quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Oscar Wilde " O Filho da Estrela"



Oscar Wilde "O Filho da Estrela"



Era uma vez dois obres Lenhadores que estavam indo para casa através de uma grande floresta de pinheiros. Era inverno, e fazia um frio terrível. A neve estava alta no chão e recobria os ramos das árvores; o gelo ia estourando os raminhos mais tenros, enquanto passavam; e quando chegaram à Torrente da Montanha ela estava pairando no ar, imóvel, pois o Rei do Gelo já a beijara.
O frio era tão intenso que nem mesmo os animais e os pássaros sabiam o que pensar.
- Uuuhh! – rosnou o Lobo, enquanto capengava entre as plantas rasteiras, com o rabo entre as pernas. – Isso é o que o que chamo de tempo realmente péssimo. Por que será que o governo não faz alguma coisa?
- Piu! Piu! Piu! – chilrearam os Pintarroxos. – A velha Terra morreu e foi embrulhada em uma mortalha branca.
- A Terra vai se casar, e esse é seu vestido de noiva – sussurrou uma Pomba-rola para outra.
Seus pezinhos cor-de-rosa estavam congelados, mas as pombas achavam que era seu dever encarar tudo com certo romantismo.
- Que bobagem! – grunhiu o Lobo. – Estou dizendo que é culpa do Governo, e se não me acreditarem, eu as comerei.
O Lobo sempre tomava atitudes muito práticas, e jamais deixou de encontrar bons argumentos.
- Bom, de minha parte – disse o Pica-pau, um filósofo nato -, procuro teorias atômicas para minhas explicações. Quando uma coisa é assim, ela é assim mesmo e, no momento, elas estão muito frias.
E estava terrivelmente frio. Os Esquilinhos, que viviam dentro de um pinheiro muito alto, e os Coelhos se enrolavam em suas tocas, sem ousar se quer olhar para fora. As únicas que pareciam estar se divertindo eram as grandes Corujas chifrudas. Suas penas estavam durinhas com a geada, mas elas não se importavam, e virando seus grandes olhos amarelos, chamavam umas às outras pela floresta:
- Tu-uit! Tu-ú! Tu-uit! Tu-ú! Que tempo ótimo está fazendo!
E ela iam os dois Lenhadores, soprando com força os dedos, e batendo com suas enormes botas ferradas neve congelada. Uma vez eles caíram num monte de neve mais fundo e saíram parecendo dois moleiros quando moem farinha e ficam todos brancos, e outra vez escorregaram no gelo liso da água congelada dos pântanos, a lenha dos feixes, e eles tiveram de apanhá-la e tornar a amarrá-la; e ainda uma outra vez pensaram que estivessem perdidos e ficaram apavorados, pois sabiam o quanto a Neve é cruel para com aqueles que dormem em seus braços. Mas continuaram confiando no bom São Martinho, que zela pelos viajantes, voltaram atrás pisando nas próprias pegadas, e começaram a andar com muita cautela, até chegarem à fímbria da floresta e verem, lá embaixo no vale, as luzes da aldeia onde moravam.
Eles ficaram tão contentes de se salvarem que riram alto e a Terra pareceu-lhes uma flor de prata, e a Lua uma flor de ouro.
No entanto, depois eles ficaram triste, pois se lembraram do quanto eram pobres, e um disse ao outro:
- Por que nos alegramos, se a vida é para os ricos e não para gente como nós? Melhor seria se tivéssemos morrido de frio na floresta, ou que alguma fera selvagem nos tivesse atacado e matado.
- É verdade que alguns têm muito, enquanto outros têm pouco – respondeu seu companheiro. – A injustiça é distribuída por todo o mundo, e não há divisão eqüitativa de nada, a não ser de tristeza.
Mas, enquanto se queixavam de sua miséria, aconteceu uma coisa estranha. Caiu do céu uma estrela muito brilhante e muito bonita. Ela escorregou pelo lado do céu, passando por outras estrelas em seu caminho, e enquanto os dois a observavam deslumbrados, ela pareceu-lhes cair atrás de uma moita de chorões que ficava bem junto a um aprisco não mais distante do que o alcance de uma pedra que arremessassem.
- Ora! Eis ali uma pilha de ouro para aquele que a achar – gritaram eles, e saíram correndo, de tal modo ansiavam eles pelo ouro.
Um deles correu mais rápido do que o outro e passou-lhe a frente, forçando seu caminho pelos chorões até que saiu do outro lado onde – que surpresa! – realmente havia uma coisa dourada na neve branca. Então ele correu e, curvando-se, pôs as duas mãos em cima dela: era um manto de tecido dourado, curiosamente bordado com estrelas e enrolado com muitas dobras. Ele gritou para seu companheiro que encontrara o tesouro caído do céu, e quando o camarada chegou, ambos ficaram sentados no chão e foram soltando as dobras do manto, a fim de dividirem as moedas de ouro. Mas ai!, não havia lá dentro nem ouro, nem prata nem tesouro de espécie alguma, mas apenas um criancinha adormecida.
Disseram então um ao outro:
- Esse é um final amargo para nossas esperanças, e em sequer boa fortuna nós temos, pois que adianta uma criança a um homem? Vamos deixá-la aqui e continuar nosso caminho, pois nós somos pobres, e já temos nossos próprios filhos, cujo o pão não podemos dar a outros.
- Não, é um ato de maldade deixar a criança para morrer aqui na neve, e muito embora eu seja tão pobre quanto você, e tenha muitas bocas para alimentar, e muito pouco na panela, mesmo assim eu o levarei para casa, e minha mulher há de cuidar dele.
E como muito carinho pegou a criança, enrolou o manto em volta dela para protegê-la do vento impiedoso, e foi descendo a colina para a aldeia, com seu camrada espantado diante de sua imensa tolice e da moleza de seu coração.
- Você ficou com a criança, então me dê o manto, pois é justo que compartilhemos tudo.
- Não, pois o manto não é nem seu nem meu, mas da própria criança – e desejando-lhe que fosse com Deus, foi para sua casa e bateu na porta.
Quando sua mulher abriu a porta e viu que o marido voltara para casa a salvo, ela jogou os braços em torno do pescoço dele e o beijou, tirou-lhe das costas o feixe de lenha de lenha, limpado a neve de suas botas e pediu-lhe que entrasse.
Porém ele disse:
- Encontrei uma coisa na floresta e trouxe para que você cuide dela – e não arredou pé da soleira da porta.
- O que é? – exclamou ela. – Mostre-me, pois a casa está vazia e temos necessidade de muitas coisas.
E ele, atirando o manto para as costas mostrou-lhe a criança adormecida.
- Ai, marido! – murmurou ela. – Será que já não temos bastante filhos, e você ainda precisa trazer um enjeitadinho para nossa lareira? Quem sabe se ele não pode trazer má sorte? Quem zelará por nós? E quem nos alimentará?
- - Ora, Deus cuida até dos pardais, e os alimenta – respondeu ele.
- - E os pardais não morrem de fome no inverno? – perguntou-lhe a mulher. – E não é inverno agora? – e o marido não respondeu nada, mas não arredou o pé da soleira da porta. Um vento cortante entrou pela porta aberta fazendo a mulher tremer. Ela teve um arrepio e disse:
- Por que não fecha essa porta? O vento que entra está gelado, e eu estou com frio.
- Na casa em que o coração é duro não é sempre gelado o vento? – perguntou ele.
A mulher não respondeu nada, mas chegou mais perto do fogo.
Depois de algum tempo ela olhou para ele, como os olhos marejados de lágrimas, e ele logo entrou e colocou a criança nos braços dela; ela a beijou, colocando-a na caminha onde estava deitada o caçula do casal. Na manhã seguinte, o Lenhador pegou o curioso manto dourado e colocou-o em uma grande arca; também guardou um grande fio de contas de âmbar que estava no pescoço da criança.
E assim o Filho-da-Estrela foi criado com os filhos do Lenhador, sentando-se à mesma que eles, sendo seu companheiro de brincadeiras.
A cada ano ele ficava mais bonito, de modo que todos os que moravam na aldeia ficavam maravilhados, pois enquanto os outros eram morenos de cabelos negros, ele era branco e delicado como marfim lavrado, e seus cachos pareciam pétalas de junquilhos. Seus lábios também pareciam pétalas de alguma flor rubra, e seus olhos eram como violetas que nascem junto ao regato de água pura, e seu corpo era como o narciso que cresce no campo onde não chega a foice.
Porém essa beleza o fez mau, pois tornou-o orgulhoso, cruel e egoísta. Os filhos do Lenhador e as outras crianças da aldeia ele desprezava, dizendo que eram de pais humildes, enquanto ele era nobre, já que nascera de um Estrela; e por isso dizia-se amo de todos eles, tratando-os como seus servos. Não tinha piedade para com os pobres, ou os que eram cegos, aleijados, ou de algum modo deficientes, antes atirando pedras neles para espantá-los em direção à estrada , dizendo-lhe que fossem mendigar seu pão em outra parte. De modo que ninguém, a não ser os bandidos, costumavam vir à aldeia para pedir esmolas. Ele parecia, na verdade, enamorado da beleza, debochando dos fracos e feios, menosprezando-os de todo modo. Mas amava a si mesmo, e no verão, quando não havia vento, ficava deitado junto ao poço do pomar do padre, olhando par o fundo a fim de ver seu próprio roso, rindo do prazer que sentia em ser tão belo.
Muitas vezes o Lenhador e sua mulher o repreenderam dizendo:
- Nós não o tratamos como você trata os outros que estão desamparados e não têm quem o socorra. Por que razão é tão cruel para com todos aqueles que precisam de piedade?
Mas o Filho-da-Estrela não dava atenção às suas palavras, e franzindo a testa e fazendo um muxoxo, voltava para a companhia dos outros meninos, para ser o chefe. Seus companheiros o seguiam, pois ele era lindo, rápido na corrida, sabia dançar, tocar flauta e fazer música. Onde quer que o Filho-da-Estrela os levasse, eles o seguiam, e o que quer que o Filho-da-Estrela lhes mandassem fazer, eles faziam. Quando ele furava com um junco pontudo os olhos da toupeira, eles riam; e quando ele atirava pedras em algum leproso, eles também riam. Em todas as coisas era ele quem os guiava, e seus corações foram ficando tão duros quanto o dele.
- Olhem! Lá está sentada uma mendiga imunda debaixo daquela linda castanheira, com suas folhas verdes. Venham, vamos expulsá-la daqui, pois é feia e mal-enjambrada.
Então ele se aproximou, atirando-lhe umas pedras e caçoou dela; ela ficou apavorada, mas nem por um instante tirou dele o seu olhar. Quando o Lenhador, que estava cortando lenha ali por perto, viu o que o Filho-da-Estrela estava fazendo, veio correndo e repreendeu-lhe, dizendo:
- Você tem mesmo um coração de pedra e não sabe o que é piedade, pois que mal lhe fez essa pobre mulher para que você a trate desse modo?
O Filho-da-Estrela ficou rubro de raiva, bateu com o pé no chão e disse:
- Quem é você para questionar o que eu faço? Eu não sou seu filho para ter de obedecê-lo.
- É verdade – respondeu o Lenhador -, mas eu tive pena de você quando o encontrei na florestas.
Quando a mendiga ouviu essas palavras, deu um grito e caiu desmaiada. O Lenhador carregou-a para sua casa, sua mulher cuidou dela, e quando ela voltou a si do desmaio deles puseram comida e bebida na frente dela e disseram que se reconfortasse.
Sem querer comer nem beber, disse ela ao Lenhador:
- O senhor não disse que a criança foi achada na floresta? E não faz hoje exatamente dez anos?
Então disse o Lenhador:
- Sim, foi na floresta que o encontrei, e faz hoje exatamente dez anos.
- E que sinais encontrou com ele? – gritou ele. – Não trazia ele no pescoço um colar de âmbar?
Não estava ele enrolado em manta de tecido de ouro bordado com estrelas?
- É verdade – respondeu o Lenhador -, foi exatamente assim como disse – e, pegando o colar e a manta na arca, mostrou-os a ela.
- Ele é meu filhinho que eu perdi na floresta. Peço-lhe que mande logo chamá-lo, pois eu tenho
andado por todo o mundo à procura dele.
Então o Lenhador e sua mulher saíram e chamaram o Filho-da-Estrela dizendo-lhe:
- Entre em casa, e lá há de encontrar sua mãe, que o espera.
Ele entrou correndo, espantado e muito alegre. Porém ao ver quem esperava lá dentro, ele riu com
desdém dizendo: - Bem, aonde esta minha mãe? Pois aqui não vejo ninguém se não essa mendiga.
E a mulher respondeu-lhe.
- Sou eu a sua mãe.
- Esta louca, como pode dizer uma coisa dessas – gritou o Filho-da-Estrela com raiva. – Eu não sou filho seu, pois você não passa de uma mendiga. É muito feia e andrajosa, portanto, sai já daqui, e não me deixe tornar a ver sua cara horrenda.
- Não você é realmente o meu filhinho,que perdi na floresta -gritou ela,e caiu de joelhos,estendendo-lhe os braços. - Os ladrões o tiraram de mim,e o deixaram lá para morrer -murmurrou ela - ,mas eu o reconheci quando o vi, e reconheci também os sinais,o manto de tecido dourado e o colar de âmbar. Por isso,suplico-lhe que venha comigo,pois vaguei pelo mundo inteiro à sua procura. Venha comigo,meu filho,pois preciso do seu amor. Mas o filhoa da estrela não se moveu de onde estava; ao contrário,fechou contra ela as portas do coração,e não se ouvia nenhum outro som a não ser o da mulher soluçando de dor. Finalmente ele falou,e sua voz era dura e amarga: - Se você fosse de fato minha mãe - disse ele - , teria sido melhor que ficasse longe, e não que estivesse vindo aqui para trazer-me vergonha,pois eu pensava que era filho de uma Estrela,e não de uma mendiga,como esta dizendo. Por isso vá-se embora,e não quero vê-la nunca mais. - Ai! meu filho - exclamou ela - ,não quer dar-me um beijo,antes que eu parta? Pois sofri muito para encontrá-lo. - Não - disse o Filho da Estrela -,porque você é muito feia e eu preferiria beijar uma víbora ou um sapo. Então a mulher lenvatou-se e encaminhou-se para a floresta,chorando desesperamente. E,quando o Filho da Estrela viu que ela tinha partido,ficou contente e correu de volta a seus companheiros,para continuar a brincar com eles. Mas,quando o viram chegar,debocharam dele e diseram: - Você é feio como o sapo e nojento como a víbora. Vá-se embora,porque não queremos que bringue conosco. E expulsaram-o do jardim.
