido, ela, que já se via perdoando aquele deslize dele, percebeu que ele não havia se arrependido, e que estava disposto a voltar ao seu lugar, como rei absoluto do pedaço, de maneira impune, "por cima da carne seca".
Aquela atitude infantil e machista ela já conhecia bem: a última palavra tinha que ser a dele. Ele nunca admitiria ser deixado, inclusive já havia dito isso a ela, que ninguém o largava. Antes, faria com que ela tivesse esperança de voltar, para ele dar fim à relação. Não era a primeira vez, mesmo que a cada vez doesse igual.
- "Que fosse!" - pensou ela, mas negou, disse que não levaria o talismã (nisso ela foi mais infantil que ele, disputando quem surpreenderia quem).
No lugar marcado, lá estava ele e, pra variar, oferecendo o rosto para um beijo. Ela simplesmente o abraçou, saudosa, meio sem jeito, e verificou, ao menor toque, que se entregaria mais uma vez.
Sentaram e conversaram amenidades, como se não estivessem ali para a decisão mais séria dos últimos tempos em suas vidas.
Enfim, tocaram no assunto e ele confessa que não só não havia se arrependido, como faria tudo novamente.
Mais uma decepção. Ela o observava com tristeza, exatamente aquela tristeza de quem sabe como poderia ser tudo diferente, caso ele apenas a respeitasse como pessoa e acreditasse na sua pureza, bondade e capacidade de amar integralmente. Mas não, ele nunca entenderia essa avalanche de amor que havia dentro dela. Como se pode impedir que a avalanche avance pelas montanhas abaixo? Como se pode conter uma avalanche? Ele nunca notaria a nobreza de caráter e a generosidade do coração, os quais confundia com frivolidade, com necessidade de reconhecimento. Nunca alcançaria a singeleza de seus instintos mais primitivos, simplesmente por não querer admitir sua independência, sua liberdade interior e sua inquietude natural de mulher emancipada, que não aceita cabresto, ao mesmo tempo em que se desdobra em carinhos e atenões para com o amado.
Nesse momento, ela lhe entrega o talismã e percebe a surpresa habilmente disfarçada naqueles olhos tão seus, camuflados por tênues óculos escuros.
De súbito, ele se levanta e pede um beijo de despedida, como um teste para seu ego de macho. Ela sorri, entende que aquela era a consumação da sentença proferida há muito pelo Juiz dos Juízes, e consente. Aproxima-se dele, deixa que os lábios se toquem com a doçura e maciez das mais raras pétalas, e sente todo o corpo tremer. Ele levara seu amor naquele beijo, ela o queria de volta.
Beijam-se com a paixão de novos amantes e seu destino selado. Saem daquele beijo novamente namorados, como sempre acontecia quando faziam as pazes.
Contudo, o gosto de vida daquele beijo não conseguiu apagar completamente o sabor de morte, já tão impregnado em Sílvia. Ela sabia que viriam novas segundas-feiras, novos finais de semana, novas agressões, novas despedidas, novos beijos de trégua, novas mágoas e lágrimas. Sabia do desgaste e do veredicto, sabia das sete vidas.
Só não podia adivinhar com exatidão quantas vidas tinha ainda esse gato.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Teresa Dáliva Malta - Uivando Secretamente Para a Lua


Quando os segundos se transformaram em horas já sentia aquele beijo, aquela boca que tanto me atraía. Como era leve, macia delicada...conseguia sentir o momento exato, o ápice, o doce e o amargo sabor, que se misturava loucamente em nossas bocas.
Entrei num abismo de emoção: borbulhava dentro de mim um desejo incalculável, um desejo sinistro e ao mesmo tempo empolgante. As emoções tornaram-se naquele exato momento uma via-láctea, um céu imenso e profundo, onde as estrelas dançavam para seduzir os belos planetas.
E aos poucos o calor invadia meu corpo, e eu sabia que o seu corpo me queria, sua mente curiosa e inocente tentava desvendar os meus segredos mais íntimos, e quando dei por mim senti com ferocidade sua mão segurar minha cintura, demonstrando que o seu desejo transpirava em seu corpo.
Mas as horas invertem-se em segundos, a magia pelo encanto tinha acabado, ficamos como estrelas a vagar ao céu, mas sabíamos que aquele beijo uivava secretamente para a lua, onde ninguém ousa escutar os cantos dos lobos; na linda noite de lua cheia, a qual testemunhou nosso crime.
Silvia Câmara - Cavernas




Procuro desdormir. Como um vaga-lume inquieto sucede-se a si próprio, assim eu, tento expulsar o silêncio amortecido de um corpo que jaz na sombra da lua vaga.
O vento, flutuando na incerteza de outra vaga, sacudindo as gelosias, acorda-me recitando trechos daquilo que poderia ser a voz do meu pensamento, versos que são relembrados pela minha memória que vai se aquecendo pela lembrança. Penso então no que tem sido a minha vida e assim, poderia filosofar por toda a eternidade, pois se pretendo mergulhar na minha alma, esbarro a meio caminho na consciência, portanto não posso ter uma idéia desavisada de mim.
Tudo o que me lembro é que há em mim uma memória involuntária, dos olhos, dos ouvidos, das mãos. Todos tão esplendidamente lotados de recordações, às vezes enevoadas, às vezes despertas. Ah! Mas o que posso fazer é evocar essas lembranças dos vastos palácios onde repousa a memória. Mergulhar nas suas cavernas e escancarar os portões que te fecharam, sésamo.
Outras vezes a minha caverna está na infância, no cheiro do mato, da flor distante recriada no tempo. Agora existe uma diferença: a descoberta é o contrário da recordação. Posso recitar em silêncio e olhar o vale que aquele mar abriu. Ir mais além e ouvir os sons das ondas e das gaivotas e ver o céu suspenso, sem gota alguma para despencar, cheio de silenciosas ermitagens. E se caísse uma única lágrima, traria um odor de silêncio e quietude.
Depois de certo tempo posso perceber que a cor da memória pode cambiar do marrom escuro de um móvel recém-envernizado ao bege-claro dos escritos guardados há muito tempo. Mas se não souber olhar bem dentro dessa espécie de porão, o que se verá serão sombras. É que através da névoa só se vê sombras. Mas na aurora, quando nasce o sol, como é lindo ver os botões das flores como olhinhos querendo enxergar o mundo através da neblina. Será que a felicidade reside em não esperar nada mais da vida do que aquilo que ela pode nos dar? Será? Mas não se pode ter dois eus, um encarregado da ventura e outro da desventura. Então, não quero mais ver esse sol de puro artifício que aparece nos meus mais encantados sonhos. E é por isso que desdurmo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Sandro Jamir Erzinger - Retorno Mortal




