terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Florbela Espanca "A Oferta do Destino"



Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve,
deu-me uns sapatos e disse-me:
- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha...
Caminha sempre, sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e
não te detenhas, não pares nunca!... A estrada da vida tem
trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a
escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto
sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os
malmequeres, deixa cantar os rouxinois. Quer seja lisa, quer
seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre!
Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se;
deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim, os olhos
perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que
há-de prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor
da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes,
cantavam nas matas os rouxinois... Outras vezes, ao sol
ardente do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como
beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como
farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de
corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um
perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso
abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e
do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma
imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade,
onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só
instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos
caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar
um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem
anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu
frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma
fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada,
os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca
embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o
sempre?!...

Florbela Espanca

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