E o Filho da Estrela enfureceu-se e disse a si prório: - Mas o que foi que eles me disseram? Vou ao poço olhar-me na água,e ela falará da minha beleza. Foi então até o poço e olhou-se na água ,e oh!, sua face era a face de um sapo,e seu corpo era como a de uma víbora. E ele se atirou na grama e chorou,e disse a si próprio: - Certamente,isso me aconteceu por causa do meu pecado. Pois neguei minha mãe e mandei-a embora; fui orgulhoso e cruel para com ela. Por isso,devo procurá-la pelo mundo inteiro,e nao descansarei até encontrá-la. E então chegou até ele a filhinha do lenhador,que colocou a mão em seu ombro e disse: - Que importância tem que tenha perdido sua beleza? Figue conosco,e não zombaremos de você. E ele disse: - Não,pois fui cruel com minha mãe e,como punição,este mal me foi enviado. Agora,tenho que partir e procurar pelo mundo afora até encontrá-la,para que ela me perdoe. E ele foi correndo para a floresta a chamar pela mãe,mas não obteve resposta. Durante o resto do dia ele a chamou e,quando o sol se pôs,deitou-se para dormir num leito de folhas. Os Pássaros e os animais fugiam dele,pois se lembravam de sua crueldade,e ele ficou sozinho,apenas com o sapo,que o velava,e a víbora, que rastejava lentamente ao seu redor. Ao amanhecer,levantou-se,colheu algumas frutas ácidas das árvores,comeu-as e seguiu seu caminho pela floresta,chorando amargamente. E todos que encontravam perguntava se tinham visto sua mãe. Dise à Toupeira: - Você,que pode andar por dentro da terra ,me diga: minha mãe esta lá? E a toupeira resondeu: - Você furou meus olhos. Como posso saber? Penguntou ao Pintarroxo: - Você,que pode voar a cima das copas das árvores altas e pode ver o mundo inteiro: pode ver minha mãe? E o Pintarroxo respondeu: você me cortou as asas para divertir. Como posso voar? E Perguntou ao pequeno Esquilo,que morava no abeto e vivia sozinho: - Onde está minha mãe? E o Esquilo respondeu: - Você matou minha mãe. Está procurando a sua para matá-la também? O Filho da Estrela chorou e baixou a cabeça,e pediu perdão às criaturas de Deus,e continuou através da floresta,em busca da mendiga. E,quando passava pelas aldeias,as crianças zombavam dele e atiravam-lhe pedras,e os aldeãs não permitiam seguer que dormisse nos celeiros ,temendo que pudesse contaminar com bolor o trigo ali guardado,tão feio era seu aspecto. Os criados enxotavam-no,e ninguém tinha pena dele. Não ouviu falar em parte alguma da mendiga que era sua mãe,embora vagasse pelo mundo durante três anos,e muitas vezes parecesse vê-la na estrada,à sua frente,e chamasse por ela,e corresse atrás dela até que as pedras aguçadas lhe cortavam os pés até sangrar. Mas não conseguia alcançá-la,e os que moravam à beira do caminho sempre negavam tê-la visto,ou alguém parecido,e riam do seu desespero. Durante três anos vagou elo mundo,e no mundo não havia nem amor,nem bondade,nem caridade para ele,mas era exatamente o mundo que criara para si nos dias do seu grande orgulho. E,no começo de uma noite,chegou à porta de uma cidade protegida por muros,às margens de um rio,e mesmo exausto e com os pés doloridos tentou entrar nela. Mas os soldados que estavam de guarda cruzaram as alabardas à sua frente e disseram-lhe asperadamente: - O que quer nesta cidade? - Estou procurando minha mãe - respondeu ele - e suplico-lhes que me deixem entrar,pois talvez ela esteja nesta cidade. Mas eles riam dele,e um deles sacudiu a barba negra,apoiou o escudo no chão e exclamou: - Na certa,sua mãe não ficará satisfeita quando o vir,pois você é mais feio que o sapo do pântano,ou a víbora que se arrasta pelo charco. Caia fora daqui. Caia fora daqui. Sua mãe não mora nesta cidade. E o outro,que empunhava um estandarte amarelo,disse-lhe: - Quem é a sua mãe,e porque está procurando por ela? E ele respondeu: - Minha mãe é uma mendiga como eu,e a maltratei-a,e imploro que me deixem passar,para que ela possa perdoar-me,se é que se deteve nesta cidade. Mas eles não deixaram,e picaram-no com suas lanças. E ,quando ele ia embora,chorando,chegou um cavaleiro com uma armadura ornada em flores de ouro,cujo elmo ostentava um leão alado,e pergunto aos soldados quem estava querendo entrar. E eles responderam:- É um mendigo filho de uma mendiga,é nós o enxotamos. - Não - exclamou ele,rindo. - Venderemos essa coisa nojenta como escravo,e seu preço será o preço de uma jarra de vinho.
E um velho mal-encarado que ia passando disse: - Eu o compro por este preço - e,após pagar o preço,tomou o Filho da Estrela pela mão e entrou com ele na cidade. depois de percorrer muitas ruas,chegaram a uma portinhola que se abria em uma parede coberta por um pé de romã. O velho tocou a porta com um anel de jaspe burilado e ela se abriu,e os dois desceram cindo degraus de bronze,até chegarem a um jardim cheio de papoulas negras e jarros de barro verdes. O velho tirou do turbante uma faixa de seca estampada,vendou com ela os olhos do Filho da Estrela e o fez andar à sua frente. E,quando a faixa lhe foi retirada dos olhos,o Filho da Estrela encontrou-se numa masmorra,iluminada por uma lanterna feita de chifre. E o velho colocou à sua frente um pedaço de pão embolorado e disse: - Coma. E um copo com um pouco de água salobra e disse: - Beba. E,depois que ele comeu e bebeu,o velho saiu,fechando a porta atrás de si e trancando-a com uma corrente de ferro. E,na manhã seguinte,o velho,que na verdade era o mais astuto dos mágicos da Líbia e aprendera sua arte com um daqueles que moravam nos túmulos do Nilo,dirigiu-se a ele,zangado,e disse: - Em um bosque próximos aos portões desta cidade de infiéis há três moedas de ouro. Uma é de ouro branco,outra de ouro amarelo,e o ouro da terceira é vermelho. Hoje,você deve trazer-me a de ouro branco e, se não trouxer,lhe darei cem chibatadas. Vá depressa,e ao pôr-do-sol estarei à sua espera na entrada do jardim. Mas trate de trazer o ouro branco,do contrário estará mal,pois comprei-o pelo preço de uma jarra de bom vinho. Vendou os olhos do Filho da Estrela com a faixa de seda estampada e conduziu-o pela casa e pelo jardim de papoulas,e pelos cinco degraus de bronze. E,abrindo a portinhola com o anel,deixou-o na rua. E o Filho da estrela saiu ela porta da cidade,e chegou ao bosque do qual lhe falara o Mágico. Ora,aquele bosque era belíssimo,visto de fora;parecia cheio de pássaros canoros e de flores perfumadas,e o Filho da Estrela entrou nele alegremente. Mas tanta beleza de ouco lhe valeu,pois onde quer que fosse brotavam do chão,e o cercavam,ásperas urzes e espinhos penetrantes,e urtigas bravas o queimavam,e o cardo perfumava-o com seus punhais,de tal forma que se viu numa situação angustiante. Nem conseguiu encontar em parte alguma a moeda de ouro branco da qual falara o Mágico,embora a procurasse da manhã até o meio-dia,e do meio-dia até a anoitecer. E,ao anoitecer,dirigiu-se para casa,chorando amargamente,pois sabia a sorte que lhe estava reservada. Mas,quando chegou à orla do bosque,ouviu um grito de dor que partia de uma moita. Esquencendo o próprio infortúnio,correu para o local e viu uma pequena lebre presa em uma armadilha que alguém armara. E o Filho da Estrela apiedou-se dela,e libertou-a,e disse-lhe: - Eu mesmo não passo de um escravo,e ainda assim posso dar-lhe a liberdade. e a Lebre respondeu: - sem dúvida,você me deu a liberdade,o que lhe posso dar em troca? O Filho da Estrela disse-lhe: - Estou procurando uma certa moeda de ouro branco,não consigo encontrá-la e,se não levar para meu amo,ele me açoitará. - Venha comigo - disse a Lebre -,e eu a darei a você,pois sei onde está escondida,e para quê. Então,o Filho da Estrela foi com a Lebre e,oh!,no oco de um grande carvalho encontrou a moeda de ouro branco que estava procurando. Sentiu-se cheio de alegria,e pegou-a,e disse à Lebre: - o serviço que lhe prestei foi muitas vezes retribuído,e a bondade que lhe dediguei foi-me cem vezes paga por você. - Não - resondeu a Lebre -,apenas agi com você da mesma forma que agiu comigo. E afastou-se rapidamente,e o Filho da Estrela voltou para a cidade. Ora,à porta da cidade estava sentado um leproso. Tinha o rosto coberto por um capuz de linho cinzento e,através de dois buracos,seus olhos brilhavam como brasas. Quando ele viu o Filho da Estrela se aproximando,bateu numa tigela de madeira,fez soar uma sineta e disse: - Dê-me uma moeda,ou morrerei de fome. Pois me expulsaram da cidade,e ninguém tem piedade de mim. - Ai! - exclamnou o Filho da Estrela - só tenho uma moeda na bolsa e,se não a levar para meu amo,ele me baterá,pois sou seu escravo. Mas o leproso insistiu com ele,e implorou-lhe,até que o filho da Estrela se apiedou e deu-lhe a moeda de ouro branco. E, quando ele chegou à casa do Mágico,ele abriu-lhe a porta,empurrou-o para dentro e disse: - Trouxe a moeda de ouro branco? E o Filho da Estrela respondeu: - Não a tenho. Então o Mágico avançou sobre ele e bateu-lhe,e colocou diante dele um pra to vazio e disse: - Coma. E uma caneca vazia e disse: - Beba. E jogou-o de volta da masmorra. Na manhã seguinte o Mágico procurou-o e disse: - Se hoje você não trouxer a moeda de ouro amarelo,continuará meu escravo,e lhe darei trezentas chibatadas. Assim,o Filho da Estrela foi para o bosque,e durante todo o dia procurou pela moeda de ouro amarelo,mas não a encontrou em parte alguma. Ao anoitecer sentou-se e começou a chorar,e quando estava chorando chegou até ele a pequena Lebre que salvara da armadilha. E a Lebre disse-lhe: - Por que está chorando,e o que está procurando no bosque? E o Filho da Estrela respondeu: - Estou procurando uma moeda de ouro amarelo que está escondida aqui,e se não a encontrar meu amo me baterá,e me conservará como escravo. - Siga-me - gritou a Lebre,e correu para dentro do bosque até chegar a uma pequena lagoa. E no fundo da lagoa estava a moeda de ouro amarelo. - Como posso agradecer-lhe? - Disse o Filho da Estrela -,pois esta é a segunga vez que me socorre. - Não,foi você que primeiro teve pena de mim - disse a Lebre,e afastou-se correndo. O Filho da Estrela pegou a moeda de ouro marelo,colocou-a na bolsa,e voltou depressa para a cidade. Mas o leproso o viu chegar,correu ao seu encontro,ajoelhou-se e gritou: - Dê-me uma moeda ou morrerei de fome. E o Filho da Estrela disse: - Só tenho em minha bolsa uma moeda de ouro amarelo,e se não levá-la ao meu amo ele açoitará e me manterá como seu escravo. Mas o leproso lhe suplicou de tal forma que o Filho da Estrela teve piedade dele e deu-lhe a moeda de ouro amarelo. E,quando voltou para casa do Mágico,este abriu a porta e o empurrou para dentro,e disse: - Trouxe a moeda de ouro amarelo? E o Filho da estrela respondeu: - Não a trouxe. Então o Mágico avançou sobre ele,e bateu-lhe,e prendeu-o com correntes,e o atirou de volta a masmorra. Na manhã seguinte o Mágico voltou e disse-lhe: - Se hoje você me trouxer a moeda de ouro vermelho,eu o libertarei,mas se não trouxer,seguramente o matarei. O Filho da Estrela seguiu para o bosque,e durante todo o dia procurou pela moeda de ouro vermelho,mas não a encontrou em parte alguma. E,ao entardecer,sentou-se e chorou,e quando estava chorando aproximou-se dele a pequena Lebre. e a Lebre disse: - A moeda de ouro vermelha que procura está na caverna ali atrás. Portanto,não chore mais,e alegre-se. - Como posso lhe recompensar? - gritou o Filho da Estrela - pois está é a terceira vez que me socorre. - Não,você se apiedou de mim primeiro - disse a Lebre,e rapidamente afastou-se correndo. O Filho da Estrela entrou na caverna,e no canto mais afastado encontrou a moeda de ouro vermelho. Então,colocou-a na bolsa e correu para a cidade. E o leproso,vendo-o aproximar-se,postou-se no meio da estrada e gritou: - Dê-me esta moeda de ouro vermelho,ou morrerei. E o Filho da Estrela apiedou-se dele novamente,e deu-lhe a moeda de ouro vermelho,dizendo: - Sua necessidade é maior do que a minha. Mas seu coração estava esado,pois sabia a terrível sorte que o aguardava. Eis porém,que ao passarpela porta da cidade,os guardas inclinaram-se à sua frente e lhe prestaram homenagem,dizendo: - Como é belo o nosso senhor! E uma multidão de cidadãos acompanhou-o e gritava: - Certamente não existe ninguém tão formoso no mundo inteiro! Então o Filho da Estrela começou a chorar, e disse para si prório: - Estão zombando de mim e divertindo-se com minha desgraça. E tão grande era o ajuntamento de gente que ele perdeu o caminho,e encontrou-se por fim numa grande praça,onde estava o palácio do Rei. E o portão do palácio abriu-se,e e os sacerdotes e os altos dignitários da cidade correram ao seu encontro,e inclinaram-se diante dele,e disseram: - És o nosso senhor,pelo qual estávamos esperando,é o filho do rei. O Filho da Estrela respondeu-lhes: - Não sou filho de rei,mas o filho de uma pobre mendiga. E,como podem dizer que sou belo,se sei que tenho uma aparência horrível? Então aquele cuja armadura tinha gravadas flores de ouro e em cujo elmo se via um leão alado,levantou o escudo e gritou: - Como pode o meu senhor dizer que não é belo? E o Filho da Estrela olhou e,oh!, sua face estava como era antes;sua beleza voltara,e viu em seus olhos o que não tinmha visto ainda. E os sacerdotes e os altos dignitários ajoelharam-se e disseram-lhe: - Estava há muito profetizado que neste dia haveria de chegar aquele que reinará sobre nós. Portanto,queira nosso senhor receber esta coroa e este cetro,e seja nosso Rei,em sua justiça e misericórdia. Mas ele disse-lhes: - Não sou digno,pois neguei minha mãe que me deu `a luz,e não posso descansar até encontrá-la e receber o seu perdão. Portanto,deixem-me ir,pois devo voltar a vagar pelo mundo,e não posso deter-me aqui,embora me ofereçam a coroa e o cetro. Ao terminar de falar,desviou o rosto dele,voltando-se para a rua que levava às portas da cidade,e,oh!,entre a multidão que se comprimia em torno dos soldados,viu a mendiga que era sua mãe,e ao seu lado estava o leproso da estrada. Um grito de alegria brotou de seus lábios. Correu para eles e,ajoelhando-se,beijou as chagas dos pés de sua mãe,e molhou-as com lágrimas. Inclinou a cabeça até a areia e,soluçando como alguém cujo coração estivesse a ponto de se partir,disse a ela: - Mãe,reneguei-a na hora do meu orgulho. Aceite-me na hora da minha humildade. Mãe,eu lhe dei o ódio. Dê-me amor. Mãe,eu a rejeitei. Aceite agora o seu filho. Mas a mendiga não respondeu uma só palavra. E ele estendeu as mãos,e segurou os pés brancos do leproso,e dise-lhe: - Por três vezes dei minha misericódia. Peça à minha mãe que me fale pelo menos uma vez. Mas o leproso não respondeu uma só palavra. E ele chorou de novo,e disse: Mãe,meu sofrimento é maior do que posso suportar. Dê-me o seu perdão e deixe-me voltar para a floresta. A mendiga pôs a mão em sua cabeça e disse-lhe: - Levante-se. E o leproso pôs a mão em sua cabeça,e disse-lhe também: - Levante-se. E ele se pôs de pé,e olhou-os,e,oh!,eram o Rei e a Rainha. E a Rainha lhe disse: - Este é o seu pai,a quem você socorreu. - Esta é sua mãe,cujo os pés você lavou com suas lágrimas. Lançaram-se ao seu pescoço e beijaram-no;conduziram-no ao palácio e vestiram-no com formosos trajes,colocaram a coroa em sua cabeça,e o cetro em sua mão,e ele reinou sobre a cidade que se erguia à beira do rio,e era seu senhor. Demonstrou a todos muita justiça e misericórdia: desterrou o perveso Mágico,enviou ricos presentes ao lenhador e sua mulher e aos seus filhos conferiu altas honrarias. Não permitiu que ninguém fosse cruel com pássaros ou animais,mas ensinou amor,bondade e caridade,e ao pobre deu pão,e ao nu deu roupas,e houve paz e fartura no país. Mas ele não reinou por muito tempo. Tão grande fora seu sofrimento,e tão amargo o fogo de sua provação,que ao fim de três anos ele morreu. E o que veio depois dele reinou perversamente.