A neblina espessa, tal como um espectro libertado do negro manto da noite, parecia querer envolver todo e qualquer corpo ao seu alcance.
Na calçada ouvia-se apenas o som dos sapatos de Elizabete, cujo som parecia ser absorvido juntamente com toda a paisagem, pelo branco nevoeiro que se avultava noite adentro.
Elizabete retornava de um sarau que fora prestigiar numa modesta casa que também servia de sede para o grupo de teatro que promovera o evento, que tinha como finalidade reunir parte dos artistas da cidade, para apresentarem seus trabalhos. Seus longos e louros cabelos, desenvolviam um ballet ao sabor de uma suave brisa que parecia querer fazer parte daquela hora mórbida.
Nas ruas as sombras das árvores e edifícios projetavam-se nas calçadas desenhando traços e figuras das mais variadas formas.
Ao passar diante de um pequeno prédio de portas negras como ébano e figuras talhadas semelhantes à flores e dos mais diversos aspectos e tamanhos, ouviu uma voz sussurrada e trêmula, ordenando para que parasse. Parando abruptamente e voltando seu olhar para trás, viu um par de mãos saindo entre as sombras, segurando um revólver que apontava em sua direção - nem mais um passo moça, fique onde está. Petrificada pelo medo, Elizabete não conseguia falar uma só palavra, pois sua atenção estava para o pérfido instrumento, cujos contornos avultavam-se ainda mais ao ser envolvido pela neblina juntamente com uma fraca luz proveniente de um poste de iluminação pública.
Consciente da gravidade da situação e que sobretudo estava sozinha, Elizabete suplicava para que não a matasse, pois se tratando de dinheiro ela tinha a solução. - São as vozes, essas vozes dentro da minha cabeça, dizendo pra matar, matar, elas me deixam louco. . . - gritou o misterioso personagem que permanecia oculto na sombra.
Sentindo que suas chances de escapar com vida estavam reduzidas ao mínimo, Elizabete apenas chorava de joelhos, com as mãos no rosto, na esperança que tudo aquilo fosse apenas um devaneio, do qual sairia a qualquer momento, mas antes que qualquer outro pensamento passar-lhe na mente, ouve-se um grande estampido e um projétil perfura sua testa.
Abandonando as sombras, que serviram de esconderijo para o seu intento funesto, ele dirige-se até o corpo de Elizabete e retirando um estilete do bolso de sua calça, desenha um pentagrama na fronte de Elizabete, em torno do buraco de bala, formado por arranhões com a ponta de seu instrumento cortante, abandonando em seguida o corpo junto a uma árvore da calçada.
Seguiram-se dias, que a imprensa cobriu o assassinato e sendo uma incógnita a identidade do assassino, apelidaram-no de assassino do pentagrama, pois Elizabete não fora a primeira e na lógica criminalística das autoridades, não seria a última
Passara-se um mês, era uma noite extremamente fria e um homem de pele morena e baixa estatura, caminhava em passos lentos com mãos nos bolsos de seu sobretudo - parecia caminhar despreocupado pois as únicas companhias eram alguns mendigos que procuravam refúgio do frio na estação subterrânea do metrô.
Entretanto, de quando em quando algo parecia despertá-lo de suas divagações, algo como uma presença, ou alguém a chamá-lo, mas presumia ser fruto de sua imaginação. Mas subitamente sua atenção voltou-se para uma jovem loura que ajoelhada chorava próximo a uma coluna. Intrigado com sua súbita presença, queria chamá-la, mas antes que pudesse chamá-la, ela levantou-se e começou a caminhar em sua direção e para sua surpresa maior notou que seus pés não tocavam o chão e seu rosto denotava uma expressão de profunda tristeza. Pra aumentar ainda mais o terror, foi quando viu um pentagrama gravado em sua testa - não, não pode ser, você está morta, está morta. . . - gritava caminhando para trás, quando subitamente sentiu o chão faltar-lhe sob os pés, caindo em seguida sobre os trilhos do metrô.
Sua queda foi fatal, pois o impacto de sua cabeça sobre os trilhos do metrô, ceifou-lhe a vida instantaneamente. Concluída a vingança, o espectro foi dissipando-se tal como uma neblina. Restando apenas um corpo estirado sobre os trilhos, com a tatuagem de um pentagrama na palma de sua mão esquerda.
Sandro Jamir Erzinger - Solidão




O som do badalar do relógio da torre avisava que eram seis horas e Jamir preparava-se para deixar o escritório sem o menor cuidado de verificar se havia deixado alguma anotação importante sobre a mesa ou não, afinal cessara o seu expediente e a semana e não mais suportava olhar para a sua mesa.Ao sair da empresa nem mesmo esperou o elevador, rapidamente desceu pela escadaria de incêndio, afinal o que eram algumas dezenas de lances de escada para quem trabalhava durante todo o dia sentado? -indagou Jamir para si mesmo.
Na rua as pessoas pareciam caminhar cabisbaixas, mas para Jamir isso pouco importava, pois como se já não bastasse as contas pra pagar, a constante desvalorização da moeda que preocupava-lhe constantemente,teria que ir de ônibus para casa pois o conserto de seu carro não havia ficado pronto para o fim de semana. Após enfrentar um coletivo lotado de pessoas, que cutucavam-se mutuamente a procura de banco para sentar-se, finalmente chegara à seu destino.
Ao abrir a porta de seu pequeno apartamento olhou por alguns segundos a bagunça, pois a louça suja sobre a pia da cozinha os inúmeros litros de bebidas espalhados pelos cantos, juntamente com a roupa suja, denotavam um claro abandono, mas nada disso preocupava-lhe ,pois por que? Usar de capricho em seu dia a dia, se a sua vida estava uma bosta mesmo.
Após trocar de roupa, encheu um copo de conhaque, pegou uma carteira de cigarros e sentou-se em frente à sua máquina de escrever, mas não vinha-lhe nem mesmo uma sílaba dos poemas ou contos que costumava escrever quando sentia-se muito só ou chateado. Então, levantando-se abruptamente da cadeira começou a quebrar tudo o que encontrava a sua frente, pois o único sentimento presente em seu espírito era revolta; trabalhar para uma empresa da qual não gostava,o dinheiro estava fraco e pra ajudar havia perdido sua namorada a poucos dias atrás.Depois de quebrar um quadro de pintura abstrata que havia ganhado de um amigo seu, voltou a sentar-se em frente à sua máquina de escrever, para então abrir uma gaveta a sua direita, retirando em seguida uma seringa juntamente com ampolas de morfina e sem hesitar encheu a seringa com uma dose suficientemente letal para qualquer ser humano,injetando em seguida em sua veia braquial. Não demorou muito para sua visão tornar-se turva e lentamente deitou a cabeça sobre a máquina, deixando em seguida a seringa cair-lhe da mão, passaram-se alguns segundos e tudo voltou a ser silêncio.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sandro Jamir Erzinger - O Assassino e a morte





Parecia um fim de semana como qualquer outro e a tarde de domingo já aproximava-se do horário crepuscular, quando Márcio adentrou o bar de Samires que situava-se em um lugar ermo, tendo como cliente apenas seus amigos que costumavam visitá-lo e reuniam-se todos os finais de tarde pra tomar algumas cervejas, entre outras bebidas. O bar de Samires era de aparência bastante modesta, pois consistia em paredes de tijolos rudemente erguidas. Ao lado do bar, Samires ergueu uma cabana em estilo quatro águas, coberta com palha de folhas de coqueiro que servia pra abrigar turistas que ali chegavam aos finais de semana, atraídos por uma pequena represa que Samires havia erguido pra represar um regato de água, formando uma pequena piscina natural.
Mas apesar de toda a algazarra em meio aos colegas, Márcio não se sentia muito bem,sentia-se extremamente ansioso, pois há muitos dias passados que já havia elaborado um plano funesto e haveria de consumá-lo nesta mesma noite.Depois de beber a sua cota desejada de cerveja despediu-se de seus amigos e saiu correndo pela rua sob a luz do luar.
Chegando a um pé de árvore de salgueiro, embrenhou-se rapidamente mata adentro e silenciosamente ficou observando a estrada, pois segundo seus cálculos sua vítima deveria passar a qualquer momento. A lua iluminava a estrada numa tonalidade rosicler.
Neste ínterim, Galo-rouco, que possuía esta alcunha por causa de sua voz aguda,aproximava-se do ponto fatal, sem nada suspeitar.Todo este ódio originou-se no bar de Samires, quando numa discussão fútil, Galo-rouco apunhalara Márcio gravemente no abdômen. O tempo já havia apagado o ocorrido para Galo-rouco, mas não para Márcio; que tremia e suava ao segurar um longo punhal almejando acabar com aquilo de uma por todas. Subitamente Márcio é despertado por passos lentos sobre o pedregulho da estrada e aguardando o momento exato, Márcio salta com a agilidade de um felino nas costas de sua vítima, cravando de forma rápida e feroz o punhal nas costas de sua vítima. Galo-rouco virando-se rapidamente em gritos de dores pra descobrir o autor do atentado, consegue ver o rosto de Márcio, mas antes que pudesse gritar ou falar algo, uma punhalada descreve um corte horizontal no ar, ceifando as artérias do pescoço de sua vítima que cai quase sem vida, contorcendo-se nos últimos espasmos de dores. Passam-se alguns segundos e tudo volta a ser silêncio, nos pés de Márcio agora jaz o corpo de Galo-rouco em meio à uma poça de sangue.
Após constatar que a vida abandonou o corpo de Galo-rouco, Márcio apanha-o e joga-o barranco abaixo do lado oposto da rua, para fazê-lo cair no rio que passa logo abaixo, margeando quase toda a estrada. Mas ao atirar o corpo, o mesmo se engata em uma pequena árvore que estende parte de seus ramos sobre o rio. Descontente com o acontecido, o algoz desce rapidamente o barranco para concluir o intento.Terminando de retirar o corpo da árvore,,joga-o ao rio, que sai rolando ao sabor da correnteza.
Olhando com alegria a conclusão de seu trabalho, Márcio agacha-se para lavar as mãos e braços sujos de sangue, mas ao fazê-lo percebeu estar sendo observado e ao levantar viu um grande vulto entre as árvores - saia destas árvores, pois matarei você também - gritou Márcio, mas a sombra não se movia. Ao ver que sua advertência não havia exercido efeito, desembainhou seu punhal e correu em direção à sombra e neste exato momento a sombra também começou a andar em sua direção e a poucos metros de distância, agora sob a luz do luar, Márcio constata que não se tratava de alguém, mas sim de algo. Apavorado tentou voltar, mas sentiu seu corpo petrificado pelo medo. - Não! Nãaaaoooo!!! - gritou Márcio, mas inútil pois o seu corpo agora tombava já sem vida,ao receber o toque daquela obscura figura, pois o que ele jamais poderia saber, é que se tratava da tão temida... morte.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Magali Fontes - PS: Eu Te Amo