Oscar Wilde "O Rouxinol e a Rosa"



- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse rosas vermelhas – lastimou-se o jovem Estudante -, porém em todo o meu jardim não existe uma única rosa vermelha.

De seu ninho no grande carvalho o Rouxinol ouviu-o, olhou por entre as folhagens e ficou pensando.

- Nem uma única rosa vermelha em todo meu jardim! – chorou o Estudante, e seus lindos olhos ficaram marejados de lágrimas. – Ai, como a felicidade depende de pequenas coisas! Já li tudo que escreveram os homens mas sábios, conheço todos os segredos da filosofia, mas por falta de uma rosa vermelha minha vida esta desgraçada.

- Finalmente encontro um verdadeiro amante – disse o Rouxinol. – Tenho cantado esse ser noite após noite, mesmo sem conhecê-lo: noite após noite contei sua história às estrelas, e só agora o encontrei. Seus cabelos são escuros como a flor de jacinto, e seus lábios rubros como a rosa de seus desejos, porém a paixão tornou seu rosto pálido como marfim e a tristeza selou sua testa.

- O Príncipe dá um baile amanhã à noite – murmurou o jovem Estudante -, e o meu amor estará entre os presentes. Se eu lhe levar uma rosa vermelha ela dançará comigo até de madrugada. Se eu lhe der uma rosa vermelha eu a terei em meus braços, e ela deitará sua cabeça sobre o meu ombro, com sua mão presa na minha. Mas não há uma única rosa vermelha em meu jardim, de modo que ficarei abandonado em meu lugar e ela há de passar por mim. Ela nem irá me notar, e meu coração ficará partido.

- Aí está, de fato, um verdadeiro amante – disse o Rouxinol. – Ele sofre tudo o que eu canto: o que é alegria em mim, para ele é dor. Sem dúvida o amor é uma coisa maravilhosa. Ele é mais precioso do que a esmeralda e mais refinado que a opala. Nem pérolas e nem granadas podem comprar, e nem é ele exposto nos mercados. Ninguém pode comprá-lo de mercadores, nem pode ser pesadonas balanças feitas para pesar ouro.

- os músicos vão ficar em sua galeria – disse o jovem Estudante. – Tocarão seus instrumentos de cordas, e o meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Ela irá dançar com tal leveza que seus pés nem tocarão o chão, e os cortesãos, com suas roupas alegres, ficarão amontoados em volta dela. Porém comigo ela não irá dançar, porque não lhe dei um rosa vermelha – e atirou-se na relva, enterrou o rosto entre as mãos, e chorou.

- Por que é que ele esta chorando? – perguntou o Lagartinho Verde, ao passar por ele com o rabinho empinado par ao ar.

- Por que será? – disse a Borboleta, que estava esvoaçando atrás de um raio de sol.

- É mesmo, por que será? – sussurrou uma Margarida a seu vizinho, com uma voz suave e baixinha.

- Está chorando por uma rosa vermelha – disse o Rouxinol.

Mas o Rouxinol compreendeu o segredo da tristeza do Estudante, e ficou em silêncio debaixo do carvalho, pensando sobre o mistério do Amor.

Repentinamente ele abriu as asas para voar e subiu para os ares, passando pelo bosque como uma sombra e, como uma sombra, deslizar através do jardim.

Bem no centro do gramado havia uma linda Roseira e, ao vê-la, o Rouxinol voou para ela e pousou em um ramo.

- Dê-me uma rosa vermelha – exclamou ele – que eu lhe cantarei minha mais doce canção.

Mas a roseira não estava interessada.

- Minhas rosas são brancas – respondeu. – Brancas como a espuma do mar, e mais brancas do que a neve das montanhas. Mas vá até minha irmã que cresce junto ao relógio de sol, que talvez ela lhe dê o que quer.

E então o Rouxinol voou para a Roseira que crescia ao lado do velho relógio de sol.

- Se você me der uma rosa vermelha – gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.

Mas a Roseira sacudiu a cabeça.

- Minhas rosas são amarelas – respondeu ela -, tão amarelas quanto os cabelos da sereia em um trono de âmbar, e mais amarelas do que os junquilhos que florescem no campo do ceifador aparecer com sua foice. Mas pode ir até a minha irmã que cresce debaixo da janela do Estudante, que talvez ela lhe dê o que está procurando.

E então o Rouxinol voou até a Roseira que crescia debaixo da janela do Estudante.

Se você me der uma rosa vermelha – gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.

Mas a Roseira sacudiu a cabeça.

Minhas rosas são vermelhas – respondeu ela -, vermelhas como os pés da bomba e mais vermelhas do que os grandes leques de coral que abanam sem parar nas cavernas do oceano. Mas o inverno congelou minhas veias, a geada cortou meus botões, a tempestade quebrou meus galhos, e não terei uma só rosa este ano.

- Eu só quero uma rosa – gritou o Rouxinol. – Apenas um rosa vermelha! Não haverá nenhum jeito de consegui-la?

- Só há um – respondeu a Roseira -, mas é tão terrível que não ouso contar.

- Pode contar – disse o Rouxinol -, eu não tenho medo.

Se quiser uma rosa vermelha – disse a Roseira -. você terá de construí-la de música ao luar, tingindo-a com o sangue do seu próprio coração. Terá de cantar para mim com seu peito de encontro a um espinho. Terá de cantar para mim a noite inteira, e o espinho terá de furar o seu coração, e o sangue que o mantém vivo terá de correr para minhas veias, transformando-se em meu sangue.

- A morte é um preço alto para se pagar por uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol -, e a Vida é muito cara a todos. É tão agradável ficar parado no bosque verde, olhar o Sol em seu carro de ouro, e Lua em seu carro de pérolas. Doce é o perfume do pilriteiro, doces são as campânulas que se escondem no vale, e as urzes que balançam nas colinas. No entanto, o Amor é melhor do que a Vida, e o que é o coração de um passarinho comparado como o coração de um homem?

Com isso, ele abriu as asas e lançou vôo para os ares. Passou célebre sobre o jardim e como uma sombra deslizou pelo bosque.

O jovem Estudante ainda estava deitado na relva, onde ele o havia deixado, e as lágrimas nem haviam secado de seu lindo rosto.

- Fique contente – canto-lhe o Rouxinol – fique contente. Você terá sua rosa vermelha. Eu a construirei com minha música ao luar, tingindo-a com o sangue do meu próprio coração. E só o que peço em troca é que você seja um amante fiel e verdadeiro, pois o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora ela seja sábia, e mais poderoso do que o Poder, embora este seja poderoso. Cor das chamas são suas asas, e cor das chamas é o seu corpo. Seus lábios são doces como o mel, seu hálito como o incenso.

O Estudante olhou para o alto e ouviu, mas não compreendeu o que o Rouxinol dizia, porque só conhecia as coisas quem vêm escritas nos livros. Mas o Carvalho compreendeu e ficou triste, porque gostava muito do Rouxinol, cuja família tinha ninho em seus ramos.

- Cante-me uma última canção – sussurrou ele -,vou sentir-me tão só quando você se for.

Então o Rouxinol cantou par ao Carvalho, e sua voz parecia a água quando sai saltitando de um jarro de prata.

Quando a canção acabou, o Estudante se levantou e tirou do bolso um caderninho de notas e um lápis.

- Ele tem forma – disse para si mesmo, enquanto caminhava pelo bosque -, isso ninguém pode negar. Mas será que tem sentimentos? Temo que não. Na verdade, deve ser como a maioria dos artistas: é todo estilo, sem qualquer sinceridade. Ela jamais se sacrificaria pelos outros. Só pensa em música, e todo mundo sabe que as artes são egoístas. Mesmo assim, é preciso admitir que a sua voz tem algumas notas lindas. Que pena não significarem, nem qualquer utilidade.

E foi para o seu quarto, onde se deitou em seu pequeno catre e, depois de pensar por algum tempo em sua amada, adormeceu.

Quando a lua começou a brilhar no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e encostou o peito no espinho. Durante toda a noite ele cantou, como o peito no espinho, enquanto a fria Lua de cristal curvara-se para ouvir. Ele cantou a noite inteira e o espinho entrava cada vez mais fundo sem eu peito, enquanto seu sangue escorria para fora.

Primeiro ele cantou sobre o nascimento do amor no coração de um rapaz e uma moça. E no ramo mais alto da Roseira foi florescendo uma rosa maravilhosa, pétala por pétala, à medida que uma canção seguia outra. A princípio ela era pálida como a névoa que parira sobre o rio, pálida como os pés da manhã e prateada como as asas da madrugada. Como a sombra de uma rosa em um espelho de prata. Como a sombra de uma rosa em uma lagoa, assim era a rosa que floresceu no ramo mais alto da Roseira.

Mas a Roseira ficava gritando para o Rouxinol se apertar cada vez mais de encontro ao espinho.

- Aperta mais, Rouxinol! – gritava a Roseira -, se não o dia chega antes que a rosa esteja pronta.

E o Rouxinol fazia cada vez mais pressão contra o espinho, e cantava cada vez mais alto, pois estava cantando o nascimento da paixão entre a alma de um homem e uma donzela.

E um delicado enrubescer rosado apareceu nas folhas da rosa, como o enrubescer no rosto do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho ainda não havia atingido o coração, de modo que o coração da rosa permanecia branco, pois só o sangue do coração de um Rouxinol pode deixar rubro o coração de uma rosa.

E a Roseira gritava para o Rouxinol enfiar mais e mais o peito de encontro ao espinho.

- Mais ainda, pequeno Rouxinol – gritava a Roseira -, se não o dia chega antes de a rosa estar pronta.

E o Rouxinol foi se apertando cada vez mais de encontro ao espinho, e o espinho tocou-lhe o coração, e um terrível golpe de dor passou por toda a avezinha. A dor era horrível, horrível, e a canção foi ficando cada vez mais enlouquecida, pois agora ele cantava o Amor que ficava perfeito com a Morte, o Amor que não morre no túmulo.

E a rosa maravilhosa ficou rubra, como a rosa do céu do oriente. Rubro era todo o círculo de pétalas, e rubro como um rubi era seu coração.

Mas a voz do Rouxinol foi ficando mais fraca, suas asinhas começar a se debater, e uma névoa cobriu seus olhos. Cada vez mais fraca foi ficando sua canção, e ele sentiu alguma coisa que sufocava sua garganta.

E então ele soltou uma última porção de música. A Lua branca ouvi-a e se esqueceu da madrugada, ficando no céu. A rosa também ouviu, estremeceu toda em êxtase, e abriu suas pétalas ao ar frio da manhã. O eco levou-a até sua caverna púrpura nas colinas e despertou de seus sonhos os pastores que dormiam. Ela flutuou até os juncos dos rio, e estes levaram a mensagem par ao mar.

- Veja, veja! – gritou a Roseira. – Agora a Rosa está pronta.

Mas o Rouxinol não respondeu, pois tinha caído morto no meio da relva, como o espinho atravessado no peito.

Ao meio-dia o Estudante abriu sua janela e olhou para fora.

- Ora, mas que sorte maravilhosa! – exclamou ele. – Eis ali uma rosa vermelha1 Jamais vi rosa como essa em toda a minha vida. É tão bonita que estou certo de que deve ter algum nome em latim! – e, debruçando-se, colheu-a

Depois ele botou o chapéu e correu para a casa do Professor, com a rosa na mão.

A filha do Professor estava sentada na porta, enrolando um fio de seda azul em um novelo, como o cachorrinho deitado a sues pés.

Você disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse um a rosa vermelha – exclamou o Estudante. – Aqui está a rosa mais vermelha do mundo inteiro. Use-a junto ao seu coração hoje à noite, e enquanto estivermos dançando eu lhe direi o quanto a amo.

Mas a moça franziu o cenho.

- Receio que ela não combine com o meu vestido respondeu. – E, além do mais, o sobrinho do Camerlengo mandou-me uma jóia de verdade, e todos sabem que as jóias custam muito mais do que as flores.

- Você é muito ingrata. – disse o Estudante com raiva, e atirou a rosa na rua, onde ela caiu em uma sarjeta e uma carroça acabou passando por cima.

- Ingrata? – disse a moça. – Pois fique sabendo que você é muito rude e, afinal, quem é você? Apenas um estudante. Ora, não creio sequer que tenha fivelas de prata para seus sapatos, como as que tem o sobrinho do Camerlengo – e, levantando-se de sua cadeira, entrou na casa.

- Que coisa tola é o amor! – disse o Estudante, enquanto se afastava. – Não tem a metade da utilidade da Lógica, pois não prova nada, e fica sempre dizendo a todo mundo coisas que não vão acontecer, fazendo com que acreditemos em coisas que não são verdade. Enfim, não é nada prático e, como hoje em dia ser prático é o importante, vou voltar à Filosofia e estudar Metafísica.

E voltou para seu quarto, onde pegou um enorme livro todo empoeirado e começou a ler.






OSCAR WILDE "O FANTASMA DE CANTERVILLE"