O coraçao está sempre nos dizendo em formas diferentes das que estamos acostumados a lidar no dia a dia...As palavras muitas vezes são desnecessárias perante as atitudes que tomamos em relação a uma situação da vida...Só palavras não bastam, as palavras voam com o vento. Se tornam passado....viva o hoje, agora e sempre...
Se entregar por completo, é tudo que siginfica a palavra amor. Se entregar sem medidas.Se entregar, sem pensar se haverá consequencias, e se houver enfrentá-las.Sabendo que o mais importante permanecerá intacto. O coração permite aventuras, mas não tolera indeferença. O coração percebe qdo tem algo errado com o resto do corpo. Mas pq será que ele não percebe que o sentimento está sendo traído pelo destino? Ele nos avisa de tantas coisas, mas pq nos deixa passar por situações desastrozas? Mais do que palavras seria uma atitude, mais do que as palavras podem dizer, seria vc pegar em minha mão nesse momento.Mais do que palavras, seria vc ao meu lado. Mais do que palavras, seria seu nome tatuado em meu coração, do mesmo modo que está Tatuado em minha vida. Meu passado, meu presente e meu futuro. Amor, sentimento puro, inocente, simplesmente maravilhoso, só as pessoas que se entregam totalmente a alguém pode descrever o que é. Meu coração, me trai, me suspreende novamente e assim será sempre.
Sempre existirá um alguém, mas cada pessoa que passa deixa sua marca. O passado ninguém muda, o presente se refaz a todo momento. O futuro, será consequencia de todas as atitudes de ontem e de hj. Ficamos sempre a espera que alguém marque nossa vida. Vc marcou a minha, sem mágoas,mas com muita tristeza, relembro. Não pretendo mudar o presente e o futuro, só pretendo viver e sobreviver a mais essa situação que meu coração se deparou. Outras atividades se tornarão mais importantes na minha vida. Outras pessoas também, mas o mais importante eu cultivarei sempre dentro de mim, o passado.Que apesar de triste, sempre irá me fazer lembrar da parte boa da vida. Um dia eu amei um alguém, eu soube o que é amar. Eu sei o que significa a palavra AMOR...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Magali Fontes. 19/02/2011 - 1h e 11min




Que mania é essa que as pessoas tem, de julgar as outras pelo ter, vestir, possuir (espécie). Sabendo que, o bem mais valioso está guardado em um cofre! Cofre blindado por várias camadas de sentimentos. Elas passam por cima umas das outras para tentar chegar e pegar nosso maior tesouro. Mas porque essa ganância, de achar que o bem que as atrai está a alcance de qualquer um? O meu maior bem, está sim nesse cofre, coberto por todas essas camadas de sentimentos. Talvez não esteja tão seguro qto queria, mas com certeza está a salvo de toda essa ganância. Meu maior tesouro, está a disposição de todos, mas com embalagem lacrada. Lacre da vida. Meu cofre? Meu peito.Meu maior tesouro? vc....
Magali Fontes - Palavras Ao Vento / 29/01/11




Palavras que vão com o vento, o sentimento fica com o sofrimento. a cura desse mal, seria somente a volta de dois amores, dois corpos e dois corações querendo e precisando se amarem. solidão sempre dominando o ser, dominando uma vida, e incansavelmente persistindo em tomar conta de toda a trajetória de uma felicidade prometida.As palavras que magoam, também suprem a necessidade de amor e conforta a dor contida.Lágrimas transformadas em oceano, imagens transformadas em lindas lembranças, paraíso descoberto pelo homem. Como pode ser? O amor transforma as pessoas, transforma suas atitudes, transforma e muda todo um caminho. O destino não existe, ele sempre é citado pelo simples fato de querermos achar uma explicação para tal momento. Qdo amamos, nos sentimos livres e protegidos ao mesmo tempo. Qdo o amor é interrompido, sentimos uma flexa perfurando e dilacerando o coração. Sangramos pela alma, cada gota de lágrima significa uma promessa e uma jura de amor eterno que não se cumpriu.Qdo amamos , imaginamos que será sempre assim, e qdo perdemos o amor. Temos a certeza que a dor existe e marca mais, muito mais que uma facada no peito. sua cicatriz, como o amor não são eternas, são passageiras. Passageiras até chegarem outros amores e outro sofrimento. Assim se descreve o amor e a dor...
Magali Fontes - Puro Sentimento / 19/10/10"



É sempre assim, qdo estamos nos sentindo tristes e solitários. Começamos a imaginar belas paisagens, falamos lindas palavras. Fazendo uma vida imaginária com a pessoa amada. Agora qdo estamos trasntornados, queremos matar, as mãos ficam tremulas de nervosismo, as pernas bambas. Mas o meu mais puro sentimento é de amor. vontade louca de estar ao seu lado sempre. Sentir o seu calor, pegar no seu corpo, saber e ter a certeza que o desejo existe e está aqui dentro de nós. Até msm qdo estamos nervosos e enfurecidos pelo momento.O sentimento de carinho guardado no peito, transformando o ser vivo em um ser humano de verdade. Querendo dar a outra pessoa, o que achamos que deveria ser guardado a sete chaves...o coração...O amor , um sentimento puro de lealdade, sinceridade, amizade e cumplicidade para com o outro ser. A palavra certa, o gesto perfeito, isso torna a vivencia em uma perfeita convivencia. Transformando a vida de duas pessoas, e espalhando a paz e a alegria de viver a todos que estão em sua volta. Puro sentimento de amor, isso é a única coisa que ainda pode transformar um coração amargurado pela dor e a tortura e fazendo com que seja sustentado somente pela maneira mais simples de se dedicar a alguem o que poderiamos dedicarmos a nós mesmos. Tres palavras que mudam toda uma trajetoria de vida, rumos a serem refeiros e decisoes a serem tomadas. Essas palavras simplesmente mudam o meu mundo.EU TE AMO !!! E o meu mundo é vc!!!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