Quando Mister Hiram B. Otis, o embaixador americano,
adquiriu o Parque Canterville, não faltou quem o advertisse
de que cometia uma loucura, porque na habitação apareci-
am, indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade,
o próprio Lord Canterville, cujo caráter era dos mais exi-
gentes em escrúpulos, supusera seu dever assinalar o fato,
chegado o momento de discutirem as condições do negó-
cio.
- Até nós mesmos tínhamos já muito pouca vontade de
residir aqui - disse Lord Canterville - desde que a minha tia-
avó, a duquesa donatária de Bolton, desmaiou de terror
(ela nunca pôde restabelecer-se desse abalo moral) quan-
do as mãos de um esqueleto lhe assentaram nas espádu-
as, numa ocasião em que se vestia para o jantar. Devo
igualmente dizer-lhe, Mr. Otis, que o fantasma tem sido
visto por muitos membros ainda vivos da minha família,
assim como pelo cura da paróquia, o Reverendo Augustus
Dampier, agregado do King’s College, em Cambridge. De-
pois do desgraçado acidente sucedido à duquesa, nenhum
dos nossos criados novos quis manter-se a serviço, e Lady
Canterville raramente conseguia conciliar o sono durante a
noite por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor
e da biblioteca.5
- Lord Canterville, - respondeu o embaixador - eu sou o
comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que
lhes seja atribuído. Venho de um país moderno em que o
povo tem tudo quanto o dinheiro pode obter. Não é certo
que a nossa atrevida mocidade revoluciona o Velho Mun-
do? Não lhes arrebatam as melhores atrizes e prima-do-
nas? Se existisse um fantasma na Europa, dentro em pou-
co o teríamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto
num dos nossos museus ou exibido nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de fato, exista -
disse, sorrindo, Lord Canterville. - Pode ser que haja resis-
tido às propostas dos seus arrojados empresários. É bem
conhecido desde há três séculos, precisamente a partir do
ano de 1584, e nunca deixa de fazer a sua aparição às
vésperas do falecimento de cada pessoa da nossa família.
- Oh! Em todas as famílias o médico faz exatamente o
mesmo, Lord Canterville. Vamos, não existe fantasma al-
gum. Não creio que as leis da natureza abram uma exceção
em favor da aristocracia inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito na-
turais - comentou Lord Canterville, sem compreender a
última observação de Mr. Otis - e, se lhe é indiferente ter
um fantasma portas adentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas, a transação estava concluída, e,
já quase ao findar da época, o embaixador e a família fo-
ram instalar-se no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira Miss Lucrécia R. Tappan, da rua
West 53, tinha sido célebre em Nova lorque pela sua bele-
za. Era, agora, mulher de meia-idade, muito agradável, com
belos olhos e soberbo perfil. Muitas americanas, ao aban-
donarem o país natal, dão-se ares de mulheres atingidas
por um mal incurável, imaginando ser essa uma das for-
mas da sutileza européia; mas Mrs. Otis não caíra nunca
em semelhante erro. Gozava de uma admirável complei-
ção e possuía maravilhoso equilíbrio emocional. Na verda-
de, e sob numerosos aspectos, era muito inglesa e ofere-6
cia excelente exemplo de que a Inglaterra e a América nada
têm hoje que as distinga uma da outra, salvo, bem enten-
dido, a linguagem.
0 filho primogênito, a quem, num impulso de patriotismo
que ele jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o
nome de Washington, era um rapaz de cabelos louros e
muito bem-encarado; parecia integralmente dotado para
entrar na diplomacia americana, pois vencera os alemães,
três estações a fio, no cassino de Newport. A reputação de
exímio dançarino que havia conquistado precedera mesmo
a sua chegada a Londres. As gardênias eram as únicas fra-
quezas do seu espírito; posto isso de parte, mostrava ter
muito bom senso.
Miss Virgínia E. Otis era uma jovenzinha de quinze anos,
graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos
rasgados e azuis refletiam uma bela franqueza. Era uma
admirável amazona. Certo dia, batera em corrida o velho
Lord Bilton, dando duas voltas no parque em cima do seu
potro e ganhando por comprimento e meio, precisamente
em frente da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo
do jovem Duque de Cheshire. 0 Duque logo nesse mesmo
instante tinha-lhe pedido a mão, e, remetido nessa própria
tarde para o colégio pelos encarregados de sua educação,
regressara a Eton derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a Virgínia, contavam-se os gêmeos,
comumentemente designados por “os condenados ao açoi-
te”. Eram ambos adoráveis meninos e, com o digno em-
baixador, os únicos verdadeiros republicanos da família.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de
Ascot, a estação ferroviária mais próxima, Mr. Otis telegra-
fara no sentido de irem buscá-los de carruagem; e, cheios
de alegria, puseram-se todos a caminho.
Era uma linda meia-tarde de julho, em que o aroma dos
pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando, ouvi-
am um pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam,
escondido entre os rumorosos abrolhos, o brilhante peiti-7
lho de plumagem de um faisão. À sua passagem, pequenos
esquilos, no seio da rama das faias, ficavam a olhá-los, e,
alçando a sua cauda branca, os coelhos fugiam lépidos atra-
vés dos silvados ou por cima dos cômoros recobertos de
musgo.
Porém, na ocasião em que se entranhavam na alameda do
Parque Canterville, o céu cobriu-se subitamente de nuvens,
uma calma estranha pareceu envolver a atmosfera, um
bando de gralhas passou silenciosamente por cima deles e,
antes que houvessem atingido a casa, começaram a cair
grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A
maneira como se apresentava era irrepreensível. Envergava
um vestido de seda preta, avental branco e touca desta
mesma cor. Era Mrs. Umney, a governanta. Mrs. Otis, a
pedido de Lady Canterville, consentira em conservá-la a
seu serviço. Quando puseram pé em terra, ela fez a cada
um dos seus novos amos uma rasgada vênia e disse, com
solenidade já desusada:
- Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio
no estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande ex-
tensão, de teto baixo e ao fundo da qual se via uma ampla
janela com vitrais. Fora aí que se preparara o chá, e, após
terem-se despojado das vestes de viagem, sentaram-se e
puseram-se a olhar em volta, enquanto Mrs. Umney os
servia.
De súbito, Mrs, Otis descobriu no soalho, nas peças de
madeira embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom
vermelho-escuro, e, longe de suspeitar do que aquilo signi-
ficava, disse a Mrs. Umney:
- Creio que alguma coisa caiu ali e se alastrou.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa, a antiga
governanta - é sangue.
- Mas é horrível! - exclamou Mrs. Otis. - Não gosto nada de
ver manchas de sangue nos salões. É necessário fazer de-8
saparecer isso imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e miste-
riosa:
- É o sangue de Lady Eleanor de Canterville, assassinada
precisamente neste local pelo marido, Sir Simon de
Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos
e desapareceu de súbito, em circunstâncias estranhas. 0
corpo dele nunca foi encontrado, mas o seu espírito culposo
vagueia ainda por esta casa. A mancha de sangue provo-
cou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De res-
to, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis. 0 Pinkerton, o rei
dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir
e fechar de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir,
Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente
com um pauzinho que tinha suas semelhanças com cos-
mético negro.
No fim de alguns instantes, a mancha desaparecera com-
pletamente.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o
rapaz, lançando um olhar sobre a família, toda ela em ati-
tude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, um terrí-
vel relâmpago iluminou por inteiro o sombrio compartimento
e um estrondoso ribombo de trovão fê-los erguer brusca-
mente, ao passo que Mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o em-
baixador americano, acendendo um charuto. - Este antigo
país é, suponho, tão excessivamente povoado que não há
bom tempo que chegue para todos os seus habitantes. Foi
sempre opinião minha que a emigração era a única solução
para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou Mrs. Otis - que faremos com
uma mulher que perde assim os sentidos?
Suspender-lhe-emos o pagamento, quando tal ocorrer, de9
sorte que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Uniney não deixou de voltar a si dentro de poucos
instantes. Estava, porém, sem dúvida alguma, muito co-
movida. Com ar grave, preveniu Mrs. Otis de que não tar-
dariam a registrar-se acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela
- coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites após
noites não tenho podido pegar no sono, por motivo do que
de terrível se passa aqui.
Mr. Otis e sua esposa afirmaram à boa mulher que não
tinham medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as
bênçãos da Providência para os seus novos amos e proce-
dido de jeito a obter aumento de salário, a velha governanta
recolheu-se ao seu quarto, coxeando levemente.
Naquela noite, a tempestade desencadeou-se com violên-
cia, mas nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã
seguinte, ao descer para o desjejum, os Otis verificaram
que a horrível mancha de sangue reaparecera no soalho.
— Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas
- disse Washington - pois sempre o empreguei com êxito.
Isto deve ser o fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela se-
gunda vez; no dia seguinte, porém, ela estava de novo
patente. No outro dia a seguir, a mancha lá se via, embora
a biblioteca tivesse sido, na véspera à noite, fechada por
Mr. Otis em pessoa, que levara a chave para o seu quarto.
0 interesse de toda a família encontrava-se agora desper-
to. Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessi-
vamente dogmático ao negar a existência de fantasmas.
Mr. Otis exprimiu o propósito de pedir a sua inscrição na
“Sociedade de Estudos Psíquicos”, e Washington enviou uma
extensa carta aos senhores Myers e Podmore, acerca da
“persistência das manchas de sangue após o crime”.
Nessa noite, todas as dúvidas a respeito da existência
objetiva dos espectros se dissiparam para sempre. 0 dia
tinha estado quente e ensolarado, e quando a proximidade10
da noite trouxe alguma frescura, a família inteira partiu para
um passeio de carruagem. Não regressaram todos senão
às nove horas e fizeram em seguida uma ligeira refeição.
De modo algum, a conversa incluiu a menor alusão sequer
a fantasmas, de maneira que não se poderiam pôr em cau-
sa essas preliminares condições de expectativa e auto-su-
gestão que tantas vezes precedem a aparição dos fenô-
menos psíquicos. Como Mr. Otis me contou mais tarde, a
discussão apegou-se aos triviais assuntos que constituem
a conversação dos americanos cultos da melhor socieda-
de: a superioridade imensa de Miss Fanny Davenport, como
atriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho
verde, bolos de trigo mouro, mesmo nos melhores esta-
belecimentos ingleses; a importância de Boston no desen-
volvimento do espírito universal; as vantagens do sistema
de registro das bagagens; a suavidade da pronúncia das
palavras em uso em Nova Iorque comparada com a pro-
núncia arrastada de Londres. Nenhuma menção das coisas
sobrenaturais. Nenhuma alusão a Sir Simon de Canterville.
Dadas as onze horas, a família recolheu-se e, às onze e
meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, Mr. Otis foi despertado
por um ruído singular que vinha do corredor, perto do seu
quarto. Dir-se-ia um tinido que se entrechocavam, e o ruí-
do parecia cada vez mais próximo. Levantou-se imediata-
mente, acendeu um fósforo e viu o relógio. Era uma hora
em ponto. Muito calmo, Mr. Otis tateou o pulso. Não se
tratava de febre. 0 ruído estranho continuava e, dentro em
pouco, Mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou os
chinelos, tirou do seu estojo de toalete uma garrafinha
oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrível an-
cião. Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em
brasa, lançavam clarões vermelhos. Caíam-lhe sobre os
ombros os cabelos compridos de cor cinza, em madeixas
emaranhadas. A roupa que vestia, de corte antigo, estava11
cheia de nódoas e em farrapos. Pesados grilhões, todos
cheios de ferrugem, pendiam-lhe dos pulsos e dos torno-
zelos.
- Meu caro senhor, - disse Mr. Otis - perdoe-me importuná-
lo, mas é absolutamente necessário que unte esses gri-
lhões. Pensando em você peguei este frascozinho de lubri-
ficante. Dizem ser muito eficaz logo à primeira vez que se
aplica. No prospecto junto, achará muitos atestados dos
mais eminentes sábios do país. Vou deixá-lo aqui, o frasco,
junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras feliz em ar-
ranjar-lhe outro, se o senhor precisar.
Ao dizer isto, o embaixador dos Estados Unidos colocou o
frasco sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fe-
chando a porta, voltou a meter-se na cama.
0 fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio
de uma indignação bem natural; depois, arremessando vi-
olentamente o frasco ao soalho encerado, sumiu-se ao
longo do corredor a soltar grunhidos cavernosos e proje-
tando terrificantes clarões verdes ao redor.
Porém, ao atingir o alto da grande escadaria de carvalho,
abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois peque-
nos vultos vestidos de branco, e um rotundo travesseiro
passou-lhe, zumbindo, rente à cabeça! Decididamente, não
havia tempo a perder e, adotando como rápido meio de
salvação a quarta dimensão do espaço, esvaiu-se através
do revestimento de madeira das paredes, após o que a
habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcovazinha secreta situada na ala
esquerda do edifício, apoiou-se, para retomar fôlego, e pôs-
se a refletir no que lhe acabava de suceder. Em toda a sua
carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca
tinha sido insultado tão grosseiramente. Recordou o esta-
do de terror em que lançara a duquesa donatária, quando
ela se contemplava ao espelho, enfeitada de diamantes e
rendas; as quatro C~ que haviam tido uma crise de nervos
muito simplesmente porque ele, rindo com escárnio, as12
espreitava através dos cortinados de um dos quartos de
hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um
sopro quando ele saía uma noite da biblioteca, onde se
retardara um pouco mais, e que depois, vítima de aciden-
tes nervosos, fora tratado por Sir William Guil; a velha se-
nhora de Tremouillac, a qual tendo acordado de manhã muito
cedo e visto um esqueleto sentado numa poltrona, junto
do fogão, imerso, na leitura do seu diário íntimo, foi obriga-
da a conservar-se de cama durante seis semanas, presa
de uma febre cerebral. A duquesa, logo que se vira curada,
reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações
com o Senhor Voltaire, esse céptico notório.
0 fantasma lembrou-se também da terrível noite em que
esse patife do Lord Carterville foi encontrado no seu quarto
de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo
da garganta; precisamente antes de morrer, confessara ter
trapaceado no jogo por meio dessa carta e roubado de
Charles James Fox, na casa dos Crockfords, cinqüenta mil
libras esterlinas. 0 fantasma, jurava ele, obrigara-o a engo-
lir a carta.
0 fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas
mais belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na
copa, se suicidara com um tiro de revólver por ter visto
uma mão verde bater nos vidros; depois, o da bela Lady
Stutfield, que se intimou a trazer sempre em volta do pes-
coço uma fita de veludo negro, para ocultar a marca que
cinco dedos de fogo haviam imprimido na sua pele branca
de leite, e que acabara Por se afogar no lago das carpas,
no fim da alameda do rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fan-
tasma passou em revista as suas realizações mais famo-
sas. E com um sorriso cheio de azedume, recordou-se da
sua última ,aparição como “Ruben, o Vermelho, ou o Bebê
Estrangulado”, da sua estréia no papel de “Gibeon, o Vam-
piro de Moor”, e da agitação que provocara, numa encan-
tadora tarde de junho, jogando muito simplesmente o13
chinquilho com a sua própria ossada, em cima da relva do
campo de tênis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miserá-
veis americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante
e arremessar-lhe travesseiros à cabeça! Era verdadeira-
mente intolerável. Nunca fantasma algum fora tratado da-
quela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e, até romper a
aurora, permaneceu em atitude de profunda meditação.
Na manhã seguinte, durante o desjejum, o fantasma cons-
tituiu o objeto de prolongada discussão. 0 embaixador dos
Estados Unidos estava, como é natural, um pouco aborre-
cido por ver que a sua dádiva não tinha sido aceita.
- De forma alguma eu tive a intenção de dirigir ao fantasma
uma injúria pessoal e, sendo certo que ele reside na casa
há tanto tempo, vocês devem confessar que é muito pou-
co delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça...
Lamento ter de declarar que, perante esta justa advertên-
cia, os gêmeos desataram em gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o embaixador - se ele se
recusa, teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos
de confiscar-lhe os grilhões. É impossível dormir com um
barulho assim no corredor!
Mas, durante todo o resto da semana, o fantasma não os
incomodou absolutamente nada. A única coisa a excitar a
atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de san-
gue no soalho da biblioteca. E essa era uma estranha coi-
sa, porque Mr. Otis fechava a porta a chave todas as tar-
des e mandava cerrar bem as janelas. 0 fato de a mancha
mudar tantas vezes de tom, como um camaleão, provo-
cava igualmente numerosos comentários. Em determina-
das manhãs, ela aparecia de um vermelho-escuro, quase
um vermelho-indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto;
no outro dia, era um violeta suntuoso; e até uma vez quan-
do os Otis todos desceram para as orações familiares, con-
forme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Ameri-
cana Reformada e Episcopal, verificaram que a mancha era14
de um verde-esmeralda resplandecente. Bem entendido,
estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a família;
e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respei-
to. A única pessoa que não tomava parte na brincadeira
era a pequena Virgínia, que, por qualquer razão ignorada,
parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e
esteve perto de desatar a chorar na manhã em que a nó-
doa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efetuou-se no domingo,
à noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama,
foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vin-
do do vestíbulo. Descendo precipitadamente a escada, ve-
rificaram que uma grande e antiga armadura, despregada
da sua base, fora projetada para o lajedo, enquanto o fan-
tasma de Canterville, sentado numa cadeira de alto espal-
dar e com uma expressão de angústia, esfregava os joe-
lhos.
Os gêmeos, que se tinham munido das suas zarabatanas,
descarregaram imediatamente dois pequenos projéteis so-
bre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só lon-
gos e sérios exercícios, tendo por mestre um professor
exímio, podem dar, enquanto o embaixador dos Estados
Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, inti-
mava-o, segundo a etiqueta, a que pusesse as mãos ao
alto.
0 fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho
grito de raiva e deslizou por entre eles todos tal qual um
nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washing-
ton Otis e deixando-os na completa escuridão.
Ao alcançar o cimo da escadaria, o fantasma recobrou âni-
mo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos,
cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado. Con-
tava-se que aquilo fizera embranquecer, durante o espaço
de uma era sentar-se sobre o peito deles, de maneira a
produzir a sufocante sensação do pesadelo; depois, fican-
do as suas camas tão juntinhas, surgiria no meio sob a15
forma de um cadáver verde e gelado, até que os manos
ficassem paralisados de medo; por último, despojando-se
do sudário, arrastar-se-ia em volta de todo o aposento
com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tem-
po girar as meninas dos olhos, numa imitação de “Daniel, o
Mudo, ou o Esqueleto do Suicida”, papel no qual produzira
grande efeito em muitas ocasiões e ao qual atribuía a mes-
ma importância da sua famosa personagem de “Martinho,
o Louco, ou o Mistério Mascarado”.
Às dez e meia, ouviu a família ir se deitar. Esteve um boca-
do de tempo perturbado pelas sonoras risadas dos gême-
os, os quais, com a descuidada alegria de estudantes, cer-
tamente se divertiam antes de se enfiar na cama. Mas, às
onze horas e um quarto tudo estava sossegado e, ao soar
a meia-noite, ele partiu para a sua expedição.
0 mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o
corvo crocitava no cimo do velho teto e o vento vagueava
em volta da casa, gemendo como alma penada. Mas, a
família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o caden-
ciado ressonar do embaixador dos Estados Unidos cobria o
ruído do temporal. 0 fantasma esgueirou-se para fora da
madeira das paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca
murcha e cruel desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua
escondeu-se por detrás de uma nuvem, quando ele pas-
sou junto da grande janela ogival, ornada de um brasão
azul e ouro, que representava as suas próprias armas e as
da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra
funesta e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs
ouvir alguém a chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido
de um cão subia da Granja Vermelha. Prosseguiu caminho,
resmungando pragas do século dezesseis e brandindo de
quando em quando a adaga cheia de ferrugem.
0 fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que
conduzia ao quarto do infortunado Washington. Parou um
instante. 0 vento sacudia-lhe as madeixas compridas e de
cor cinza e fazia ondular, de maneira grotesca e fantástica,16
o sudário de morto. 0 quadro inspirava indizível horror. 0
relógio soou então o quarto de hora. Compreendeu que
tinha chegado o momento. Soltou, baixinho, uma risadinha
de escárnio e contornou a esquina do corredor. Mas, mal
tinha dado um passo, logo recuou com um lamentoso ge-
mido de terror e logo também ocultou nas suas mãos os-
sudas a face macilenta.
Diante de si, erguia-se um horrível espectro, tão imóvel
como uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho
de um louco. A cabeça dele era calva e luzidia, a face re-
donda, gorda e branca. Um riso ignóbil parecia ter-lhe con-
torcido as feições numa expressão eterna de zombaria.
Dos olhos, escorriam clarões escarlates. A boca era um
largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta, semelhan-
te à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico.
Um letreiro, contendo uma inscrição em caracteres estra-
nhos e antigos, ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certifi-
cado de infâmia, a narrativa de medonhas faltas, uma lista
de crimes espantosos. Com a mão direita, brandia um gládio
de aço luzidio.
Nunca tendo visto, até a data, fantasma algum, sentiu na-
turalmente um grande pavor. Lançou rapidamente outro
olhar ao terrível espectro e desatou a fugir para o seu quarto,
tropeçando, ao seguir pelo corredor, no longo sudário que
trazia. Por último, deixou cair a adaga enferrujada dentro
das grossas botas do embaixador, onde o mordomo foi
encontrá-la no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da
estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Po-
rém, transcorrido um pedaço de tempo, a antiga coragem
dos Cantervilles recuperou os seus direitos. Decidiu ir falar
com o outro fantasma logo que nascesse o dia. E apenas a
aurora prateou as colinas, voltou ao local onde havia, pela
primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espec-
tro, raciocinando que, no final das contas, dois fantasmas
valiam mais do que um e que, com a ajuda do seu novo17
colega, talvez vencesse melhor os gêmeos.
Mas quando ali chegou, no mesmo lugar, um horrível
espetáculo feriu seus olhos, Era de todo evidente que acon-
tecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desa-
parecera completamente das órbitas, o gládio luzidio es-
corregara-lhe da mão e o corpo encostava-se à parede
numa atitude de constrangimento e incômodo.
Precipitou-se para ele e tornou-o nos braços. Mas, com
assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o
corpo foi-se abaixo e ele percebeu que estreitava apenas
um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tem-
po que uma escova de cabo, um machado de cozinha e
um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender
esta curiosa transformação, pegou o letreiro com pressa
febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abominá-
veis:
0 FANTASMA OTIS
é o único, autêntico e original.
DESCONFIEM DAS Imitações
...!
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pre-
gado uma peça! A característica expressão dos Cantervilles
perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e,
levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos desca-
madas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola
antiga, que, quando se ouvisse mais duas vezes o alegre
apelo do galo, dar-se-iam ali acontecimentos sangrentos e
a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos pas-
sos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância,
de uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um18
galo. 0 fantasma soltou um prolongado e amargo riso e
esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qual-
quer razão estranha, o galo não repetiu o canto. Por fim,
às sete horas e meia, a chegada dos serviçais obrigou-o a
abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao
quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e
no seu abortado plano. Consultou, então, muitas obras a
que dedicava particular apreço e que tratavam dos antigos
tempos da cavalaria. Aí verificou que, em todas as vezes
que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo can-
tara a segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. -
Ali! Pena não me encontrar no tempo em que, com minha
intrépida lança, lhe trespassaria a garganta e em que o te-
ria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro!
Depois, estendeu-se num confortável ataúde de chumbo,
em que permaneceu até o cerrar da noite.
No dia seguinte, o fantasma estava muito fraco e
cansadíssimo. Começava a ressentir-se dos efeitos da
medonha
agitação das quatro últimas semanas. Estava com os ner-
vos abalados; até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu
do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à
nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis
não queria aquilo, estava claro que, sem sombra de dúvi-
da, não era digna do caso. Com plena evidência, essas
pessoas viviam num plano de existência de baixo materia-
lismo e eram em absoluto incapazes de apreciar o valor
simbólico dos fenômenos sobrenaturais. 0 assunto das apa-
rições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais
eram, bem entendido, coisas diferentes e alheias à atenção
dessa gente. Ele, fantasma, tinha como missão, missão
solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular
através de um janelão em ogiva na primeira e na terceira
quartas-feiras do mês e não via maneira de poder subtrair-
se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo,19
fora culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente es-
crupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrena-
tural.
Três sábados a fio, o fantasma atravessou, portanto, o
corredor como de costume, entre a meia-noite e as três
horas da manhã, tomando mil precauções para não ser
visto, nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente
quanto possível as faixas do soalho roídas pelo caruncho,
enrolou-se ri lo manto de veludo negro e pensou empregar
o lubrificar, untar os seus grilhões. É inevitável a mim reco-
nhecer que não foi sem dificuldade que veio a adotar este
derradeiro meio de proteção; mas, uma noite e na hora
em que a família se preparava para ir jantar, ele introduziu-
se nos aposentos de Mr. Otis e lançou mão do respectivo
frasco. Ao fazê-lo, experimentou, a princípio, um pouco de
humilhação, mas logo adquiriu inteligência bastante para se
inteirar de que a invenção estava longe de ser má e de que,
até certo ponto, lhe favorecia os planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz. Es-
tendiam, constantemente, cordas no corredor, nas quais,
quando estava escuro, tropeçava; e uma vez, em que se
encontrava vestido para desempenhar o papel do “Negro
Isac ou o Caçador de Hogley Woods”, deu uma queda mui-
to grave sobre um declive que os gêmeos haviam armado
e que ia da sala das tapeçarias até o cimo da escada de
carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que
resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer
a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu, pois, uma
visita, na noite seguinte, aos juvenis e insolentes colegiais
de Eton, no seu famoso disfarce de “Ruperto, o Arrisca
Tudo, ou o Conde-sem-Cabeça”.
0 fantasma já não fazia aparição alguma mascarado desta
maneira há mais de setenta anos, precisamente desde que,
assim vestido, aterrorizara a gentil Lady Bárbara Modisli, a
ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de
noivado com o avô do atual Lord Canterville e fugido para20
Grema Green com o belo Jack Castleton, declarando que
nada neste mundo a faria entrar numa família que deixava
um tão horrível fantasma percorrer o terraço, ao cair o
crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo
por Lord Canterville em Wandsworth Common, e Lady Bár-
bara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge
Wells, antes de findar aquele mesmo ano; de sorte que, de
todos os aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma “composição” extremamente
difícil (se me é permitido usar esta expressão de teatro a
propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural,
ou, para empregar um termo científico do mundo
supranormal), e foram gastas precisamente três horas para
executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente.
Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas
botas de montar que condiziam com o traje eram um tan-
to largas de mais para ele, e não tinha podido achar senão
uma das pistolas dos coldres da sela; mas, em suma, es-
tava muito contente, e, à uma hora e um quarto, deslizou
através do forro de madeira e desceu suavemente para o
corredor. Chegando ao quarto que os gêmeos ocupavam
(chamavam-no o quarto azul, por motivo do tom das pin-
turas), encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma
entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta,
mas o conteúdo de um grande jarro entornou-se em cima
dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua es-
querda. No mesmo instante, risadas que alguém procurava
reprimir subiram dos leitos de colunas. 0 abalo nervoso
que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o
seu esconderijo com a maior rapidez. No dia seguinte, mui-
tíssimo resfriado, teve de conservar-se na cama. A conso-
lação única que lhe restava era a de não ter levado a sua
própria cabeça nesta expedição; do contrário, a imprudên-
cia poder-lhe-ia ter acarretado as mais graves conseqüên-
cias.
0 fantasma abandonou, então, toda a esperança de assus-21
tar aquela grosseira família americana e contentou-se, afi-
nal, em percorrer os corredores com chinelos de solas de
feltro, o pescoço envolto num espesso cachenê vermelho,
em virtude das correntes de ar, e empunhando um
bacamarte com receio de ser atacado pelos gêmeos. Foi a
19 de setembro que ele recebeu o golpe final.
0 fantasma tinha descido ao vasto ha11 de entrada, certo
de que aí ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar, com