R.K Brocket - O Fantasma




O apartamento era frio e escuro. Ficava o dia todo fechado, pois ele trabalhava oito horas de seus dias em um escritório nojento e cheirando a nicotina. O trabalho era repetitivo e irritante, mas precisava dele.
Quinta-feira. Mais um dia antes de encher a cara novamente. Toda a sexta-feira embriagava-se para agüentar mais uma noite de solidão, revolta e impotência em relação à vida.
Fechou a porta e entrou. A única iluminação era a das luzes da cidade e de outros apartamentos ali presentes. Morava no décimo segundo andar de um prédio antigo e cinza fazia quase sete anos. Sem esperanças de mudar para um local melhor. Andando pela já acostumada escuridão, chegou ao interruptor e o apertou. Uma luz amarelada e suja fez-se no meio do teto da sala de estar. Dois sofás escuros, um tapete recheado de desenhos abstratos, uma pequena mesa onde existia um cinzeiro e três restos de cigarro, uma toalha verde e um copo usado. Cansadamente caminhou até o sofá e sentou.
Não ligaria a televisão. Odiava qualquer programa televisivo desde a adolescência. Odiava as novelas falsas, cheias de gente rica e muito bem-sucedida. Ou seja, o seu contrário. Não queria admitir, mas nos últimos anos de sua vida estava odiando mais coisas e situações possíveis. E sentia-se bem por isso.
Os amigos o esqueceram. Antes o apartamento onde estava era muito movimentado, cheio de risadas ressoando pelas paredes e conversas animadas. Bebidas, risadas, amigos. Tudo evaporou.
Checou a secretária-eletrônica presente em um pequeno suporte ao lado do sofá. Uma ligação de sua mãe, dizendo estar preocupada e que fazia mais de duas semanas que ele não ligava. Nada mais. Não iria ligar para sua mãe. Com o tempo ela o esqueceria também.
Levantou-se e caminhou até a cozinha. Um caos de louças sujas dentro da pia enferrujada e restos de comida de microondas sobre a mesa manchada com diversos tipos de cores imagináveis. Era um relaxado, ele bem sabia. Mas não se importava muito com isso. Afastou os espessos e compridos cabelos escuros do rosto pálido e caminhou até a geladeira. Tinha uma garrafa de vodka, ele sabia. Que se dane sexta-feira, vou encher a cara hoje mesmo, ele pensou amargamente.
Era uma garrafa de Smirnoff. Tomaria pura e meditaria sobre sua vida miserável mais uma vez, como todas as noites desde o acidente. Pegou um copo simples e junto com a garrafa encaminhou-se à sala. Resolveu ligar a televisão.
Uma explosão de cores, sorrisos e mulheres surgiu na tela de vinte polegadas. Novela das oito, talvez. Teve a absoluta certeza quando escutou o construtivo diálogo de duas personagens. "Nossa, como você agüenta ficar tanto tempo sem um homem? Se fosse comigo, estaria subindo pelas paredes agora..."
"Miserável" ele sussurrou para a sala vazia, tomando um bom gole da vodka pura. O líquido passou por sua garganta queimando lentamente e quando atingiu o interior de seu corpo, provocou uma sensação não muito agradável, mas já conhecida.
Ele já tivera garotas. Uma boa porção delas. E a maioria o deixou enlouquecido de ódio. A sua última garota o deixou fazia seis anos. Não agüentou a barra. Desde então, nunca mais tocara em uma mulher. Elas sentiam repulsa, ele sabia. Outro gole, outra chama nas entranhas.
Observou a janela da sala. Podia ver a torre de uma igreja no meio de edifícios tão cinzas quanto onde estava. Uma coleção de pequenos quadrados brilhantes - as janelas de outros apartamentos. Será que alguém se encontrava nessa mesma situação? Caminhou até a janela. Por duas vezes em três anos chegou a colocar um dos pés no parapeito. Faltou pouco para dizer adeus à vida e encontrar o asfalto duro lá embaixo. Mas não teve coragem - ondas de frio e calor percorriam seu corpo e lágrimas intrometidas surgiam em seus olhos. Nessas duas vezes amaldiçoou-se em silêncio e foi rapidamente para a cama, onde ficara sob as cobertas durante o dia todo. Quando o pessoal do escritório ligou para seu apartamento, ele falou que estava indisposto, talvez fosse uma gripe. Nada que um chá quente curasse.
Foram as únicas vezes que pensara em suicídio.
Naquela noite apenas olhava o universo de pequenos quadrados brilhantes. Pensou ter vislumbrado uma silhueta qualquer... Contudo, poderia ser somente sua imaginação. A televisão conversava sozinha no meio da sala, assim como continuara sua vida triste após aquele acidente. Já não freqüentava restaurantes e bares, pois enojava as pessoas. As crianças tinham medo de sua fisionomia. Mas o que doía como uma punhalada de aço quente em seu coração era o abandono - amigos, namorada, família. Não queriam que descobrissem ele, o pequeno segredo sujo de cada um, algo demasiado horrendo para se revelar.
Ele amava Thaís mais do que tudo... Entretanto ela provou que não o amava tanto, como costumava dizer a ele deitada em sua cama, após terem se amado lenta e deliciosamente, em um gozo apaixonado e um tanto adolescente.
Maldito acidente de moto.
Desviara uma pequena criança que subitamente entrou no meio da estrada, em uma tarde de sábado. Era agosto. Ainda lembra dos médicos consolando a sua mãe.
Se ele não estivesse usando o capacete, agora poderia ser tarde demais.
O calor do asfalto deformou a parte direita de seu rosto e a forte batida contra o cimento ocasionou uma lesão em seu cérebro, a qual o deixara impossibilitado de comunicar-se adequadamente. O desgosto o tornou impotente e Thaís simplesmente não agüentou tudo aquilo. A ferida não cicatrizava, sempre com a presença de pus. Idas e voltas a médicos, dinheiro gasto sem possibilidade nenhuma de reconstrução de seu rosto e de sua integridade.
Enquanto recuperava-se do acidente, Thaís o visitava em seu leito de hospital. Mas a fisionomia da linda garota mudou completamente quando observou a imensa cicatriz em seu rosto, aquela massa de carne deformada como um tumor maligno que insistia em sair de sua pele.
Thaís não aparecera mais. Seus amigos relutaram em lhe contar que ela estava saindo com um colega da faculdade antes deles mesmos sumirem de sua vida. No fundo até ficou feliz por ela. Amava-a, não queria que ela carregasse aquela cruz deformada para o resto de sua vida. Era jovem ainda, muito jovem.
"Deus foi injusto comigo" ele pensou, tomando mais um gole de vodka e sentindo e efeito em seu organismo. "Se Deus realmente me amasse, não permitiria que eu estivesse usando aquele maldito capacete. E agora eu estaria longe daqui... descansando talvez."
Depois de certo tempo, sua mãe também se mudou, deixando o apartamento para ele. Ela falou que seria para o bem dele, para uma melhor privacidade, afinal já era um homem. Mentira.
Sete anos aquela noite. Sete anos em que morrera para o mundo. Lembrou de sua mãe, do perfume de seus cabelos macios e de sua pequena estatura. De como corriam pelo jardim de sua casa há muito tempo atrás. Ajoelhou-se no meio da sala e colocou a mão esquerda sob os olhos. As lágrimas eram quentes e tristes.
Mãe.
Essa única palavra que pode ocasionar risos alegres ou um choro silencioso. Infância, brinquedos, aniversários, sorrisos. Família.
Levantou-se, enxugou o rosto pálido e marcado para sempre. Tomou a última dose de vodka e caminhou em direção ao quarto. Ficaria ali, em sua cama desfeita e solitária, acalmando-se até que o sol surgisse no meio daquela cidade tão cinza. Tal como um fantasma na madrugada, impedido de seguir, preso ao passado e sem chances de se libertar. A dor dilacerava a alma, mas ainda assim era melhor; era uma companhia.
Seus olhos fecharam quando o relógio marcou duas horas da madrugada.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Hertha Silva - Lançar de Si


"Quero ser leve..."