observações satíricas, as grandes fotografias do embaixa-
dor dos Estados Unidos e de sua mulher, assinadas por
Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos
Cantervilles. Encontrava-se vestido com um longo sudário,
muito simples, mas decente, salpicado de manchas de lama
vinda do cemitério. Atara os queixos com uma ligadura de
tela amarelada e segurava uma lanternazinha e uma enxa-
da de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado para o pa-
pel de “Jonas, o Morto sem Sepultura, ou o Ladrão de Ca-
dáveres de Chestsey Barn”, uma das suas mais notáveis
criações, da qual os Cantervilles tinham excelentes razões
para se lamentar, porque fora essa a verdadeira origem da
desavença com o seu vizinho, Lord Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da ma-
nhã. 0 fantasma poderia afirmar que todos os moradores
da casa repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio,
para a biblioteca, a fim de ver se ainda restava qualquer
vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre
ele, de um recanto escuro, dois vultos que agitavam feroz-
mente os braços por cima da cabeça e lhe berravam “U-u!
U-u!” aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitís-
simo natural, ele precipitou-se para a escadaria; porém, aí
esperava-o Washington com o grande esguicho do jardim.
Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente en-
curralado, desapareceu no interior do enorme fogão, que,
felizmente para ele, não estava aceso. Teve de abrir cami-
nho através dos canos e das chaminés e alcançou o seu22
quarto num terrível estado de sujeira, desarranjo e deses-
pero.
Após esta aventura renunciou às expedições noturnas. Os
gêmeos muitas vezes se ocultaram à espera dele e, todas
as noites, juncavam os corredores de cascas de nozes,
coisa que aborrecia bastante os pais e os criados; mas foi
tudo inútil. Era manifesto que o fantasma, ferido nos seus
sentimentos, se recusava a aparecer. Em conseqüência,
Mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a “História do
Partido Democrático”, em que trabalhava havia uma por-
ção de anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-
bake, que causou espanto em toda a região. Os rapazes
dedicaram-se ao cross, ao écarté, ao poker e a outros
jogos nacionais americanos. Virgínia percorreu no seu po-
tro todos os caminhos circunvizinhos, em companhia do
prato feito de moluscos de todas as espécies, cozidos en-
tre camadas de algas sobre pedras em brasa.
Duque de Cheshire, que tinha vindo passar no Parque
Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, natu-
ralmente, que o fantasma desaparecera dali e Mr. Otis es-
creveu a Lord Canterville para informá-lo do caso. Este res-
pondeu que a notícia lhe dava grande prazer e enviou os
seus cumprimentos à digna esposa do embaixador.
Mas, os Otis enganaram-se, porque o fantasma permane-
cia ainda na casa e, embora estivesse agora quase inváli-
do, não tinha de forma alguma a intenção de ficar quieto,
sobretudo desde que soube que, entre os convidados, se
encontrava o Duquezinho de Cheshire, cujo tio-av6, Lord
Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jo-
garia dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser
encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala
de jogo e completamente paralítico. Não obstante ter vivi-
do até avançada idade, nunca s pôde dizer senão isto: “Du-
plo-seis!”
A, história era bem-conhecida na época em que sucedera o
caso; mas, para poupar o sentimento de duas famílias no-23
bres, tudo foi tentado para ocultar o fato. Todavia, encon-
trar-se-á uma narrativa pormenorizada a respeito do caso
no terceiro volume da obra de Lord Tattle: “Memórias Re-
lativas ao Príncipe Regente e seus Amigos.”
Era consequentemente natural que o fantasma quisesse
provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton,
aos quais o unia um parentesco afastado, devido a uma
sua prima-irmã ter casado em segundas núpcias com o
Senhor de Bulkeley, de quem os Duques de Cheshire, como
se sabe, descendem em linha direta. Assim, tomou as suas
disposições para aparecer ao jovem enamorado de Virgínia
na sua célebre criação do “Monge Vampiro, ou o Beneditino
Exangue”, espetáculo tão horrível que quando a velha Lady
Startup o viu, coisa que lhe sucedeu nessa fatal véspera do
ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que
terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias
depois, não sem ter deserdado os parentes, os quais eram
os seus parentes mais próximos, e deixando todo o dinhei-
ro que possuía ao seu boticário de Londres.
Mas, à última hora, o terror que lhe davam os gêmeos
impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câ-
mara real, o duquezinho dormia em paz, no vasto leito de
baldaquino ornado de plumas, e sonhava com Virgínia.
Passados uns dias, andavam Virgínia e o seu apaixonado
de cabelos encaracolados a percorrer a cavalo as pradarias
de Brockley; foi quando a jovenzinha, ao sentir-se presa
numa sebe, rasgou o vestido de amazona tão desastrada-
mente que, ao reentrar em casa, decidiu tomar a escada
secreta para que ninguém a visse. Porém, ao passar cor-
rendo diante da sala das tapeçarias, cuja porta precisa-
mente estava aberta, julgou. perceber a existência de al-
guém no interior. Vindo-lhe à idéia que seria a criada de
quarto da mãe, a qual, às vezes, levava para lá a costura,
entrou para pedir à mulher que lhe consertasse a saia.
E, com imensa surpresa sua, Virgínia viu o fantasma de
Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela,24
contemplando o ouro das árvores amarelentas, vendo as
folhas rubras rodopiarem como loucas na grande alameda.
Tinha a cabeça apoiada na mão e toda a sua atitude traía
uma depressão extrema. Na verdade, ele apresentava um
ar tão desolado e tão lamentável que a pequena Virgínia,
cuja primeira idéia foi fugir e encerrar-se no seu quarto,
tomada logo de piedade, resolveu tentar reconfortá-lo. Os
passos de Virgínia eram tão leves e a melancolia do fantas-
ma tão profunda que este não teve consciência da presen-
ça da jovem senão quando ela lhe dirigiu a palavra.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse Virgínia - mas
os meus irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor
se portar bem, ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - res-
pondeu ele com os olhos escancarados de espanto à vista
daquela gentil jovenzinha que ousava dirigir-se a ele. - É
completamente absurdo! É imprescindível que eu faça ran-
ger os meus grilhões e que ulule pelos buracos das fecha-
duras e que passeie por aí de noite, se é a isto que a meni-
na faz alusão. Essa é a minha única razão de existir.
- Isso não é uma razão de existência, e o senhor bem sabe
que tem sido muito mau. Mrs. Urnney disse-nos, no dia da
nossa chegada aqui, que o senhor matou a sua mulher.
- Bem, concordo; - disse com vivacidade o fantasma -
mas trata-se de um assunto de família que as pessoas
nada têm com isso.
- É muito malfeito matar alguém - insistiu Virgínia, que, às
vezes, mostrava uma encantadora expressão de gravida-
de puritana, herdada de qualquer antepassado da Nova In-
glaterra.
- Olha, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstrata! Mi-
nha mulher era feia, nunca engomava convenientemente a
minha gola de pregas e não conhecia nada de cozinha. Olhe,
eu tinha matado um veado nos bosques de Hogley, um
veado, zinho magnífico. Quer saber como ela a fez apare-
cer na mesa? Mas que importa o caso, presenternente?!25
Tudo isso acabou. Não creio, porém, que fosse muito boni-
to da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de fome,
embora eu a tenha matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero
dizer, Sir Simon... o senhor tem fome? Trago um sanduíche
no meu saco de costura. Quer?
- Não, obrigado, já não como agora. Mas é, apesar dê
tudo. muita amabilidade da sua parte. A menina é muito
mais gentil do que o resto da sua família horrível, grosseira,
indigna!
- Cale-se! - bradou Virgínia batendo com o pé no chão.
Quem é grosseiro, horrível e vulgar, é o senhor; e, quanto
à indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem
roubou Os tubos da minha caixa de pintura para tentar
avivar essa ridícula mancha de sangue na biblioteca. Pri-
meiramente, pegou todos Os meus vermelhos, sem es-
quecer o vermelhão, e eu tive de deixar de pintar o pôr do
sol; depois, arrebatou o verde e o amarelo cromado; e,
finalmente, só me restou o índigo e o branco da China, de
modo que eu só podia pintar paisagens à luz do luar, que
deprimem tanto quando a gente as olha e são tão pouco
fáceis de fazer. Eu nunca disse nada contra o senhor; con-
tudo andava muito aborrecida e tudo aquilo era bastante
ridículo. Já se viu sangue de tom verde-esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco - que
posso eu fazer? Nestes nossos dias, é muito difícil encon-
trar sangue verdadeiro e, visto que foi o seu irmão a
irromper com o tira-nódoas, não, vejo motivo para não
lançar mão dos tubos que lhe pertencem. Quanto à cor, é
simples questão de gosto: os Cantervilles, por exemplo,
têm sangue azul, o mais azulado da Inglaterra, mas sei que
vocês, os americanos, troçam a valer de tudo isto.
- 0 senhor não sabe nada a esse respeito, e o melhor que
tem a fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não
deixará de sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma,
passagem gratuita. 0 senhor não encontrará dificuldade al-26
guma, na alfândega, onde todos os funcionários são de-
mocratas. Uma, vez em Nova Iorque, o senhor alcançará
o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que
daria cem mil dólares para ter um antepassado, e ainda
mais para ter um fantasma na família.
- Estou convicto de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades
- disse Virgínia ironicamente.
- Nem ruínas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma. -
Mas têm a sua marinha e essas suas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papai que conceda aos gêmeos
uma semana suplementar de férias.
- Não, não vá, Miss Virgínia! - exclamou o fantasma. - Es-
tou tão só e tão desgraçado que não sei verdadeiramente
o que fazer. Quero dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às
vezes, é difícil a gente manter-se acordada, na igreja so-
bretudo, mas é coisa bem fácil dormir. Até os próprios bebês
o sabem, todavia, não são muito inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo - disse ele com triste-
za (os belos olhos azuis de Virgínia dilataram-se de espan-
to). - Há trezentos anos que não durmo, e estou tão can-
sado!
O rosto de Virgínia tornou-se grave e os labiozinhos puse-
ram-se a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do
espectro e, ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para
a velha face enrugada.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou. Não há então local
onde possa dormir?
- Lá embaixo, para lá do pinheiral - respondeu ele numa
voz lenta e meditativa - há um jardinzinho. A erva, ali, es-
pessa e alta, salpicada das grandes estrelas brancas de,
cicuta, e o rouxinol canta lá toda a noite. Toda a noite ali
canta o rouxinol, e fria lua de cristal reclina-se para ver
melhor, e o cipreste estende seus braços gigantescos so-
bre os dormentes.27
Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu
o rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da morte - murmurou.
- Sim, da morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na
terra doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de
nós, e escutar o silêncio! Não ter ontem, nem amanhã!
Esqueço tempo! Esquecer a vida, estar em paz! Pode abrir
para mim as portas da casa da morte, porque traz o amor
consigo e o amor é mais forte do que a
Virgínia pôs-se a tremer; percorreu-a toda um frêmito,;
durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de
estar tendo um terrível sonho.
0 fantasma voltou, então, a falar e a voz dele ressoava um
suspiro do vento.
- Já alguma vez leu a velha profecia inscrita nos vitrais da
biblioteca?
- Oh, muitas vezes! - exclamou a donzela, erguendo os -
Conheço-a muito bem. Está pintada em curiosas letras ne-
gras e é difícil de ler. São apenas seis versos:
Quando uma criança de coração puro
conseguir
Tirar dos lábios pecaminosos uma pre-
ce,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos puros brotar uma lá-
grima,
Esta casa ficará para todo o sempre
tranqüila,
A Graça voltará a Canterville.28
- Mas não sei o que isto quer dizer.
- Isto quer dizer - respondeu ele tristemente - que a meni-
na deve chorar comigo pelos meus pecados, porque eu já
não tenho lágrimas, e rezar comigo pela minha alma, por-
que nada me resta de fé. Então, se tiver sido sempre mei-
ga e boa, o anjo da morte terá piedade de mim. Há de ver,
na escuridão, vultos horríveis; vozes maldosas falar-lhe-
ão ao ouvido, mas não sofrerá mal algum porque o inferno
nada pode contra a pureza de uma criança.
Virgínia não respondeu e o fantasma torceu as mãos com
desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de
cabelos de ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se
de súbito, muito pálida. Um estranho clarão perpassou pelo
seu olhar.
- Não tenho medo - disse ela com firmeza. - Rogarei ao
anjo que tenha piedade de você.
0 fantasma endireitou o busto, ao mesmo tempo em que
soltava um débil grito de alegria, e, inclinando-se, com uma
gentileza já há muito fora de moda, pegou na mão da
jovenzinha e beijou-a. Os dedos de Sir Simon tinham a
frieza do gelo e os seus lábios queimavam como fogo,
mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento, enquanto
ele a fazia atravessar o compartimento cheio de sombras.
Bordadas nas tapeçarias, cujo tom verde fora desbotando,
viam-se figurinhas de caçadores. Estes sopraram nas suas
trompas ornadas de glandes e, com as minúsculas mãos,
fizeram-lhe sinal para que fugisse.
- Retroceda, Virginiazinha, - gritavam eles - vá embora!
Mas o fantasma apertava-lhe a mão com mais força e
Virgínia fechou os olhos para não os ver. Horrorosos ani-
mais de caudas semelhantes às dos lagartos, olhos salien-
tes da cabeça,
pestanejaram-lhe repetidamente, de cima da chaminé es-
culpida, e murmuravam:29
- Tome cuidado, Virginiazinha, tome cuidado, olhe que tal-
vez nunca mais tornemos a vê-la!
Mas, o fantasma deslizou com mais celeridade e Virgínia
não deu ouvidos àqueles. Ao atingirem a extremidade da
sala, o fantasma parou e murmurou umas palavras que
Virgínia não podia compreender. Ela abriu os olhos e viu a
parede desaparecer lentamente como um nevoeiro, após
o que se encontrou diante de uma grande caverna negra.
Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a
puxavam pela saia.
- Depressa! Depressa! - gritou o fantasma. - Senão será
demasiadamente tarde.
Num instante, o forro de madeira tomou a cerrar-se por
detrás deles. A sala das tapeçarias ficara vazia.
Daí a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia
não descesse, Mrs. Otis mandou um dos criados cha6má-
la. Passado um momento, este voltou para dizer que não
tinha encontrado Miss Virgínia em parte alguma. Como a
jovem adquirira o costume de ir todas as tardes colher
flores Para 0 jantar, Mrs. Otis não se inquietou; mas ao
soarem as “ horas, sem que a filha tivesse reaparecido,
começou a alarmar-se e mandou os rapazes à sua procu-
ra, ao mesmo tempo em que ela própria e Mr. Otis percor-
riam a casa. Compartimento por compartimento.
As seis e meia, estavam de volta os rapazinhos sem terem
Podido achar o mais leve vestígio de sua irmã. Todos se
encontravam agora na maior agitação e não sabiam o que
fazer, quando Mr. Otis lembrou de repente que, uns dias
antes, deu licença a um bando de ciganos para acamparem
no próximo. Imediatamente, ele partiu para Blackfell Hollow,
onde, - que os ciganos deviam estar agora. Acompanha-
vam-no “ filho mais velho e dois criados da granja. 0
Duquezinho de Cheshire, louco de ansiedade, insistiu vee-
mentemente em juntar-se a eles, mas Mr. Otis opôs-se a
isso, temendo que se travasse ali uma desordem. Porém,
ao chegar ao lugar em vista, descobriu que os ciganos ha-30
viam desaparecido. 0 lume, que ardia ainda, e alguns pra-
tos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma reti-