Ela era enfática. Clamava por um esvaziamento. Livrar-se de sentimentos. Livrar-se de conhecimentos. Queria ser um bebê de vinte e poucos anos. Gargalhava tamanho absurdo. Mas o peso da existência era grande. E não se sentia capaz de suporta-lo. Indagava o nada. Enchia-se de nada. Porque se sentia um nada. Chorava. Ela tinha essa qualidade, sabia chorar. Profundamente.
Viver pode ser complicado para alguns. O excesso de interrogações gera algumas interpretações que podem nos fazer surtar. Seria simples apertar o botão automático e deixar ser levado. Simplesmente viver. Existir já é um pouco mais complicado.
Nossa menina era bela, esteticamente falando. Sorriso perfeito. Além de chorar ela sabia rir muito bem. Contagiante. Seu olhar era desafiante, engatilhado. Trazia doçura, mas era triste, vazio. Era profundo, parecia não olhar o mundo exterior, era alheia a esse, olhava para dentro. Distante.
Sarah.
As noites, quando sua única companhia era ela mesma, uma angústia a consumia. Dor. Contorcia-se em sua cama, se abraçava, posição de feto. Brigava com seus pensamentos, pensar assusta.
Pensava, pensava, pensava muito. Abstrações profundas, existenciais, isso a tornava alheia. Já quis mudar o mundo, mas agora só queria mudar a ela mesma. Sonhava. Vivia personagens. Doía acordar. Antitética. Sentia-se mal por não estar satisfeita. Aos olhos dos outros, tinha tudo para ser feliz. Mas tinha repulsa de tudo que a cercava. De suas regalias, do pseudoconforto, da estabilidade. Quantas obrigações isso lhe causava, invejava o vazio. Transbordava.
Mulher. Menina. Sarah. Vinte e dois anos.
Uma vida.
Vieram os novos amigos. As novas roupas. As novas músicas. Os novos livros. Novas para ela. Velhos para tantos.
Observando Sarah, começo a indagar sobre as motivações da vida, o seu significado. Será nada? Privo-me das mistificações.
(pausa)
(longa pausa)
Tudo é tão banal quando se indaga. Mas por acaso vivia. Por acaso tinha momentos de felicidade intensa. Como é bom rir de graça! Era desprendida. Gozava. Era amada. Amava. Soluçava. Amanhecia.
Cíclico. Ia para o trabalho. Dava o seu melhor, produzia e multiplicava. Interagia, cansava, mas se sentia ativa. Depois faculdade; absorvia, indagava, interpretava, aceitava. "Cara maluco esse Schopenhauer!" Fartava.
A luz do sol lhe fazia bem. Tanta claridade lhe escurecia. Ocultava-se. Encobria seus desatinos noturnos. Frustrações e devaneios. Executando suas obrigações libertava-se de seu ser dialético. Refugio. Mas aquele olhar... Um bom observador logo perceberia as máscaras. Singela criatura. Só enganava a ela mesma. Não era feliz, mesmo porque não sabia identificar isso. Nem sabia o que era isso. Também não era satisfeita. Mas naquele período do dia, quando estava atolada com seus compromissos, naquele momento não se sentia infeliz, também não se sentia feliz. Não sentia. Isso era bom! Ela se deixava levar. Ocupava-se dos outros.
Mas o dia sempre acabava. E tinha que voltar para casa. Família. Aquelas pessoas lhe atingiam. Os outros eram apenas os outros. Aqueles não, refletia ela. Isso a perturbava. Procurava ser sociável, a grande custo, mas se relacionava, com certa distância, mas era o máximo que conseguia. Mesquinhos, fúteis e inúteis, conceito de Sarah. Estanha, egoísta e temperamental, conceito da família. Suportavam-se.
Porta trancada. Luz baixa. Música baixa. Cabeça baixa. Aquela hora se encontrava com ela mesma. Dolorido. Dor no peito. Nó na garganta. Chorava. Motivo, nem ela sabia. Mas chorava por nada. Pelo vazio que sentia. Mas também por está farta. Farta de nada. As coisas para ela não tinham significado. Adormecia encolhida no seu universo particular, na sua bolha. Ás sete tinha que levantar e viver, viver por viver. Mas Sarah só vivia porque tinha esperança. Esperança do que? Ela também não sabia. Talvez esperança de um dia ter alguma resposta, ou de um dia não querer mais repostas. Isso lhe motivava.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Vida De Clarice Lispector e Alguns Textos.


A Vida De Clarice Lispector

Seu nome de batismo: Haia Lispector, mundialmente conhecida como Clarice
Lispector, nascida numa aldeia chamada Tchetchelnilk, na Ucrânia no dia 10 de Dezembro de
1920. No entanto, há controvérsias com relação à data exata, em seu livro: Uma Vida que se
Conta, Nádia Batella Gotlib apresenta duas certidões de nascimento, uma com a data de 10 de
Outubro e a outra de 10 de Dezembro de 1920 (GOTLIB, 1995, p. 20-21). Em uma entrevista
concedida à TV Cultura em 2007, Nádia afirma que pôde verificar através de documentos que
a data correta é realmente 10 de dezembro de 1920:

Clarice era de origem judaica, a terceira filha do casal Pinkouss e Mania Lispector. Ela
veio para o Brasil com dois meses de idade, juntamente com sua família para fugir da
perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa. A família chegou ao Brasil e aportaram
em Maceió, em Fevereiro de 1921 para ficarem na casa da irmã de Mania, Zaina,
permanecendo por uma período de três anos e meio. Eles mudaram seus nomes para facilitar
suas vidas no Brasil: seu pai passou a se chamar Pedro, sua mãe Marieta, sua irmã Elisa, com
exceção de Tania que não alterou o seu nome, e Haia passou a se chamar Clarice. Após este
período a família mudou-se para o Recife no ano de 1924.

De acordo com o escritor americano Benjamin Moser, escritor de uma biografia sobre
Clarice, a mãe dela teve paralisia progressiva devido a uma doença venérea em decorrência de
um provável estupro que teria sofrido pelos soldados russos. Esta suposição foi feita baseada
em duas circunstâncias: a primeira, no momento histórico no qual o país encontrava-se: os
estupros eram comuns durante as perseguições aos judeus na Ucrânia. A segunda vem da
ficção de Elisa Lispector.

A autora revela que, em 1915, sua casa havia sido transformado em refúgio de
mulheres e crianças. No meio da noite, ouviram-se tiros, e sua mãe resolveu sair,
sozinha, para ver o que estava acontecendo. “Ela decidiu salvar suas filhas e as
outras pessoas que buscaram abrigo em nossa casa”, escreveu Elisa, para depois
contar que Mania voltou exausta e afundou-se, muda, numa cadeira.”

De acordo com a crença local, uma gravidez teria o poder de curar doenças nas
mulheres, por isso sua mãe tentou a terceira gestação, porém a cura não aconteceu e ela morre
em 1930. Fato este que marcaria toda a vida de Clarice.
Se estas suposições se confirmam ou não, não podemos afirmar, bem como o faz
Nádia Gotlib, no livro Clarice uma vida que se conta. No entanto, se for verdade, o fracasso
de não ter ajudado sua mãe, marcaria traumaticamente para sempre Clarice Lispector. Em
uma crônica publicada em 1968, Clarice faz o seguinte comentário a respeito do seu
nascimento: “Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na
grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo.”

Seu pai era um mascate e vendia tecidos para roupas e as meninas estudavam em um
colégio da cidade. Sua família sempre passou por dificuldades financeiras. Clarice perde sua
mãe aos 9 anos e aos 12 anos de idade Clarice entrou para o Ginásio Pernambuco, juntamente
com sua irmã e sua prima Bertha. Nesta época Clarice conhece Reveca, amiga de ginásio,
cujo pai possuía uma livraria em sua casa. O professor então pede para fazerem um trabalho,
mas Clarice não tinha o livro e ela vai várias vezes até a casa da amiga, mas Reveca sempre
arranjava uma desculpa para não emprestar o livro Reinações de Narizinho (1931), de
Monteiro Lobato. Depois de descoberta a verdade o pai da amiga acaba por lhe presentear
com livro. Este fato é muito parecido com o contado em seu livro Felicidade Clandestina
(1971), no conto de mesmo nome. Seu pai prospera e eles se mudam para a cidade do Rio de
Janeiro.

Em 1940, Clarice perde seu pai, companheiro sensível e dedicado, por quem ela tinha
um imenso carinho. Em suas crônicas futuras ela há de se lembrar dele, com mistos de
piedade e ternura. Segundo Nádia, ela perde o companheiro que lhe havia ensinado a mais
preciosa lição: o de como era importante ser “pessoa”. Sua irmã Elisa, a mais velha, noivou e
casou com Ulak e Tania casou-se com William Kaufmann.
Clarice falava vários idiomas, entre eles inglês e francês. Formou-se em Direito e
trabalhou como redatora na Agência Nacional e no jornal A Noite em 1941, naturalizando-se
brasileira, é nesta época que ela então conhece os escritores Antonio Callado, Francisco de
Assis Barbosa, José Condé e Lúcio Cardoso, por quem Clarice nutre um amor intenso, mas
nunca foi correspondido.
Em 1942 escreve seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, e no mesmo ano
conhece e começa a namorar Maury Gurgel Valente. Em 1943 casou-se com o diplomata, e
em vista da profissão do marido, viveu 16 anos fora do país. Em plena Guerra Mundial, eles
se mudam para a cidade de Nápoles, onde Clarice dá assistência aos brasileiros feridos na
guerra trabalhando em um hospital americano. Ainda no aeroporto Clarice encontra-se
dividida entre acompanhar o marido ou deixar a família e seus amigos. Através de cartas
Clarice não esconde sua tristeza e sua inadaptação. Retornando ao Brasil como correio
diplomático do Ministério das Relações Exteriores. No tempo em que ficou no país ela pôde
conhecer os escritores Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e por fim
Hélio Pellegrino.
Em 1948, Clarice engravida do seu primeiro filho. Durante este tempo ela escreve A
Cidade Sitiada e terminado o último capítulo, seu filho nasce. Em sua crônica “Lembrança de
uma fonte, de uma cidade” ela diz que o que a salvou foi o nascimento do seu filho Pedro. Em
1949 a família volta ao Rio de Janeiro, porém no ano de 1950 eles retornam à Europa. Em
1953 nasce seu segundo filho, Paulo. A escritora divide agora seu tempo em escrever A Maçã
no Escuro, os contos de Laços de Família e seus filhos. Em 1956 antes de voltar para o Brasil
Clarice e o marido convidam o escritor Érico Veríssimo e esposa para serem padrinhos dos
seus dois filhos. No ano de 1959, após a separação, ela e seus filhos voltam para o Brasil.
Fixou-se até o final da vida no Rio de Janeiro em seu apartamento, onde “solitária”, teve
inspiração para suas grandes obras. Em maio de 1965 muda-se para o seu novo apartamento
com seus filhos Pedro, que sofre de esquizofrenia, e Paulo.
Clarice trabalhava no Jornal do Brasil, mas foi demitida, por ser judia, assim que o
general Geisel assumiu a presidência. Sua situação econômica não era boa naquela época, e
para curar a depressão, segundo Norma Couri, cigarros Hollywood e comprimidos para
insônia Bellergal, foi a combinação fatal que no dia 14 de setembro de 1966, ao dormir com
um cigarro aceso provocou um incêndio em seu apartamento, queimando boa parte do seu
corpo, quase tendo a sua mão direita amputada. Passou três dias correndo risco de vida e dois
meses hospitalizada. Devido às inúmeras e profundas cicatrizes a escritora cai, ainda mais, em
depressão.
Em 1971 publica a coletânea de contos Felicidade Clandestina. Clarice não gostava
do termo solitária. Dizia que não era solitária, que tinha muitos amigos e que era feliz. Em 9
de dezembro de 1977, após uma hemorragia, morre de câncer, um dia antes de seu
aniversário. Por ser judia, Clarice não pode ser enterrada no sábado, onde são proibidos os
funerais de acordo os princípios religiosos. Foi sepultada no domingo, dia 11 de dezembro
num cemitério israelita do Rio de Janeiro.
O escritor Carlos Drummond de Andrade homenageou Clarice com o poema “Visão
de Clarice Lispector” (1978), que mostra quão misteriosa era essa escritora que se
considerava, tímida e ousada ao mesmo tempo. Como ela mesma disse: “Sou um ser humano.
Não sou uma intelectual; sou mais saudável do que muita gente pensa. Sou uma intuitiva,
uma sentidora, e, também uma amadora. Só escrevo quando impulsionada pela vontade.”
(LISPECTOR, 1994. p. 7)


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
[...]
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.


A solidão, bem como a presença de animais, é um dos aspectos frequentes em sua
obra. Foi ao lado do cão Ulisses, seu companheiro inseparável, que Clarice Lispector viveu
seus últimos dias no Rio de Janeiro. O livro Quase de Verdade (1978), conta a história de
Ulisses. Apesar de ser uma história infantil, tem características muito introspectivas, que nos
faz viajar pela mente de Ulisses, suas dúvidas, seus pensamentos, seus sentimentos, conforme
percebe-se no excerto abaixo, (LISPECTOR, 1978 p. 4-22)
Era uma vez... Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou.
Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um
cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela
— que entende o significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto. Por
exemplo, eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma
história bem latida: daqui a pouco você vai saber dela: é o resultado de uma
observação minha sobre essa casa. [...]
Eu, que sou cachorro, não sei o que responder às aves. — Engole-se ou não se
engole o caroço? Você, criança, pergunte isso à gente grande. Enquanto isso, eu
digo: —Au, au, au! E Clarice entende que eu quero dizer: — Até logo, criança!
Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão.
Para alguns críticos Clarice Lispector se ficcionalizou tanto, a ponto de confundirmos
com um de seus personagens, se é que não o era. No hospital, sentindo que ia morrer, Clarice
gritou para a enfermeira que ela havia matado seu personagem. Para Paulo Francis, “Clarice
se tornou sua própria ficção” (COURI, 2009). É o que também propõe em seu livro Clarice
uma vida que se conta, Nádia Gotlib, pesquisadora da biografia de Clarice Lispector, quando
em entrevista em 1977, comenta:
Clarice vivia intensamente a arte que ela fazia. A tal ponto que, ela foi se
ficcionalizando. E chegou a se enxergar como personagem. E as coisas se
misturavam também. Quem sabe fazia parte do mesmo plano de vida ou de morte.
Sua trajetória de vida foi marcada por momentos difíceis. Porem as queimaduras
decorrentes do incêndio foi o que mais lhe abateu. Depois disso, amigos e familiares de
Clarice Lispector percebem que o seu interesse por escrever já não é mais o mesmo.
Apesar disto, nada pôde apagar o brilho e o talento de Clarice. Seu papel na literatura
brasileira é indispensável e se não houvesse Clarice, não haveria o que há de mais intimista e
subjetivo na prosa modernista.
Para COUTINHO (2004 p. 526), “o romance de que Clarice Lispector priva na
moderna literatura brasileira está sobretudo em relação com a raridade, entre nós, do
romance introspectivo que a autora segue.” Portanto, não há razão para questionar o valor
estético da obra clariceana, e sim, apreciar e destacar sua importância dentro de nossa
literatura, que a enrique e qualifica.


SUAS OBRAS:


Aos 19 anos, Clarice estreou sua vida literária com o lançamento do livro Perto do
Coração Selvagem (1944). Este romance causou estranheza aos críticos da época, pois trazia
uma novidade: a rarefação do enredo, ou seja, menos denso, compacto e conciso. E uma nova
abordagem da ação, que mergulhava nas profundezas do subconsciente sondando o mundo
interior.
Entre os romances, estão as obras O lustre (1946), A cidade sitiada (1949), A maçã no
escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
(1969), A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1977), obra terminada dias antes de sua
morte.
Clarice também escreveu contos, nas quais se destacam as coletâneas Laços de
Família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade clandestina (1971), A imitação da
rosa (1973), A via crucis do corpo (1974), Onde estivesse de noite? (1974), A bela e a fera ou
ferida (1941).
Além de romances e contos, Clarice Lispector é também autora de crônicas, como:
Visão de esplendor (1975) e Para não esquecer (1964). Quanto às obras infantis: O mistério
do coelhinho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1969), A vida íntima de Laura
(1974) e Quase de Verdade (1978).
Possui ainda, um conjunto de 16 pinturas abstratas sobre madeira. Algumas são
abstratas e outras sombrias, seus nomes: Medo, Explosão, Tentativa de Ser Alegre ou Caos da
Metamorfose Sem Sentido.







A Mensagem

A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se
surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para
disfarçar o aceleramento do coração.
Mas há muito tempo — desde que era jovem — ele passara
afoitamente do simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termos
de “coincidência”. Ou melhor — evoluindo muito e não acreditando nunca
mais — ele considerava a expressão “coincidência” um novo truque de
palavras e um renovado ludíbrio.
Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a
verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe
provocara — ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com
uma moça! ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe.
Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o
maravilhamento de enfim poder falar sobre coisas que realmente
importavam; e logo com uma moça! Conversavam também sobre livros,
mal podiam esconder a urgência que tinham de pôr em dia tudo em que
nunca antes haviam falado. Mesmo assim, jamais certas palavras eram
pronunciadas entre ambos. Dessa vez não porque a expressão fosse mais
uma armadilha de que os outros dispõem para enganar os moços. Mas por
vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de dizer, mesmo que ela, por
sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em missão ele falaria
jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por assim dizer criara,
lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita.
Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se
tratar uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la
como camarada.
Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a
própria angústia, como um novo sexo. Híbridos — ainda sem terem
escolhido um modo pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia
definitiva, cada dia a copiarem os pontos de aula com letra diferente —
híbridos eles se procuravam, mal disfarçando a gravidade. Uma vez ou
outra, ele ainda sentia aquela incrédula aceitação da coincidência: ele, tão
original, ter encontrado alguém que falava a sua língua! Aos poucos
compactuaram. Bastava ela dizer, como numa senha, “passei ontem uma
tarde ruim”, e ele sabia com austeridade que ela sofria como ele sofria.
Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.
Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a
linguagem falada mentia. (Eles queriam um dia escrever.) A palavra
angústia passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser
um motivo de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma
2
gafe ela falar em angústia. “Eu já superei esta palavra”, ele sempre
superava tudo antes dela, só depois é que a moça o alcançava.
E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher
angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era
alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser
autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo a seu favor,
queria a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse
“por pior que fosse”. Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em
ser condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava
de... de ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um
pouco: era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por
não julgá-la capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela
ser mulher poderia de súbito vir à tona. Eles tomavam cuidado.
Mas, naturalmente, havia a confusão, a falta de possibilidade de
explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo.
E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais
intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se
impedir de se procurar. E isso porque — se na boca dos outros chamá-los
de “jovens” lhes era uma injúria — entre ambos “ser jovem” era o mútuo
segredo, e a mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se
procurar porque, embora hostis — com o repúdio que seres de sexo
diferente têm quando não se desejam —, embora hostis, eles acreditavam
na sinceridade que cada um tinha, versus a grande mentira alheia. O
coração ofendido de ambos não perdoava a mentira alheia. Eles eram
sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam por cima do fato de
terem muita facilidade para mentir — como se o que realmente importasse
fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram a se
procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros, tão
diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam
senão viver. Vagamente conscientes de que havia algo de falso em suas
relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados
de unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no
único ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de
que se eles não o salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se
amavam, era claro. Ela até já lhe falara de uma paixão que tivera
recentemente por um professor. Ele chegara a lhe dizer — já que ela era
como um homem para ele —, chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza
que inesperadamente se quebrara em horrível bater de coração, que um
rapaz é obrigado a resolver “certos problemas”, se quiser ter a cabeça livre
para pensar. Ele tinha dezesseis anos, e ela, dezessete. Que ele, com
severidade, resolvia de vez em quando certos problemas, nem seu pai sabia.
3
O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles
mesmos, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo.
Que máximo?
Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como
quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a
difícil e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavamse
impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para que
enfim — cada um sozinho e liberto pudesse dar o grande vôo solitário que
também significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam
temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro
de não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se
desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o
quê? eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes
sem ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome; eles
comiam com fome e vergonha. Infelizes? Como? se na verdade tocavam,
sem nenhum motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o
mundo fosse sacudido e dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes?
se eram corpos com sangue como uma flor ao sol. Como? se estavam para
sempre sobre as próprias pernas fracas, conturbados, livres,
milagrosamente de pé, as pernas dela depiladas, as dele indecisas mas a
terminarem em sapatos número 44. Como poderiam jamais ser infelizes
seres assim?
Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes,
forçando, uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se
repetira — e sem nem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo
passava inútil, a urgência os chamava — eles não sabiam para o que
caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é
que ambos tinham a mesma carência, e jamais procurariam um par mais
velho que lhes ensinasse, porque não eram doidos de se entregarem sem
mais nem menos ao mundo feito.
Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca
chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra
constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por coincidência, caísse
uma chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um
refresco, olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua?
ou mesmo encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento?
Mas ambos haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior
despudor nos suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos
mais velhos. E a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em
quem o instinto avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por
demais enganados para poderem agora acreditar. E, para caçá-los, teria sido
preciso uma enorme cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda
4
mais cauteloso — um carinho que não os ofendesse — para, pegando-os
desprevenidos, poder capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para
não despertá-los, levá-los astuciosamente para o mundo dos viciados, para
o mundo já criado; pois esse era o papel dos adultos e dos espiões. De tão
longamente ludibriados, vaidosos da própria amargura, tinham repugnância
por palavras, sobretudo quando uma palavra — como poesia — era tão
esperta que quase exprimia, e aí então é que mostrava mesmo como
exprimia pouco. Ambos tinham, na verdade, repugnância pela maioria das
palavras, o que estava longe de facilitar-lhes uma comunicação, já que eles
ainda não haviam inventado palavras melhores: eles se desentendiam
constantemente, obstinados rivais. Poesia? Oh, como eles a detestavam.
Como se fosse sexo. Eles também achavam que os outros queriam caçá-los
não para o sexo, mas para a normalidade. Eles eram medrosos, científicos,
exaustos de experiência. Na palavra experiência, sim, eles falavam sem
pudor e sem explicá-la: a expressão ia mesmo variando sempre de significado.
Experiência às vezes também se confundia com mensagem. Eles
usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o sentido.
Aliás, não aprofundavam nada, como se não houvesse tempo, como
se existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo
que não trocavam nenhuma idéia.
Bem, mas não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era
apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto,
entrecortado, e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio
contra o mundo que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era
piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que
de repente podia se quebrar denunciando duas caras que se consternavam
porque eles não sabiam como se sentar com naturalidade numa sorveteria:
tudo então se quebrava, denunciando de repente dois impostores. O tempo
ia passando, nenhuma idéia se trocava, e nunca, nunca eles se
compreendiam com perfeição como na primeira vez em que ela dissera que
sentia angústia e, por milagre, também ele dissera que sentia, e formara-se
o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia alguma coisa que enfim
arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e que os tornasse
prontos para o destino que impaciente os esperava, e os fizesse enfim dizer
para sempre adeus.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como
uma gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse
a plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como
uma gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.
O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles
estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia.
Mas eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem
5
envelhecer, como se nada jamais lhes fosse suceder — e então a casa
tornou-se um acontecimento. Haviam voltado da última aula do período
escolar. Tinham tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre,
andavam entre depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o
passo, inquietos quanto à presença do outro. Era um dia ruim para ambos,
véspera de férias. A última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada
um desprezando o que na casa mútua de ambos as famílias lhes
asseguravam como futuro e amor e incompreensão. Sem um dia seguinte e
sem amarras, eles estavam pior que nunca, mudos, de olhos abertos.
Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com
rancor ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria
extrema pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.
E o rapaz, naquela rua da qual eles nem sabiam o nome, o rapaz
pouco tinha do homem da Criação. O dia estava pálido, e o menino mais
pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava
porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais
moço, ao contrário dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo
lhes era possível, inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se
tornava como um homem, e ele com uma doçura quase ignóbil de mulher.
Várias vezes ele quase se despedira, mas, vago e vazio como estava, não
saberia o que fazer quando voltasse para casa. como se o fim das aulas
tivesse cortado o último elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a
com a docilidade do desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima
escuta ao mundo o mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia
seguinte. Não, os dois não eram propriamente neuróticos e — apesar do
que eles pensavam um do outro vingativamente nos momentos de mal
contida hostilidade — parece que a psicanálise não os resolveria
totalmente. Ou talvez resolvesse.
Era uma das ruas que desembocam diante do Cemitério S. João
Batista, com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos
botequins.
Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão
estreita. Ela fez um movimento — ele pensou que ela ia atravessar a rua e
deu um passo para segui-la — ela se voltou sem saber de que lado ele
estava — ele recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se
buscaram inquietos, viraram-se ao mesmo tempo de costas para os ônibus
— e ficaram de pé diante da casa, tendo ainda a procura no rosto.
Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou
talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão
“perto”. Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam
na calçada estreita, entre o movimento ameaçador dos ônibus e a
imobilidade absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio:
6
mas era uma casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e
alta como as casas ensobradadas do Rio antigo. Uma grande casa
enraizada.
Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no
rosto, eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa
estava tão perto como se, saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma
súbita parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa — não havia como não
estar ali. Se recuassem seriam atingidos pelos ônibus, se avançassem
esbarrariam na monstruosa casa. Tinham sido capturados.
A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar
infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e
transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse
estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a
cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas.
Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.
A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma
construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem
leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiúra
pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo
que se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento,
aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur
sem pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada aos ombros era a angústia.
Eles olharam a casa como crianças diante de uma escadaria.
Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam
diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e
da palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e
colocara-se diante deles — nem ao menos familiar como a palavra que eles
tinham se habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só
aquela potência antiga.
Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa
grande.
E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também
a grande casa.
A moça olhava adormecida. Quanto ao rapaz, seu sétimo sentido
enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do
fio um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de
espantar a própria atenção. A moça ancorara-se no espanto, com medo de
sair deste para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa
desabaria. O silêncio de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes
eles tinham sido forçados a olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que
o caminho estava livre para fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e
pelo horror. Fixando aquela coisa erguida tão antes deles nascerem, aquela
7
coisa secular e já esvaziada de sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas
e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o nosso futuro! A casa sem olhos, com a
potência de um cego. E se tinha olhos, eram redondos olhos vazios de
estátua. Oh Deus, não nos deixeis ser filhos desse passado vazio, entregainos
ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não dessa endurecida carcaça
fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrai-nos do passado, deixainos
cumprir o nosso duro dever. Pois não era a liberdade o que as duas
crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e subjugadas e
conduzidas mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa que o grande
poder que lhes batia no peito.
A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz
que sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! — porque na sua avidez
ela era ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça
subitamente desviou o rosto com uma espécie de grunhido.
Quanto ao rapaz, ele rapidamente perdia pé na vaguidão como se
fosse ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da
tarde: era uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e
calmo, e ele agora não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros:
exatamente como temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não
contara com a miséria que havia em não poder exprimir.
Verdes e nauseados, eles não saberiam exprimir. A casa simbolizava
alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda uma
vida de procura de expressão. Procurar a expressão, por uma vida inteira
que fosse, seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas
divertimento, e seria uma divergência que pouco a pouco os afastaria da
perigosa verdade — e os salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza
de sobreviver, já tinham inventado para eles mesmos um futuro: ambos iam
ser escritores, e com uma determinação tão obstinada como se exprimir a
alma a suprimisse enfim. E se não suprimisse, seria um modo de só saber
que se mente na solidão do próprio coração.
Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar.
Agora, tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser
moço e doloroso e de dar a mensagem. Agora, espantados, tinham
finalmente o que haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois
jovens realmente perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, “eles
estavam tendo o que bem mereciam”. E eram tão culpados como crianças
culpadas, tão culpados como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda
pudessem apaziguar o mundo por eles exacerbado, assegurando-lhe:
“estávamos apenas brincando! somos dois impostores!” Mas era tarde.
“Rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado”
— dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de que poderia alguém
exigir que tivessem esperança de que o futuro seria deles? quem?! mas
8
quem se interessava em esclarecer-lhes o mistério, e sem mentir? havia por
acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos como
estavam. nem lhes ocorreria acusar a sociedade.
A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma
espécie de soluço ou tosse.
“Meio que chorar nessa hora é bem de mulher”, pensou ele do fundo
de sua perdição, sem saber o que queria dizer com “essa hora”. Mas esta foi
a primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa
primeira tábua, pôde voltar cambaleante à tona, e como sempre antes da
moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de “Alugase”.
Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a
moça com um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já
acordado: ela procurava por algum motivo ocultar a cara.
Ainda vacilante, ele esperou com polidez que ela se recompusesse.
Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço,
sim, mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava
sempre. Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem.
Então, com mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele
fosse os outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos homens lhe
dava como apoio e caminho. E ela?
Mas a moça saiu de tudo isso pintada com batom, com o ruge meio
manchado, e enfeitada por um colar azul. Plumas que um momento antes
haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se
ela não tivesse lavado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas
impudicas de uma orgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher.
Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que
ela não passava de uma moça.
— Fico por aqui mesmo, disse-lhe então despedindo-se com altivez,
ele que nem sequer tinha mais hora certa de voltar para casa e sentia no
bolso a chave da porta.
Despediram-se e eles, que nunca se apertavam as mãos porque seria
convencional, apertaram-se as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má
hora ter seios e um colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato
das duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como
uma operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou
disfarçar a própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se
mil olhos a seguissem; esquiva na sua humildade de ter uma condição.
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse
divertido: “será possível que mulher possa realmente saber o que é
angústia?” E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte. “Não,
mulher servia mesmo era para outra coisa, isso não se podia negar.” E era
de um amigo que ele precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então
9
limpo e franco, sem nada a esconder, leal como um homem. De qualquer
tremor de terra, ele saía com um movimento livre para a frente, com a
mesma orgulhosa inconseqüência que faz o cavalo relinchar. Enquanto ela
saiu costeando a parede como uma intrusa, já quase mãe dos filhos que um
dia teria, o corpo pressentindo a submissão, corpo sagrado e impuro a
carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido ludibriado pela moça tanto
tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de crescer. Sou
homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De cada luta ou repouso, ele
saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo daquele vento que
agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério S. João Batista. O mesmo
vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse
ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua nudez, esse
vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e
curiosos que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moça que
de súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida
para não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco
de saia curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...
Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento
de grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Urgentemente,
inquietantemente: o que era? Ele a vira correr toda ágil mesmo que o
coração da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia
de impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus —
e viu-a depois sentar-se quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto
esperava que o ônibus andasse... Seria isso? Mas o que poderia haver nisso
que o enchia de desconfiada atenção? Talvez o fato dela ter corrido à toa,
pois o ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo... Ela nem precisava ter
corrido... Mas o que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as
orelhas em escuta angustiada, numa surdez de quem jamais ouvirá a
explicação?
Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu
nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal
assumira a sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira
futura ruga. Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova
fome ávida nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora.
Estaria ele tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A
moça era um zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora
ele era, o rapaz de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para
aquela moça. E nem ao menos inclinar-se de igual para igual, nem ao
menos inclinar-se para conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele
precisava dela. Para quê? para lembrar-se de uma cláusula? para que ela ou
10
outra qualquer não o deixasse ir longe demais e se perder? para que ele
sentisse em sobressalto, como estava sentindo, que havia a possibilidade de
erro? Ele precisava dela com fome para não esquecer que eram feitos da
mesma carne, essa carne pobre da qual, ao subir no ônibus como um
macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.
Que é! mas afinal que é que está me acontecendo? assustou-se ele.
Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de
fraqueza e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse
sistema de duro juízo final, que não permite nem um segundo de
incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua — e
tudo agora estava estragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de
poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da mentira
pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser um homem. Mas e a
mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as
grades do esgoto. Mamãe, disse ele.
LISPECTOR, CLARICE. A Mensagem. In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977 .





Amor


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de
tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a
andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de
meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez
mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos
pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo
horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão,
não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida
conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam
seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais
e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava
a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as
árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força,
inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo
engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os
meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo
vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível
de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa;
a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das
coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a
cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe
estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para
descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma
legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com
persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que
tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo
enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da
tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos,
seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia
lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a
mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então
para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da
família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças
vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila
vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava
os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos.
Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves
do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela
o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento
mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu
rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha
tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado.
De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?
Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos
viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o
cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da
mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar
de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse
teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada
vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a
desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no
chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber
do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava
pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando
inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da
rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu
a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia
nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal
estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido;
não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha
música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria
esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava
pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento
estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O
mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas
amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as
pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo
equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido
deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma
ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como
se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a
mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer
intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se
tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na
Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as
grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando
chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte
havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o
vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto.
Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no
filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra
numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa
das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se
escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se
seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E
através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a
boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida.
Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde
com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por
um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da
noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração
batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto
a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais
misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde
localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os
portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a
penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas
surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais
apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?
Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais,
grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida.
Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso
gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras
vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho
secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros
apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade
intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram
percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a
repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo,
e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A
moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos
primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias
boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe
pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela
via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais
fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava
que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve
medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou
na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o
Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os
portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu
espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um
desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o
que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o
mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era
grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela
brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um
instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente
louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas
compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com
força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela
amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo
modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento
de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o
filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego
ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de
tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo,
faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia
lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho
medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o
seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele
rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A
criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do
quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera.
Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De
que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não
olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só
piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O
homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado
para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e
alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do
mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria
obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego
me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida
porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais
fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a
piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma
piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a
como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego!
pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que
se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e
foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a
água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de
lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O
mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os
besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma
vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para
outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça,
em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em
que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o
suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o
jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no
tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava
um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a
primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a
família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver
defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças
cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana
prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam
deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava
adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?
Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e
pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia
aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no
escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do
café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu
entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado,
com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma
coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico,
triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas
que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar
para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante
do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se
deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998.







Escrever, Humildade, Técnica


Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por
instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa
ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias
coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca
tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de
concepção. Quando falo em "humildade" refiro-me à humildade no sentido
cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que
vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à
humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com
minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte:
só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente.
Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma
engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho
é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a
enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à
vida, faz perder muito tempo.
Texto extraído do livro "A Descoberta do Mundo", Editora Rocco - Rio de Janeiro,
1999.





Sobre a Escrita......


Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino
invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor
é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que
digo - é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei
porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente
uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto
não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa
palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca
fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por
toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que
existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a
verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho
que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da
palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que
nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal
também. Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao
mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor
acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de
um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.