rada repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens
que explorassem as circunvizinhanças, Mr. Otis regressou a
toda pressa e expediu telegramas para todos os inspetores
de polícia do condado, pedindo-lhes que procurassem uma
menina que fora raptada por vagabundos ou ciganos. Em
seguida, mandou que lhe selassem o cavalo, intimou a es-
posa e os três rapazes a tomarem o seu jantar e, acom-
panhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas, mal per-
correra duas milhas, ouviu atrás de si um galope. Voltando-
se, descortinou o Duquezinho, que vinha montado no seu
potro, o rosto muito afogueado-se cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -
mas não poderei jantar enquanto Virgínia não, for encon-
trada. Peço-lhe que não se zangue. Se o senhor tivesse
consentido, o ano passado, no nosso ajuste de casamen-
to, nada disto teria se sucedido. Não vai me mandar para
trás, não é verdade?! Eu não quero ir para casa! Não quero
ir para casa!
0 embaixador não pôde impedir de sorrir ao juvenil e en-
cantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a
devoção dele por Virgínia. Inclinando-se sobre o seu cava-
lo, deu uma palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de
levá-lo comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em
Ascot.
- 0 chapéu que vá para o diabo! Da Virgínia é que eu preci-
so! - exclamou, rindo, o Duquezinho.
Galoparam até a estação da estrada de ferro, onde Mr.
Otis perguntou se não tinha sido vista ali, na plataforma,
qualquer pessoa correspondendo aos sinais de Virgínia, mas
não pôde obter qualquer indicação. Contudo, o chefe da
estação telegrafou para todas as outras estações da linha
e prometeu31
fazer exercer por toda parte uma severa vigilância. Depois
de ter comprado um chapéu para o Duquezinho de um
comerciante de novidades, que ia precisamente naquele
momento fechar a sua loja, Mr. Otis dirigiu-se para Brockley,
aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito,
era local de encontro dos ciganos, por lá haver uma comu-
nidade. Chegando a esse lugar, Mr. Otis e o seu companhei-
ro acordaram o guarda-campestre, mas não puderam ex-
trair dele a menor informação e, após terem percorrido o
prado inteiro, retomaram o caminho de casa e alcançaram
o Parque Canterville cerca de onze horas da noite, comple-
tamente esgotados e desesperados. Washington e os gê-
meos esperavam-nos no gradil com lanternas, porque a
alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de Virgínia.
Os ciganos tinham se concentrado nas pradarias de Brockley,
mas a jovem não se encontrava entre eles. Uma confusão
de datas explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton,
que se realizava mais cedo do que eles pensavam, obriga-
ra-os a se mover a toda pressa. A verdade é que até eles
tinham ficado consternados ao saber do desaparecimento
de Virgínia, porque tinham grande reconhecimento a Mr.
Otis por causa de ele teria permitido acampar no seu par-
que, e quatro companheiros do bando haviam ficado para
trás a fim de colaborar nas pesquisas. 0 tanque das carpas
fora esvaziado e toda a propriedade fora batida de ponta a
ponta, mas sem resultado. Era forçoso renderem-se à evi-
dência: pelo menos, naquela noite, Virgínia estava perdida
para eles; e, profundamente abatidos, Mr. Otis e os rapa-
zes dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual con-
duzia à mão os dois cavalos e o potro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo.
A pobre Mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca,
semi louca de inquietação e de pavor; a velha governanta
banhava-lhe a fronte com água-de-colônia. Mr. Otis insistiu
imediatamente com ela para que ingerisse qualquer alimento32
e mandou servir o jantar para todos.
Foi uma refeição bem triste, em que quase não se proferiu
Palavra. Os próprios gêmeos estavam aterrados, choca-
dos, porque adoravam a irmã. No fim do jantar, Mr. Otis,
não obstante os rogos do Duquezinho, ordenou que todos
se deitassem, dizendo que nenhuma outra coisa poderia
ser feita naquela noite e que, no dia seguinte de manhã,
telegrafaria à Scotland Yard
para lhe serem enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar,
soava a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a
décima segunda pancada, ouviram todos um enorme es-
trondo, seguido de um grito penetrante. Um formidável tro-
vão abalou a casa, os acordes de uma harmonia irreal flu-
tuaram no espaço, no alto da escadaria abriu-se uma das
almofadas da parede e, no patamar, apareceu Virgínia, muito
pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi num rápido instante que todos se precipitaram para.
ela. Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o Duque afa-
gou-a’ com a violência dos seus beijos, e os gêmeos exe-
cutaram envolta do grupo uma dança guerreira.
- Santo Deus, de onde vem você? - perguntou Mr. Otis
numa voz bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha
pregado uma peça insensata. - Cecil e eu cavalgamos toda
a região à sua procura e sua mãe esteve prestes a morrer
de angústia. Aconselho-a a não voltar entregar-se a farsas
tão estúpidas como esta.
- Exceto contra o fantasma! Exceto contra o fantasma! -
bradaram os gêmeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-a aqui! É preciso que
nunca mais me deixe - murmurou Mrs. Otis, enlaçando a
criança, a qual
emaranhados.
tremia, e alisando os seus caracóis de ouro todos
- Papai - disse Virgínia num tom calmo - eu estava com o
fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas33
arrependeu-se verdadeiramente do que fez e, antes de
morrer, deu-me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a família a fitava, os olhos escancarados de surpresa,
nus ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os
através de unia abertura no forro de madeira das paredes
até um estreito corredor secreto. Washington seguia-os
empunhando uma vela que havia tirado de cima da mesa.
Chegaram, por fim, a uma grande porta de carvalho, orna-
da de pregos cheios de ferrugem. Quando Virgínia a tocou,
a porta girou nas dobradiças, e encontraram-se todos numa
salinha baixa, de teto de abóbada e que não respirava se-
não por uma minúscula janela gradeada. Uma enorme ar-
gola de ferro estava chumbada na parede e, encadeada na
argola, via-se um grande esqueleto estendido de comprido
no chão de pedra, parecendo tentar agarrar uma escudela
velha e uma bilha colocada fora do seu alcance. A bilha
devia ter contido outrora água, porque se mostrava por
dentro coberta de bolor. Na escudela.. não existia senão
uma camada de pó.
Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as deli-
cadas mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto o resto
da família contemplava com espanto a horrível tragédia,
cujo segredo lhes era assim revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gêmeos, o qual se
dependurara na janela para observar em que ala da
edificação se situava aquele quarto. - Olhem! A velha amen-
doeira toda sequinha está em flori Vêem-se muito bem as
flores, ao c~ do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente Virgínia, erguen-
do-se; e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- Você é um anjo! - exclamou o Duquezinho, que lhe lan-
çou um braço em volta do pescoço, estreitando-a contra
si.
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um séqüito
fúnebre deixava o Parque Canterville por volta das onze
horas da noite. Oito cavalos negros puxavam o carro mor-34
ro acima e sobre as cabeças deles agitavam-se grandes
penachos de plumas de avestruz. Um suntuoso pano cor
de púrpura, que as armas dos Cantervilles, bordadas em
ouro, ornavam, cobria o caixão de chumbo. Junto do car-
ro, marchavam os criados empunhando tochas, e todo o
cortejo assumia singular imponência.
Lord Canterville dirigia o enterro. Tinha vindo expressamente
do País de Gales para assistir à cerimônia e ocupava a pri-
meira carruagem, acompanhado da jovem Virgínia. A se-
guir iam o embaixador dos Estados Unidos e a esposa,
depois Washington e os três rapazes, e, por fim, na carrua-
gem da cauda, Mrs. Uniney. Partiu-se da convicção de que
a governanta, que durante mais de cinqüenta anos havia
sido apoquentada pelo fantasma, tinha o direito de vê-lo
desaparecer para sempre. Fora escavada, num canto do
cemitério, uma profunda sepultura, precisamente sob a rama
do velho teixo, e as preces foram proferidas pelo Reveren-
do Augustus Dampier dá maneira mais impressionante.
Ao término da cerimônia, os criados, conforme um costu-
me tradicional na família Canterville, apagaram as suas
tochas e, no momento de se fazer descer o caixão à se-
pultura, Virgínia avançou e depôs sobre ele uma grande
cruz tecida de rosas e flores de amendoeira. Simultanea-
mente, a lua surgiu de trás de uma nuvem e, com as suas
ondas silenciosas e argênteas, iluminou o pequeno cemité-
rio; e do recesso de uma moita, a distância, subiu o canto
de um rouxinol. A jovem recordou a descrição que o fan-
tasma fizera do jardim da morte. Lágrimas velaram-lhe os
olhos e mal articulou palavra durante o caminho de regres-
so.
No dia seguinte de manha, antes que Lord Canterville par-
tisse para Londres, Mr. Otis conferenciou com ele a respei-
to das jóias dadas a Virgínia pelo fantasma. Era de notável
magnificência, em especial certo colar de rubis com um
engaste veneziano, admirável trabalho do século dezesseis,
e o valor delas todas era tal que Mr. Otis sentia grandes35
escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.
- Lord Canterville - disse o embaixador - eu sei que o regi-
me dos bens chamado de “mão-morta” é aplicável neste
país tanto às jóias como às terras, e parece-me evidente
que
estas jóias de família lhe pertencem, consequentemente.
Devo, pois, pedir-lhe que as leve consigo para Londres e
que as considere simplesmente como uma parte da sua
herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias.
Quanto à minha filha, ela é ainda uma criança e (sinto-me
feliz em dize-lo) não presta mais do que medíocre interes-
se a esses vão acessórios de luxo. Além disso, minha mu-
lher, que, ouso afirmá-lo, é em matéria de arte uma autori-
dade, com a qual é necessário contar, - ela gozou do privi-
légio de passar muitos invernos em Boston quando ainda
era solteira - comunicou-me terem essas jóias elevado valor
monetário. Postas a venda, atingiriam um altíssimo preço.
Nestas condições, Lord Canterville, estou certo de que com-
preenderá não poder eu permitir a nenhum membro da
minha família conservá-las na sua posse. E, em boa verda-
de, todos esses frívolos adornos, por mais adequados ou
indispensáveis que sejam à dignidade da aristocracia ingle-
sa, estariam absolutamente deslocados entre pessoas
educadas nos princípios severos e, suponho, imortais da
simplicidade republicana. Talvez me seja lícito acrescentar
que Virgínia deseja vivamente que 1 o senhor a autorize a
guardar para ela o cofrezinho, a título de recordação dos
desvarios e dos infortúnios desse seu antepassado. Visto
que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez
o senhor julgue razoável deferir este pedido. Pela minha
parte, confesso estar bastante surpreso ao ver um dos
meus filhos exprimir simpatia pelas coisas medievais, seja
sob qual aspecto for, e não posso explicar isto a mim pró-
prio senão o fato de Virgínia ter nascido num dos seus ar-
rabaldes longos pouco tempo depois da chegada à Ingla-
terra.36
Lord Canterville escutou com muita gravidade o discurso
00 digno embaixador, repuxando de quando em quando as
pontas do seu bigode grisalho para dissimular um sorriso
involuntário; e quando Mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe
a mão e disse:
Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou Simon,
meu infeliz antepassado, um serviço de importância, e eu e
a minha família devemos muito à maravilhosa coragem dela.
Está claro que as jóias lhe pertencem; e, por minha fé,
creio que se eu tivesse tão pouco coração que as tirasse
dela, o velho sairia, antes de quinze dias decorridos, do seu
túmulo e causar-me-ia uma vida de inferno. Quanto a cons-
tituírem jóias de família, tal só seria possível se figurassem
num testamento ou em documento legal, e a existência
dessas jóias me era completamente desconhecida. Asse-
guro-lhe que não tenho mais direitos sobre elas do que,
por exemplo, o seu mordomo, e, ouso dize-lo, quando
Miss Virgínia for crescida desvanecer-se-á ao usar esses
lindos objetos. 0 senhor esquece também, Mr. Otis, que
comprou em conjunto a propriedade e o fantasma, e que
tudo o que pertencia ao fantasma passou, implícita e ime-
diatamente, para a sua posse, pois, por maior atividade de
que Sir Simon tenha dado sinal durante a noite, nos corre-
dores da casa, ele estava verdadeiramente morto, sob, o
ponto de vista jurídico, e a aquisição feita pelo senhor tor-
nou-9 possuidor dos bens dele.
Mr. Otis, muito comovido com a recusa de Lord Canterville,
suplicou-lhe que reconsiderasse a sua decisão, mas o
excelentíssimo membro da Câmara Alta inglesa permane-
ceu firme e acabou por persuadir o embaixador de que
consentisse à filha guardar o presente do fantasma.
E quando na primavera de 1890 a jovem Duquesa de
Cheshire foi, por ocasião do seu casamento, apresentada
a primeira vez na recepção da rainha, as jóias que ostenta-
va tornaram-se tema de admiração geral. Virgínia recebeu
a coroa, que é a recompensa de todas as boas meninas37
americanas, e desposou aquele que a amava desde a in-
fância, logo que ele atingiu a idade conveniente.
Eram ambos tão sedutores e amavam-se tanto que esta
união encantava todo mundo, salvo a velha Marquesa de
Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do duque para
uma das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse
desígnio, dera nada menos do que três dispendiosos janta-
res; e, se bem que isto possa parecer estranho.
0 embaixador sentia pelo Duquezinho uma grande afeição,
mas, em teoria, não era partidário de títulos de nobreza e,
para empregar mesmo palavras sua , “temia um tanto que,
por causa da influência amolecedora da aristocracia, nada
pelo prazer, os verdadeiros princípios da simplicidade repu-
blicana fossem esquecidos”. Mas houve quem deitasse, por
terra as suas objeções; e creio bem que, ao avançar, com
a filha pelo braço, na nave da Igreja de S. Jorge, não hou-
ve, nesse instante, homem mais orgulhoso do que ele na
Inglaterra inteira.
Após a sua lua-de-mel, o Duque e a Duquesa voltaram ao
Parque Canterville; e no dia seguinte ao da chegada foram,
à tarde, a passeio até o cemitério solitário circunvizinho, do
pinheiral.
A escolha da inscrição para a lápide de Sir Simon tinha le-
vantado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido
mandar gravar nela as simples iniciais do velho aristocrata
e os versos existentes na biblioteca.
A Duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que
espalhou sobre a sepultura; e depois de se conservarem
em recolhimento bastantes minutos, os jovens foram, sem-
pre passeando, até o santuário em ruínas da velha abadia.
Sentou-se, então, a Duquesa numa pilastra mutilada do
templo, enquanto o marido, estendido a seus pés, fumava
um cigarro, tendo o olhar fixo nos belos olhos da jovem.
De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-lhe
na mão e disse:
- Virgínia, uma mulher não deve ter segredos para seu ma-38
rido.
- Querido Cecil, não tenho segredos para você.
- Tem-nos, sim; - replicou ele sorrindo - nunca me disse o
que aconteceu quando esteve encerrada com o fantasma.
- Nunca o disse a ninguém - respondeu Virgínia com ar
grave.
- Sei disso, mas podia dize-lo a mim.
- Não me peça tal coisa, Cecil; eu não posso dizer-lhe.
Pobre Sir Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não ria, Cecil.
Mostrou-me o que é a vida, o que significa a morte e por-
que razão o amor é mais forte do que a vida e a morte.
0 Duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mu-
lher.
- Pode reservar o seu segredo por tanto tempo quanto eu
guardarei o seu coração - murmurou.
- Ele sempre lhe pertenceu, Cecil.
- E dirá um dia aos nossos filhos, não é verdade?
As faces de Virgínia cobriram-se de rubor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário